Úlceras cutâneas na hanseníase: perfil clínico-epidemiológico dos pacientes
Resumo
FUNDAMENTOS – A hanseníase é uma doença de evolução crônica cuja lesão nervosa determina alterações sensitivas e motoras, levando à instalação de deformidades assim como as úlceras cutâneas.
OBJETIVO – Traçar perfil epidemiológico dos hansenianos ulcerados e não ulcerados atendidos no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto 2003/2004.
MÉTODOS – Estudo transversal de 79 hansenianos atendidos em 2003 e 2004 junto ao Arquivo Médico, separando-os em Grupo 1
RESULTADOS – Nesta amostra, 69,6% eram do sexo masculino, 91,1% brancos e baciloscopia positiva em 62%. Destes, 25 (32%) pacientes apresentaram ulcerações (Grupo 1) localizadas nos membros inferiores em 68% dos casos, classificados como grau II de incapacidade (72%), diferente em relação ao grupo 2 (p<0,01). Na classificação espectral da hanseníase, comparando os pares de grupos observaram-se diferenças entre tuberculóide e virchowiano (p<0,01), dimorfo e dimorfo-virchowiano (p<0,05), e este com virchowiano (p<0,01). Na operacional, 80% dos ulcerados eram multibacilares enquanto 12% paucibacilares (p<0,05).
CONCLUSÕES – Os Grupos 1 e 2 foram epidemiologicamente semelhantes. As ulcerações dos hansenianos parecem estar relacionadas ao grau II de incapacidade e à positividade da baciloscopia, características detectadas por ambas as classificações (espectral e operacional).
INTRODUÇÃO
A hanseníase é doença de evolução crônica, causada pelo M. leprae, um bacilo álcool ácido resistente, que possui tropismo por nervos periféricos mistos. Sua transmissão ocorre através do contato direto com pacientes bacilíferos, principalmente por vias aéreas superiores1.
A Organização Mundial de Saúde (OMS)2 definiu a hanseníase como um problema de saúde pública, principalmente naqueles países cujas taxas de prevalência ultrapassam 1 caso por 10.000 habitantes, o que ainda inclui nosso país. Segundo Lana (1997), o diagnóstico tardio, o abandono dos pacientes ao tratamento, o nível de esclarecimento sobre a doença, o estigma, o preconceito, entre outros fatores, contribuem para que a hanseníase ainda seja considerada um grave problema de saúde pública em nosso país3.
Ridley e Jopling (1966)4 classificaram a hanseníase em formas clínicas espectrais de acordo com a resposta imunológica do hospedeiro: “tuberculoid” (TT), “borderline-tuberculoid”, “mid-borderline” (BB), “borderline-lepromatous” (BL) e “lepromatous” (LL), também denominadas como: tuberculóide, dimorfa-tuberculóide, dimorfa-dimorfa, dimorfavirchowiana e virchowiana respectivamente5. Adicionalmente, para a forma inicial da doença, sem definição imunológica dentro desse espectro, considera- se a forma indeterminada (MHI) segundo a classificação de Madri6. As manifestações neurológicas são variáveis dependendo da forma clínica de cada paciente e podem ser agravadas durante o tratamento poliquimioterápico devido à maior exposição antigênica ocasionada pela destruição bacilar provocada pela terapêutica7. Na forma TT, as lesões neurais são mais precoces, assimétricas e intensamente agressivas. Na LL as alterações neurológicas são de evolução crônica, insidiosa e lenta, portanto, a lesão dos troncos nervosos é mais tardia, tendendo a ser simétrica e menos agressiva do que na tuberculóide. A forma BB pode assumir características intermediárias às formas dos pólos tuberculóide (BT) e virchowiano (BL).5,8 O Ministério da Saúde do Brasil9 propôs o modelo operacional de classificação, designando como paucibacilar (PB) e multibacilar (MB), para os pacientes com baciloscopia negativa e positiva respectivamente.
