2.3. ANALISANDO OS RESULTADOS DA AQUISIÇÃO DO PORTUGUÊS COMO SEGUNDA LÍNGUA PELO ALUNO SURDO
Os surdos em suas manifestações escritas podem produzir ótimos materiais, como literatura, teatro, poesia e textos, se possuírem o domínio do instrumento necessário para isso. Para a maioria, isto não acontece na língua portuguesa porque a dificuldade de traduzir é imensa e o sentido muitas vezes muda. Portanto, nenhum deles faz.
Devido a essa grande dificuldade dos alunos surdos em produzir textos em português, o Instituto Cearense de Educação de Surdos (ICES) oferece uma vez por semana, uma oficina de redação onde eles podem adquirir novos conhecimentos ou aprimorar os conteúdos já estudados de forma contextualizada. Nesta oficina, além deles treinarem a escrita correta das palavras através de ditados ortográficos, eles também tem a oportunidade de aprender a redigir textos diversos, como: bilhetes, cartões, convites, cartas, biografias, dentre outros.
Os melhores textos produzidos na oficina são selecionados e enviados para o jornal mensal: Mundo do Surdo, que é produzido pela escola com a ajuda dos próprios alunos. O jornal é um incentivo para o estudante, pois quando ele percebe que o seu texto foi escolhido para ser publicado no jornal, ele sente-se valorizado e reconhecido pelo seu esforço e trabalho.
Para participar desta pesquisa foram escolhidos quatro alunos adultos surdos do Instituto Cearense de Educação de Surdos (ICES), sendo duas mulheres e dois homens, cada um de uma série diferente de 6ª à 9ª. Houve diversas aulas e temas abordados, porém foram escolhidos criteriosamente, os melhores trabalhos que estavam mais condizentes com a realidade que a nossa pesquisa pretendia demonstrar.
Antes de apresentarem as suas produções textuais, os alunos surdos foram questionados sobre a causa da sua surdez. O mais curioso foi que a maioria dos casos aconteceu no interior, onde os recursos são mais escassos, e somente mais tarde, as mães deles vieram procurar melhores condições na Capital.
Não é difícil identificar as características dos textos dos surdos desta escola que adquirem o português como segunda língua, conforme serão ilustrados a seguir.
Aluna Surda 1 ( 44 anos):
Vida Escolar 6ª Série
A aluna relatou que já nasceu surda, pois quando a sua mãe estava com 8 meses de gravidez, ela teve catapora. Então, como não houve pré-natal, essa doença de sua genitora afetou consideravelmente a sua audição. Atualmente, a aluna fala muito pouco e escuta também muito pouco. Além de estudar no ICES, ela ainda trabalha na fábrica Guararapes.
A coleta de dados deu-se no período de volta às aulas. Durante a aula, a professora explicou que as férias são importantes, não somente para o aluno como para o professor, pois é o momento onde as pessoas podem descansar, passear, ir à praia, ao shopping, enfim, desenvolver atividades prazerosas. Cada um pôde explicar em Libras o que havia feito nas férias. A partir daí, a professora foi ativando o conhecimento prévio dos alunos e extraindo deles palavras conhecidas e auxiliando-os nas desconhecidas. Foram mostradas também figuras diversas sobre as atividades que podem ser realizadas nas férias. Após este momento de interação com o tema abordado, a professora pediu aos alunos que produzissem um texto sobre as férias de cada um e como se sentiam retornando às aulas.
eu trabalho muito banheiro lavar
eu cansada casa tica um dia
eu vou modeco saúde bom
eu vou escola feliz saudade
Professor feliz bom
Entre os aspectos divergentes do português, evidencia-se na produção textual acima, em geral: uso de frases curtas, ausência de pontuação, ausência de conectivos e preposições, e ainda a repetição exagerada do pronome pessoal na 1ª pessoa do singular. Na primeira frase, percebe-se claramente que houve uma inversão, ou seja, o complemento verbal encontra-se antes do verbo. Na segunda frase, a aluna queria dizer que está cansada por isso fica um dia em casa. Nesta frase, ela confundiu a grafia do verbo ficar, trocando a letra f pelo t. Da mesma forma, ocorreu na frase abaixo onde a aluna deveria ter escrito o vocábulo médico, mas acabou colocando modeco.
