A Função Social da Escrita.
FACULDADE DOM BOSCO
PIRACICABA – SP
2009
RESUMO
Este trabalho fundamenta-se a partir de uma revisão de literatura, seguida de uma entrevista como pesquisa de campo, visando uma compreensão da escrita, seu saber e, principalmente, sua função social. Partindo da História da escrita, como base deste, seguimos com indagações sobre o problema do analfabetismo em nosso país e sua complexidade diante uma vida social da atualidade. Exploramos o termo letramento, seu significado e importância à prática de leitura e escrita, propondo, assim, um melhor entendimento quanto à necessidade destes saberes e, através do trabalho de campo, exibir as dificuldades encontradas por uma pessoa desprovida destes, buscando indicar o quão essencial é, não apenas saber ler e escrever, mas possuir tal conhecimento seguido de sua prática para, assim, ser considerado como membro atuante da sociedade em que está inserido.
Palavras-chave: Leitura, escrita, analfabetismo, letramento.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1
HISTÓRIA DA ESCRITA
1.1. MINHA HISTÓRIA DE ESCRITA
CAPÍTULO 2
LETRAMENTO, ALFABETIZAÇÃO E O IMPACTO DA LEITURA E DA ESCRITA NA VIDA MODERNA
CAPÍTULO 3
A ESCRITA NA VIDA DE ALGUÉM
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Logo que penso no título de minha pesquisa, lembro-me de um dos principais fatores que me fizeram escolher o assunto, que foi o filme Central do Brasil, mais especificamente sua primeira parte.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
INTRODUÇÃO
Hoje, como estudante de Pedagogia, pude compreender, com o decorrer do curso e os conteúdos tratados, a real importância da escrita em nossas vidas, principalmente, tratando-se de uma necessidade básica à inclusão em nossa sociedade. A escrita passou do domínio de uns poucos para um saber universal, considerado um direito de todos.
O objetivo da produção textual tem como fonte primordial uma interlocução entre seus agentes, uma relação de compreensão do autor para com o leitor, deixando sempre espaços para uma variação de sentidos diferentes entre eles. A palavra comporta duas faces, pois procede de alguém e dirige-se para outro alguém, constituindo, assim, o produto da interação do locutor e do ouvinte (BAKHTIN, 2002).
Segundo Vygotsky (1998), o domínio de relações como a escrita nasce nas relações com o outro, por conta de nascermos em um mundo letrado, onde escrever uma lista de compras ou preencher um formulário são atividades que tornam o indivíduo mais adaptado à sociedade.
A escrita é uma forma legítima de autoria do discurso que, além de registrar a fala, apresenta ideias, conceitos e concepções de mundo e de vida, que traduzem as representações que as pessoas fazem de seu cotidiano e de seus pensamentos.
Nos dias de hoje, o não conhecimento da escrita dificulta a vida dos sujeitos, uma vez que nos padrões da sociedade atual ela é um pré-requisito para que a pessoa ter pleno acesso à cultura, ao poder. Sendo assim, a exclusão dos analfabetos acaba por acontecer.
A escrita, de alguma forma, faz parte do cotidiano de todas as pessoas que convivem em uma sociedade complexa, onde não é possível atingir seus objetivos ou realizar todas as suas tarefas apenas por meio da fala. Sendo assim, o saber escrever é fundamental na vida das pessoas, mas, e aquelas que não tiveram a oportunidade de se integrar a esse aprendizado? Existem preconceitos com os analfabetos? Ainda existem chances para que eles possam vir a participar do mundo dos alfabetizados?
A partir dos comentários e indagações postos, nesse trabalho vamos pesquisar, através de fontes teóricas de autores consagrados quanto ao tema, a função social da escrita, juntamente com seus agravantes e suas maravilhas.
No Capítulo 1, em sua primeira parte veremos uma breve história da escrita, focando desde seu surgimento, suas fases, os alfabetos, os tipos de escrita e seus objetivos, pretendendo, assim, uma ampliação desde as origens desta ação indispensável nos dias de hoje. Em sua segunda parte, narro a minha própria história de escrita, o percurso que percorri até hoje nesse mundo da escrita que, particularmente, me encanta, seguindo o capítulo com a importância do ato de escrever para uma vida em sociedade, comentando seus agravantes e seu bom resultado.
No Capítulo 2, trataremos do impacto da escrita na vida moderna, comentando sobre os alfabetizados versus os analfabetos, suas diferenças de vida e tratamento perante uma sociedade letrada, juntamente com considerações sobre o fenômeno fundamental da importância do saber ler e escrever nos dias atuais e, especialmente o termo Letramento. Em sequência, veremos os desafios da escrita no mundo contemporâneo e estabeleceremos relações com alguns livros, estabelecendo uma interlocução com algumas ideias sobre o assunto em questão.
No capítulo 3, nossa intenção foi colher um depoimento de uma pessoa não alfabetizada e, a partir dele, fechar, mesmo que provisoriamente, os pontos de vista apresentados no decorrer do trabalho sobre a função social da escrita.