A lesão nervosa determina alterações sensitivas e motoras que levam à instalação de graus variados de incapacidade física, e podem interferir na vida social e econômica dos pacientes, resultando no estigma e discriminação dos mesmos. Dentre as incapacidades graves e socialmente relevantes, estão as úlceras cutâneas. A região plantar é abordada como o local comumente acometido por úlceras, devido a alterações biomecânicas e diminuição da sensibilidade ocorridas no paciente. A alteração biomecânica ocorre a partir de amiotrofias, fraquezas musculares e deformidades que contribuem diretamente para o desarranjo ósseo do pé. Esse desarranjo faz com que o paciente realize uma marcha desajustada e provoque novos pontos de pressão em regiões do pé não apropriadas. Além disso, o hanseniano possui diminuição ou abolição da sensibilidade, o que reflete na diminuição da proteção fisiológica necessária para a prevenção de inúmeras lesões cutâneas.9,10,11
As úlceras cutâneas constituem uma importante complicação conseqüente da neuropatia nos pacientes hansenianos. Essas lesões devem ser abordadas e devidamente prevenidas, pois constituem porta de entrada para infecções que podem se agravar e conduzir o paciente a complicações graves e até mesmo à amputação.12,13 Entretanto, poucos são os estudos epidemiológicos na literatura que caracterizam fatores associados às ulcerações em hansenianos.
O objetivo desse estudo foi traçar o perfil epidemiológico dos pacientes hansenianos ulcerados, comparando-os com os não ulcerados atendidos no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP- USP) no período de 2003 e 2004.
CASUÍSTICA E MÉTODOS
Realizou-se um estudo tranversal dos 79 casos de pacientes com hanseníase atendidos no ambulatório de hanseníase junto ao Serviço de Arquivo Médico do HCFMRP-USP nos anos de 2003 e 2004. Foram analisadas as características clínico-epidemiológicas como: idade, sexo, cor, forma clínica da hanseníase, baciloscopia, grau de incapacidade e co-morbidades. Os pacientes foram classificados conforme as histórias clínicas descritas nos prontuários a partir das quais foram constituídos dois grupos distintos para análise: Grupo 1 (G1)- hansenianos ulcerados (n=25) e Grupo 2 (G2)- hansenianos não ulcerados (n=54). O total de pacientes foi denominado de hansenianos (MH) total.
A análise comparativa dos dados entre os grupos foi descritiva, utilizando-se os testes estatísticos “t de student” para análise das variáveis numéricas e o qui-quadrado para as categóricas, pelo programa Graphpad prism 4 e o programa GMC basic software versão 2002 – FORP-USP. O nível de significância adotado foi menor que 5% (p<0,05). RESULTADOS
Foram avaliados 79 prontuários (MH total), dos pacientes com hanseníase atendidos nos anos de 2003 e 2004. Dentre esses, 25 pacientes (32%) apresentavam ulcerações ao exame, cujos respectivos dados clínico-epidemiológicos estão descritos na tabela 1. Quanto às formas clínicas, os pacientes foram classificados pelo modelo espectral proposto por Ridley e Jopling (1966)4, além da classificação operacional (Ministério da Saúde)8, conforme gráficos 1 e 2 respectivamente. Na classificação espectral da hanseníase, comparando os pares de grupos observaram-se diferenças entre os pacientes classificados como tuberculóide e virchowiano (p<0,01), dimorfo e dimorfo-virchowiano (p<0,05), e o último com os virchowianos (p<0,01). Dos pacientes atendidos, 38% tinham grau II de incapacidade, sendo que nos Grupos 1 e 2, esse índice correspondeu a 72% e a 22,2% respectivamente. A hipertensão arterial sistêmica (HAS) foi a co-morbidade mais freqüente entre os hansenianos, seguida por diabetes mellitus (DM). Sessenta e oito porcento (68%) das úlceras localizavam- se nos membros inferiores (MMII) (calcâneo, hálux, região plantar e perna), conforme demonstrado na tabela 2. DISCUSSÃO