Para uma pessoa que desconhece a Libras, esse texto não teria qualquer valor semântico, seria totalmente desconexo de acordo com as regras estruturais da língua portuguesa, e ainda seria apenas uma enumeração de itens lexicais aparentemente sem sentido.
Porém, pode-se perceber que esse texto somente pôde ser escrito porque a aluna conhece a Libras e sabe relacionar o sinal com a sua palavra correspondente em português. Logicamente que, esse texto ainda está longe dos padrões exigidos pelos ouvintes e falantes da Língua Portuguesa, mas pode-se afirmar que apesar da desordem gramatical, a aluna conseguiu transmitir o seu pensamento à respeito das suas férias.
Aluno Surdo 2 (20 anos):
Vida Escolar 7ª Série
O aluno relatou que já nasceu surdo, e nunca ouviu sequer a voz da mãe quando pequeno. Ele ainda contou que tinha muito medo do pai, pois era policial e era visto como o fortão. A mãe dele foi a única referência de carinho que ele teve na vida. O pai dele, que bebia muito, faleceu um ano antes da sua mãe. A mãe caiu da escada e sofreu uma forte hemorragia interna, falecendo logo em seguida. O menino teve vários pensamentos suicidas, pois encontrando-se sozinho em casa, sabia onde o pai guardava a sua arma. Várias vezes teve vontade de dar cabo à sua vida, porém faltou-lhe a coragem para cometer tal ato. O aluno que morava no interior do Estado do Ceará, na cidade de Sobral, foi convidado pela tia a morar em Fortaleza. Atualmente, o rapaz estuda no ICES e trabalha no supermercado Extra.
A coleta de dados deu-se em um período anterior ao carnaval. Durante a aula expositiva, a professora explicou sobre as belezas do carnaval e os seus perigos também. Foram mostrados cartazes sobre como devemos nos divertir de maneira saudável no carnaval e qual seria a maneira errada de diversão, como: envolvendo-se em brigas, acidentes de trânsito, uso desenfreado de bebidas alcoólicas e drogas, dentre outros. Nesse momento, cada um pôde explicar em Libras, o que é e o que não é aconselhável fazer no carnaval. Através dessa exposição de cada um, a professora pôde ir relacionando os sinais com as suas correspondentes palavras em português. Após esse momento de interação com o tema abordado, a professora pediu que cada um escrevesse um texto sobre o carnaval.
Pessoa beber muito mal doença nunca saúde corpo fraco como beber atenção trânsito precisa ver como mata…
Como eu nunca beber fraco precisa eu saúde suco melhor. Porque beber álcool morre…
Podemos beber carnaval férias beber normal mundo Brasil bebe normal.
Mais uma vez, pode-se evidenciar nesse outro texto de um aluno surdo: o uso de frases curtas, a ausência de preposições e conjunções e pontuação indevida. Percebe-se na primeira frase que, apesar de haver uma enumeração de vocábulos com a ausência de conectivos que possam fazer a ligação exata entre as palavras, e principalmente, o verbo beber que está conjugado no infinitivo duas vezes na frase, o aluno têm consciência do quão perigoso é a bebida alcoólica, quanto mais quando se dirige embriagado. Na segunda frase, há uma repetição desnecessária do pronome na 1ª pessoa do singular, e ainda o aluno inverteu a ordem do verbo e do pronome, pois o verbo precisa encontra-se antes do pronome pessoal, como se o aluno quisesse fazer uma pergunta, o que na realidade, trata-se de uma afirmação. Depois do vocábulo melhor, o aluno inseriu um ponto que não existe, pois logo em seguida, o porque poderia fazer a ligação da frase anterior com a posterior.
Já na última frase, percebe-se claramente que o aluno entende que no Brasil beber é normal e que todos bebem no carnaval e nas férias. Porém, ele ainda não utiliza conectivos para fazer a ligação entre as palavras e frases, além da ausência da concordância verbal e nominal.
E ainda um outro aspecto encontrado não somente nessa produção textual como na anterior, é a dificuldade de fazer as ligações entre palavras, segmentos, orações, períodos e parágrafos, ou seja, a dificuldade de organizar sequencialmente o pensamento em cadeias coesivas na língua portuguesa.