CAPÍTULO 1
HISTÓRIA DA ESCRITA
Escrevendo a gente inventa. Inventa um romance, uma saudade, uma mentira… Escrevendo a gente faz história. Escrevo pra espantar os demônios, pra sentir o mundo, pra seduzir a vida.
(Marina Jacon)
A escrita surge a partir da necessidade do homem de criar registros, armazenar dados, enfim, preservar sua história. Os vestígios mais antigos de escrita encontrados são da região da baixa Mesopotâmia há mais de 5500 anos. A história da escrita, sem seguir uma evolução cronológica, caracteriza-se em três fases distintas: a pictórica, a ideográfica e a alfabética.
Você já imaginou um mundo onde não existisse a escrita? Como você iria escrever um bilhete, uma carta ou uma redação? Não existiriam listas telefônicas, nem livros, nem revistas e muito menos jornais, ou, se existissem, seriam só com figuras, você já imaginou? Se existissem professores, as aulas seriam, normalmente, expositivas, e não se ouviriam as famosas frases: “Leiam tais textos para a próxima aula”. Ah, e também não existiriam escritores, é óbvio. Histórias, romances, contos, poesias, só existiriam se fossem contadas de gerações para gerações. Nada seria documentado, sendo assim não teríamos Certidão de Nascimento e muito menos Carteira de Identidade e Atestado de Óbito (ANDRADE, 2001).
A história da escrita revela que a necessidade do homem em deixar marcas fez com que surgisse um meio de comunicação eterno. A escrita traçou o destino da humanidade e deu ao homem a possibilidade de se inscrever no mundo, pois, ao deixar marcas nas cavernas, o homem marcou seu destino, fazendo com que seus traços fossem lidos e interpretados muitos anos após suas inscrições (BOTELHO, mimeo s/d).
A linguagem escrita, como a linguagem falada, é um sistema simbólico criado pelo homem. No fluxo da comunicação verbal, grupos humanos passaram a utilizar linhas, pontos e outros sinais para representar, registrar, recordar e transmitir informações, conceitos e relações, produzindo assim a escrita (FONTANA, 2002).
A fase pictórica corresponde a desenhos, chamados de pictogramas e os pictogramas não estão associados a um som, mas sim à imagem do que se pretende representar. Estes também consistem em representações bem simplificadas dos objetos da realidade. Os pictogramas aparecem em inscrições antigas, mas podem ser vistos de maneira mais elaborada na escrita asteca e, recentemente, nas histórias em quadrinhos.
A fase ideográfica é representada pelos ideogramas, que são símbolos gráficos. Os ideogramas representam diretamente uma ideia completa em um único desenho como, hoje em dia, certos sinais de trânsito. As escritas ideográficas mais importantes são: a egípcia, a mesopotâmica e a chinesa.
Esses desenhos foram ao longo de sua evolução perdendo alguns dos traços mais representativos das figuras retratadas e tornaram-se uma simples convenção de escrita. As letras do nosso alfabeto vieram desse tipo de evolução (CAGLIARI, 2006, p.108).
A fase alfabética se caracteriza pelo uso das letras, as quais, embora tenham se originado nos ideogramas, perderam o valor ideográfico assumindo uma nova função da escrita, ou seja, a representação puramente fonográfica (CAGLIARI, 2006). A escrita alfabética representa a palavra falada com base em seus aspectos sonoros e nas possibilidades de uso das letras. Estas são grafismos (marcas) que representam os aspectos sonoros das palavras ditas.
A escrita da humanidade se utilizou de símbolos que foram evoluindo com o passar dos tempos. O uso de símbolos, que expressam fatos, ideias etc., pode ser considerado como a mais antiga manifestação de escrita produzida com a intenção de sua leitura.
O alfabeto surge a partir da decomposição da palavra em sons simples. O primeiro povo a criar signos para esses sons foram os fenícios e então a escrita evoluiu e passou a ser alfabética assim criando o alfabeto dos fenícios, que foi o que originou todos demais alfabetos.
O alfabeto fenício arcaico foi o mais difundido no mundo antigo e é anterior ao século XV a.C., foi constituído de 22 signos que permitiam escrever qualquer palavra e sua expansão ocorreu de forma rápida devido à sua simplicidade (TRINDADE, mimeo, s/d).
Um importante fato para nossa civilização foi a adoção do alfabeto fenício pelos gregos por volta de VIII a.C. Os gregos incorporaram, neste alfabeto, alguns sons vocálicos e o alfabeto grego clássico que conhecemos é composto de 24 letras (signos), vogais e consoantes. Deste alfabeto origina-se o alfabeto etrusco, que junto com o alfabeto gótico da Idade Média que também é originário do alfabeto grego clássico dá origem ao nosso alfabeto latino, o mesmo que dominou o mundo ocidental devido a expansão do Império Romano. O nosso alfabeto é fonográfico e representa, separadamente, as vogais e as consoantes (TRINDADE, mimeo, s/d).