Na análise dos prontuários dos pacientes com hanseníase atendidos no HCFMRP-USP nos anos de 2003 e 2004, observou-se que os pacientes ulcerados não apresentaram características epidemiológicas diferentes dos demais. Em relação à classificação da hanseníase, tanto pela proposta por Ridley e Jopling quanto pela operacional (Gráficos 3 e 4), a maioria dos pacientes ulcerados foram classificados como virchowianos e MB, respectivamente. Esses achados são concordantes à alta freqüência de baciloscopias positivas dentre os pacientes do referido grupo. Quanto ao grau de incapacidade, as úlceras plantares são determinantes para o grau II, evidenciado pelo alto índice (72%) dos pacientes do Grupo 1 caracterizados nesse grau, comparado-se ao índice do grupo 2 para essa incapacidade, sendo p<0,01 pelo teste estatístico qui-quadrado. Cabe ressaltar que os pacientes apresentaram ulcerações em outras localidades como mãos e pernas, porém, a região plantar foi o local mais acometido por úlceras, em 20% dos casos, concordando com a literatura por alterações biomecânicas importantes e diminuição da sensibilidade ocorridas nesses pacientes.8,9,10 Na classificação espectral da hanseníase observou- se uma curva ascendente para a ocorrência das úlceras cutâneas coincidente às formas clinicas de maior presença bacilar como demonstrado no gráfico 1. Esses achados foram corroborados pela análise da classificação operacional, na qual fica evidente a propensão dos pacientes multibacilares a desenvolverem ulcerações cutâneas comparados aos paucibacilares (p<0,05). Os resultados devem alertar não só os profissionais que lidam com os cuidados em relação aos hansenianos, mas também aos órgãos gestores de saúde para investimentos em calçados/palmilhas protetoras, evitando conseqüências onerosas e graves como osteomielite e amputação. Os pés caracterizaram-se como o local mais acometido por ulceras cutâneas em 52% dos casos. Apesar de menores, não se deve ignorar a ocorrência de úlceras em outras regiões, inclusive mãos e, portanto, direcionar a atenção e o enfoque de prevenção para as mesmas que também representam riscos para o paciente. Tais medidas são de extrema importância na diminuição do índice de incapacidade e estigmas, além dos gastos com seu tratamento, curativos crônicos e previdência social nessa população, que além das perdas orgânicas, se torna socialmente isolada e economicamente inativa. CONCLUSÃO
Os Grupos 1 e 2 foram epidemiologicamente semelhantes entre si e com o descrito na literatura. As ulcerações dos hansenianos parecem estar relacionadas ao grau II de incapacidade e à positividade da baciloscopia, detectados tanto pela classificação espectral quanto pela operacional. Tais achados servem de alerta para pacientes, profissionais e gestores de saúde para incentivar melhorias no diagnóstico precoce, avaliação, seguimento e serviços de prevenção de incapacidade dos pacientes com hanseníase, independente do tipo de atenção de serviço prestado à saúde (primária, secundária ou terciária).
Referências
1. Aquino DMC, Caldas AJM, Silva AAM, Costa JML. Perfil dos pacientes com hanseníase em área hiperendêmica da Amazônia do Maranhão, Brasil. Rev Soc Bras Med Trop. 2003;19:119-25.
2. World Health Organization. Estratégia Global para aliviar a carga da hanseníase e manter as atividades de controle da hanseníase. Genebra: World Health Organization; 2005. p.2-27.
3. Lana FCF. Políticas Sanitárias em hanseníase: história social e a construção da cidadania [tese]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 1997. p.304.
4. Ridley DS, Jopling MJ. Classification of leprosy according to immunity. A five group system. Int J Lepr. 1966;34:255-73.
5. Talhari S, Neves RG, Oliveira SG. Dermatologia tropical hanseníase. 3 ed. Manaus: Gráfica Tropical; 1997. p.41-61.
6. Dharmendra. Classifications of leprosy. In: Hastings RC. Leprosy. New York: Lnogman Group; 1989. p. 88-99.
7. Jopling WH. References to “side-effects of antileprosy drugs in common use”. Lepr Rev. 1985;56:61-70.
8. Carvalho GA, Alvarez RRA. Avaliação de incapacidades físicas neuro-musculo-esqueléticas em pacientes com hanseníase. Hansen Int. 2000;25:39-48.
9. Brasil. Ministério da Saúde. Manual de prevenção de incapacidades. Brasília: Fundação Nacional de Saúde; 2001. p.12-25.
10. Chauhan VS, Pandey SS, Shukla VK. Management of plantar ulcers in hansen’s disease. Int J Low Extrem Wounds. 2003;2:164-7.
11. Brasil. Ministério da Saúde. Guia de controle de incapacidades. Brasília: Fundação Nacional de Saúde; 1994. p.24-36; 85-9.
12. Ramsey SD, Newton K, Blough D, McColloch DK, Sandhu N, Reiber GE, et al. Incidence, outcomes and cost of foot ulcers in patients with diabetes. Diabetes Care. 1999, 22:382-87.
13. Soares SC, Cursi IB, Campos EM, Andrade FF, Carvalho MTF, Coutinho-Netto J, et al. Úlceras de perna: tratamento e cicatrização. Revista Médica Oficial do Hospital Universitário da UFJF. 2004;30:16-9.