Como pode ser observado através dos dados apresentados, os surdos aprendizes de segunda língua (sendo nesse caso, aprendizes de português) se utilizam de várias estratégias para descobrir a gramática da língua alvo. Essas estratégias permitem a produção de frases convergentes da língua portuguesa e geram também seqüências divergentes.
Aluno Surdo 3 (28 anos):
Vida Escolar 8ª Série
O aluno relatou que nasceu ouvinte, no interior do Estado do Ceará, na Cidade de Iguatu. Ele contou que foi um menino muito danado na sua infância, e como gostava muito de brincar sempre ia para as matas próxima à sua casa para sentir-se mais livre. Quando tinha 3 anos de idade foi para a mata brincar com o seu primo de 5 anos de idade. Ao chegar lá, viu uma planta muito bonita (pela descrição do aluno, acredito ser urtiga), sentiu muita vontade de cheirá-la, comê-la e colocá-la dentro dos ouvidos, e assim o fez. De repente, começou a tossir e a passar muito mal. Correu para casa com o primo e a mãe o levou ao médico. Passou uma semana internado no hospital com muita febre e de seu ouvido saía muito pus. Depois desse período que saiu do hospital, nunca mais ouviu nada. Atualmente, o aluno não está trabalhando, mas estuda no ICES.
A coleta de dados deu-se em uma aula em que foi discutida com os alunos a importância da Libras para a vida da pessoa surda. Nesse momento, a professora foi extraindo de cada um a sua opinião sobre a língua natural dos surdos. A professora ainda perguntou se os alunos gostavam de usar a Libras como forma de comunicação na escola, todos os alunos concordaram que sem a Língua de Sinais, a sua aprendizagem sairia prejudicada, pois não haveria outra forma de comunicação. Depois desse momento de interação com o tema abordado, a professora sugeriu que os alunos escrevessem sobre a importância da Libras nas suas vidas.
Boa noite obrigado de Deus amo muito feliz paz senhor o abençoa sem ices estudo que importante vem o coragem Língua Brasileira de Sinais aqui Fortaleza tem surdo amigo comunidade união você Américo mais conhece ACES tem surdos convidos muito aprende ver desenvolver panha é obrigado, etc…
Nesse terceiro texto de outro aluno surdo, percebe-se que aluno até tentou produzir um texto coeso, sem ser apenas um conjunto de frases curtas, porém há uma intensa enumeração de itens lexicais, totalmente ausente de pontuação e sem qualquer conectivo ou preposição que faça ao menos a ligação entre as palavras.
Há a inversão de alguns itens lexicais como: surdo amigo onde o adjetivo surdo deveria estar após o substantivo amigo, qualificando-o. Na última linha do texto, o aluno queria escrever a palavra convidados, mas acabou cometendo um erro gráfico, escrevendo-a: convidos. No final do texto, o aluno já estava cansado de tanto tentar extrair palavras de sua mente, porém ainda queria escrever mais, mas acabou inventando um novo vocábulo como panha, que depois ao ser perguntado sobre a significação daquele vocábulo em Libras, não soube responder.
Mais uma vez, apesar de toda a aparente desarmonia gramatical presente no texto, pode-se observar que o mesmo apresenta uma lógica semântica onde o aluno consegue transmitir a sua idéia à respeito da importância não só da Língua de Sinais como também do ICES que é fonte de promulgação da Libras para a comunidade e o surdo sente-se feliz, agradecendo a Deus pelo respeito à sua cultura.
Aluna Surda 4 (37 anos):
Vida Escolar 9ª Série
A aluna relatou que quando tinha mais ou menos 1 ano de idade, estava deitada em uma rede quando caiu e bateu com a cabeça no chão. Foi para o hospital e lá passou duas semanas internada, desde então, a sua audição foi diminuindo e não conseguia mais falar. Fez diversos tratamentos fonoterapêuticos, nem mesmo o uso do aparelho auditivo, resolveu o seu problema. Além de já ter a sua audição prejudicada, ela ainda passou por um susto muito grande quando a sua irmã jogou água quente em cima do seu corpo, sofrendo queimaduras generalizadas. A partir daí, nunca mais conseguiu pronunciar nenhuma palavra.
A coleta de dados deu-se em uma aula em que os alunos foram estimulados a expor em Libras, algo que lhes desagradasse, como: a situação do país, a educação, o desrespeito, a miséria, etc…Cada deu a sua valiosa contribuição à respeito do tema e a professora foi tentando relacionar os sinais produzidos pelos alunos com os seus correspondentes vocábulos em português. Após esse momento de interação com o tema abordado, a professora sugeriu que os alunos produzissem um texto sobre um problema ou alguma situação que os desagradasse.
Os alunos não querem estudar preguiça só bate-papo. Precisar coragem estudar também. Todas as pessoas cobrar a farda no ICES algum surdo ter vergonha mostrar surdos ouvir mangar todo não conhecer a sociedade. Os surdos minoria estudar por isso abandono não gostar estudar, professores e diretora, etc. Algum surdo reclamar cadê o vale transporte? Não culpa diretora, mas culpa governo dele demorar vale precisar comprar comida, dar a família, ônibus, etc. Muito difícil vale demorou muito recebeu o vale ainda não, sempre adiado.
Pode-se compreender através da produção textual apresentada que, a aluna quis expressar em forma de desabafo, o seu sentimento de abandono, em face de sua condição desprivilegiada como participante de uma minoria na sociedade. A surda conseguiu claramente transmitir sua mensagem de abandono, porém o texto contém alguns problemas na forma, entre os quais, encontram-se algumas remissões indevidas e conexões inadequadas. É o caso de precisar coragem estudar, e também todas as pessoas cobrar a farda, onde não há a concordância entre sujeito e verbo.
As estratégias cognitivas nos levam a identificar o referente e sua respectiva forma remissiva, pois o conhecimento lingüístico nos indica que a expressão precisar coragem estudar não poderia ser atribuída, neste contexto, a todas as pessoas ou a preguiça. Na passagem, abandono não gostar estudar, há um problema de coesão, pois falta um elemento conjuntivo que, além de recuperar o antecedente abandono, estabeleceria a conexão entre as idéias.
Vale ainda salientar que a sua produção textual apresenta características próprias, em vista de suas experiências lingüísticas anteriores. Certos aspectos da língua portuguesa são objeto de dificuldades recorrentes, como: o uso do artigo, da preposição, do presente do indicativo, e na maioria das vezes, os verbos são usados no infinitivo (independente do tempo verbal que pretendem expressar), da oposição ser/estar, falta de elementos formadores de palavras (afixos), ausência de conectivos, tais como conjunções e pronomes relativos, além de propriedades como o gênero das palavras, vocabulário reduzido, a codificação gramatical de propriedades semânticas dos nomes (contáveis, não-contáveis, plural e coletivo), além de uma colocação aparentemente aleatória de elementos na oração.
Apesar de problemas como estes, pode-se compreender o conteúdo semântico do texto, isto é, pode-se entender o que está sendo dito e isso indica que a coerência não foi comprometida. Por outro lado, o fato do texto ser inteligível, não significa que a estrutura superficial não deva ser reorganizada de acordo com as regras da língua em que está escrito.
Percebe-se, então, que a escrita de surdos com domínio de Libras, é dotada de coerência, embora nem sempre apresente certas características formais de coesão textual e de uso de morfemas gramaticais livres ou não. Acredita-se que o elemento fundamental para a transmissão da mensagem escrita seja a coerência e que esta é dependente das estruturas cognitivas e dos princípios pragmáticos que regem a linguagem.
De acordo com Salles et al. (2004, p.121), na aquisição da segunda língua, a articulação das propriedades da língua nativa e da língua-alvo dá origem à chamada interlíngua. A expectativa é que o aprendiz faça generalizações e crie regras, recorrendo a sua capacidade inata e criativa para a aquisição da linguagem.
À medida que o conhecimento da língua se desenvolve, os enunciados se tornam mais complexos e os processos gramaticais antes ausentes passam a ocorrer com mais freqüência. São fatores decisivos para a aquisição de uma segunda língua: o tempo de exposição à língua, a existência de instrução formal e a imersão cultural.
As condições que cercam os surdos são claramente diferentes, pois, para eles, aprender uma nova língua coincide com aprender a ler e escrever, porém faltam-lhe as pistas que o conhecimento de outra língua oral geralmente fornece aos aprendizes de segunda língua. Além de não possuírem o canal perceptual da língua oral, o que já dificulta bastante esse processo, os surdos utilizam o canal visuo-gestual como meio de comunicação. Por isso, há alguns aspectos que podem ser apontados como causas possíveis de insucesso na aprendizagem: a falta de motivação e aceitação da língua portuguesa pelo surdo.
A tarefa de adquirir uma língua impõe o domínio dos elementos do léxico, os quais trazem consigo informações sintáticas, semânticas e fonológicas, bem como das possíveis combinações entre eles, o que resulta no conhecimento da boa ou má-formação (sintática, fonológica e semântica) de seqüências. Esses dois tipos de conhecimentos representam o conhecimento mental do sistema de regras (ou gramática) da língua.
As possíveis causas de insucesso são nítidas, primeiramente, quanto à aprendizagem de uma segunda língua de base oral, já que os surdos utilizam outro canal perceptual, o vísuo-gestual, como língua materna: a Língua de Sinais.
Além de lidar com aspectos que são específicos da língua portuguesa, sabe-se ainda que os surdos devem lidar com aspectos da Língua de Sinais, que são específicos em função do seu caráter vísuo-espacial. Em meio a tantas circunstâncias adversas, não surpreende que a produção escrita dos surdos tenha características que dificultem a sua interpretação.
Segundo Góes (1996, p.07):
As construções desviantes podem ou não permitir pistas para ajustamentos na tentativa de construção de sentido. Casos de referencialidade ambígua, escolha lexical indevida, ordenação inadequada e sentido incompleto variam quanto às demandas de interpretação postas ao leitor. Em algumas dessas ocorrências, é possível inferir a mudança necessária à compreensão, com base no próprio enunciado e naqueles adjacentes ou, ainda, em informações do contexto de produção (derivadas da observação da atividade); outras vezes, porém, não há elementos suficientes para compor uma interpretação.
No caso desses alunos que foram acompanhados, há a nítida presença do que Góes (1996, p. 11) denominou como interação bilíngüe. Isto é, embora as Línguas de Sinais não possuam registro escrito, os alunos estariam produzindo uma escrita com alternâncias e justaposições das duas línguas envolvidas. É como se o sinal fosse o gesto da fala; a fala, a sonorização do sinal; e a escrita, o registro gráfico dos dois primeiros. Por conta da sua condição bilíngüe, há a ocorrência de construções atípicas nos textos desses estudantes surdos.
Portanto, apesar dessa situação de grande proximidade cultural do brasileiro surdo e do brasileiro ouvinte compensar, em alguns aspectos, a extrema distância lingüística entre o português e a Libras, a aprendizagem do português ainda apresenta uma dificuldade redobrada que deve ser trabalhada pedagogicamente e intensivamente pelo professor em sala.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa mostrou que a produção textual do aluno surdo, ainda está longe de ter características semelhantes ao português escrito, conforme as normas e regras gramaticais. Porém, a gradativa conscientização e motivação direcionada pela professora sobre a importância da língua portuguesa na vida desses estudantes, originou escritos bem mais coerentes e próximos do desejável.
Os surdos constituem uma minoria inserida em uma maioria predominante onde o único meio através do qual, a comunicação poderia acontecer, seria pelo uso contínuo da língua portuguesa, mas como não há o feedback via audição pelos surdos, torna-se muito difícil a compreensão do mecanismo do Português, nos moldes tradicionais da escola, principalmente para aqueles que possuem perda severa à profunda.
Percebe-se que, por mais que se lute para que o surdo aprimore as suas condições intelectuais e internalize a estrutura da língua portuguesa, ainda há uma grande dificuldade quanto à sua aprendizagem. Isso ocorre porque qualquer desenvolvimento a ser almejado requer uma estrutura forte o suficiente para alavancar todo o processo, ou seja, não basta apenas tentar estudar, deve-se perseguir bravamente o seu objetivo final, utilizando além da escola outros meios, como: a resolução individual de exercícios em casa e o estudo diário, para que seja realizada a aprendizagem. E é a falta ou a fragilidade dessa estrutura que causa o grande retrocesso no caminhar do surdo para a vida.
A maioria dos surdos entrevistados preferem se comunicar através da Língua Brasileira de Sinais (Libras), mas percebe-se um certo grau de desinformação e desmotivação por parte, não apenas das pessoas em geral, como também da família em relação a importância da aquisição desta língua. Isso ocorre pelo fato de que, tanto as pessoas surdas quanto as ouvintes, vivem em uma sociedade que tem como base lingüística, a língua materna dos falantes nativos do país (no caso do Brasil, o português), e não a Língua de Sinais, que é a realidade de um grupo minoritário.
É notável que a Libras é a língua natural de acesso ao conhecimento pelo surdo, sendo também importante meio para facilitar a comunicação entre surdo-surdo e surdo-ouvinte.
Atualmente no Brasil, já existe um sistema de escrita das línguas de sinais, denominado: signwriting, que foi idealizado e desenvolvido por Valérie Sutton do Deaf Action Comitee, da Califórnia, U.S.A.
O signwriting ainda é uma tecnologia muito incipiente no Brasil, pois somente as pessoas conhecedoras dessa nova metodologia e os surdos aprendizes podem fazer uso da mesma e se comunicarem entre si. Não havendo como ser efetivado o diálogo entre aqueles que desconhecem esse tipo de escrita.
Dessa forma, o aluno surdo ainda apresenta-se como ser limitado diante das opções que lhe são oferecidas. O português escrito é o único meio através do qual ele pode comunicar-se na língua vigente do seu país, precisando percorrer um árduo processo para que ele consiga não apenas conhecer, mas utilizar a língua portuguesa na forma escrita.
Vale salientar que a Lei 10.436/02, que oficializou a Libras em âmbito federal, não descarta a importância do português escrito; ao contrário, ressalta em seu Art. 4º que a primeira (a Libras) não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa. Portanto, é essencial que o surdo conheça a língua de seu país, pois como não pode praticá-la oralmente, ele o fará na modalidade escrita.
A aquisição do português pelo surdo é fundamental para facilitar a sua integração na sociedade, pois se ele não pode utilizá-la oralmente, como acontecerá a comunicação com aqueles que desconhecem a Libras? Um diálogo poderá ser estabelecido na modalidade escrita, desde que o surdo saiba como transcrever as suas idéias para o papel. E se assim o fizer, as suas condições de indivíduo singular e membro de uma comunidade minoritária serão largamente ampliadas no convívio social.
Nota-se que um dos maiores problemas do surdo não é a surdez em si, mas o preconceito existente no meio onde vive. Apesar disso, o nível de aceitação da surdez melhorou muito, pois no passado, o surdo vivia como um estranho na sua própria casa.
Não somente as pessoas ao redor do surdo, como também a família utiliza-se de várias formas de comunicação, e isto não contribui para sua formação lingüística. Ao contrário disso, só tende a dificultar, uma vez que, ele recebe uma avalanche de informações diversificadas, dificultando o seu processo de aquisição formal da linguagem.
Outro problema ainda maior é que nem todos tem conhecimento ou são proficientes na Língua Brasileira de Sinais Libras, tornando o trabalho educacional ainda mais complicado, pois muitas vezes não há um meio de comunicação entre surdos e ouvintes e até mesmo entre surdos e surdos. A produção textual do aluno surdo ainda não consegue apresentar características semelhantes ao português escrito com coerência e coesão, tendo em vista que a Libras apresenta características estruturais totalmente diferentes em comparação ao português escrito.
A Educação de Surdos não é diferente da Educação regular em seu objetivo porque ambas desejam o desenvolvimento harmonioso do educando sob os aspectos tanto individual como social. Porém, diferem em relação às estratégias utilizadas de acordo com o seu público alvo, local e individualização de atendimento, tipo de material pedagógico, currículo trabalhado e profissionais envolvidos. Assim, podendo oportunizar o desenvolvimento de alternativas educacionais.
Para que a educação desses indivíduos seja garantida, tendo em vista que as suas necessidades educacionais são bastante diversas da maioria das crianças e jovens, são necessários um conjunto de recursos e serviços educacionais organizados para apoiar e suplementar aqueles que principalmente fazem uso da Língua Brasileira de Sinais Libras, substituindo assim os serviços educacionais comuns.
Além do mais, o nosso trabalho como professora, revela-se de grande valor, pois a professora em sala de aula é fonte de estímulo e motivação, facilitando e monitorando todas as atividades para que os alunos interajam na escola, através: da oficina de redação, do Correio do Surdo, do Jornal do Surdo e da internet (nas diversas trocas de mensagens com amigos, e-mails, chats, listas de discussão, msn, Orkut etc.). Outros recursos são os torpedos que referem-se à outro tipo de comunicação individual via telefone celular, por meio de mensagens de texto, que os surdos utilizam bastante tanto na escola quanto fora dela.
Esses artifícios, tecnológicos ou não, auxiliam e contribuem enormemente na construção e efetivação da comunicação escrita, de forma descontraída e lúdica, pois a aprendizagem acontece de repente, sem que eles percebam.
É válido salientar que o nosso trabalho foi orientado sob uma proposta bilíngüe, ou seja, a Libras foi utilizada pela professora como fonte de mediação para que o estudante surdo conseguisse alcançar o conhecimento que se pretendia transmitir, e sob uma perspectiva interacional do discurso, em que a construção do conhecimento de mundo estava intimamente ligada às práticas sociais (como o uso dos artifícios metodológicos mencionados anteriormente).
Por conta das múltiplas dificuldades apresentadas pelo surdo, tanto na sua produção textual quanto na prática pedagógica em sala de aula, a professora sempre formulava atividades didático-pedagógicas e desenvolvia tecnologias educacionais para solucionar problemas tangíveis à aprendizagem daquele. Além do mais, faz-se necessário o oferecimento de atividades diversificadas para que o aluno não se sinta cansado por sempre desenvolver as mesmas tarefas. Uma ótima sugestão desenvolvida para evitar a repetição de estratégias foi levar para a aula, jogos educacionais voltados para a construção de palavras ou frases em português. Assim, o oferecimento de condições adequadas ao seu desenvolvimento escolar e intelectual estará garantido.
Todas essas atividades contribuem para que a percepção do aluno seja ativada, e sentindo-se motivado, o estudante começa a despertar para a funcionalidade do português em sua vida, ocorrendo então um gradativo processo de reconhecimento da língua. Essa funcionalidade refere-se à sua utilidade prática, ou seja, se ele aprende os conceitos de bilhete e os emprega escrevendo diversos bilhetes para seus amigos diariamente com o intuito de estabelecer uma comunicação, jamais esquecerá como isso é feito. Porém, se não houver utilidade, em breve, tornar-se-á algo passível de cair no esquecimento.
Apesar de toda a dificuldade existente na aquisição do português escrito pelo surdo, principalmente quanto à compreensão das normas gramaticais exigidas pela língua, torna-se imprescindível a sua aprendizagem, para possibilitar a esses sujeitos a ampliação de suas condições de indivíduos singulares e sujeitos plurais no convívio social.
Cabe à sociedade promover campanhas educativas e de conscientização, através dos meios de comunicação em massa, para que as pessoas passem a respeitar e valorizar os surdos, aprendendo como conversar com eles e como ajudá-los. Além de encorajar a expansão de projetos que, entre outras possibilidades, visem capacitar melhor os professores ouvintes e formar professores surdos que, incentivem a experimentação de trabalho pedagógico orientado também para o uso da Língua Brasileira de Sinais e ampliem, na esfera da pesquisa, o conhecimento sobre a mesma.
Um outro aspecto que não deve ser esquecido é o fato de que cabe à todos os cidadãos brasileiros, o dever de votar em políticos que estejam realmente comprometidos com a implementação de políticas públicas que visem melhorar as condições do ser humano e que as leis criadas comecem a vigorar, sendo cumpridas efetivamente por todos. Nossos governantes também não devem esquecer da situação da escola, destinando mais verbas para a mesma, oferecendo boas condições de trabalho aos profissionais da Educação Especial e criando o passe-livre para os portadores de deficiência e seus acompanhantes.
Faz-se necessário que haja um maior fortalecimento na relação escola-família para garantir uma melhor integração do surdo, como também seu êxito escolar. A família deve se integrar o mais cedo possível na Comunidade Surda para que a criança aprenda a valorizar a sua língua e a sua cultura, conscientizando-se do seu papel como sujeito ativo e transformador de sua realidade, lutando pela conquista de seus direitos como cidadão.
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