Qualquer que seja o sistema de escrita, ele tem a função de representar as memórias, hoje, sendo possível tê-las registradas em livros e cadernos. Antes da criação da escrita, o conhecimento e/ou cultura tinham um tempo mais curto, por serem transmitidos oralmente, era restrito a quem ouvia e corria riscos de mudanças e, até mesmo, do esquecimento. Nenhuma criação tecnológica teve maior repercussão e benefício na história da humanidade do que a criação da escrita (OLIVEIRA, 2002, p.14).
Sabemos que, conforme um sistema de escrita é utilizado por um grande número de pessoas em diferentes lugares e para diversas formas de uso, a forma das letras do alfabeto admite variantes.
O latim, por exemplo, não tinha as letras minúsculas até a Idade Média, mas após se compor por vários tipos de letras, surge a escrita cursiva (CAGLIARI, 2006).
A escrita cursiva tem o uso particular e individual, pois é de difícil leitura e exige domínio perfeito dos movimentos para sua realização. Esse sistema é o mais complexo sistema de escrita existente, pois varia de pessoa para pessoa e sua habilidade com o mesmo.
O sistema cursivo é mais fácil para as pessoas acostumadas a usá-lo diariamente, porém, para decifrá-lo quando traçado por outra pessoa, a dificuldade surge em alguns momentos, afinal, muitas vezes não deciframos o que nós mesmos escrevemos em determinado momento. Vivemos num mundo onde a escrita se realiza através de muitos tipos de alfabetos. Como aprendemos a ler todos eles, não tomamos consciência dessa realidade (CAGLIARI, 2006, p.97).
Seja qual for a escrita e/ou sua forma, esta tem como objetivo permitir a leitura, que é uma interpretação que traduz os símbolos escritos em fala. Alguns tipos de escrita se preocupam apenas com a expressão oral, já outras com a transmissão de significados específicos, que devem ser decifrados pela pessoa habilitada. Esse tipo de escrita, que se preocupa com a transmissão de significados específicos, muitas vezes serve de palavras-chave para a sua decifração. São exemplos as placas e sinais de trânsito com os quais nos deparamos a todo momento.
A escrita se refere especificamente ao signo linguístico e à atividade de fala e, se diferencia de outras formas de representação do mundo, não só porque induz a leitura, mas também porque essa leitura é motivada, isto é, quem escreve pede ao leitor que interprete o que está escrito, não pelo puro prazer de fazê-lo, mas para realizar algo que a escrita indica (CAGLIARI, 2006, p.105).
Vivemos em contato com vários tipos de escrita: logotipos, rótulos de produtos, textos de jornais e revistas, televisão etc.. Todas essas informações nos levam a refletir sobre o grande número de possibilidades da escrita e suas marcas individuais para a leitura, que foram facilitadas como quando se estabeleceu um código e se convencionou um desenho para as letras, facilitando, assim, a comunicação entre as pessoas em uma mesma sociedade.
O nosso sistema de escrita, o Português, usa vários tipos de alfabeto e, mesmo assim não é totalmente alfabético, pois além das letras ele se compõe também com outros caracteres ideográficos, como os sinais de pontuação e os números (CAGLIARI, 2006).
É complexa a relação entre as letras e os sons da fala pelo fato de que a escrita não é como um espelho da fala, pois existem várias maneiras de se ler o que está escrito. Por isso, os sinais gráficos existentes na escrita do português conferem um valor sonoro especial às letras e sinais modificadores da entonação da fala, são os chamados sinais diacríticos: acento agudo, acento circunflexo, acento grave, ponto de interrogação, ponto de exclamação, til, aspas, ponto final, reticências etc..
Quando falamos, vemos pessoas, coisas, gesticulamos, rimos, e isso tudo não se traduz em letras ou sinais de pontuação; se passarmos só os fonemas para a escrita, o texto perde muito de suas características e pode até tornar-se confuso para quem o lê sem ter presenciado o ato da fala que aquela escrita representa. Quem escreve precisa recuperar, através de palavras, esses fatos que na fala aparecem representados pelas circunstâncias, pelas atitudes gestuais dos interlocutores etc. A escrita tem que criar, com palavras, o ambiente não-linguistico que serve de contexto para quem fala (CAGLIARI, 2006, p.120).
Bastante comum em nossa escrita também é o uso de abreviaturas e siglas para determinadas palavras, como exemplo: cça (criança), qq (qualquer), av. (avenida) etc.. Algumas abreviaturas chegam a ser consideradas, com o tempo, como palavras com vida própria, de tão acostumados que estamos de usá-las frequentemente (CAGLIARI, 2006).
Outra questão atual e bem comentada em nossa sociedade é o caso da linguagem dos internautas, usada pelos usuários de chats na internet.
Com o fenômeno da Internet aumentou, e muito, o número de escritores. Quem sabe pelo fato de que a rede anima a escrever, pois nela é difícil falar. Hoje, no Brasil, mais de um milhão de pessoas estão ligadas à rede. Todos os dias milhares de novos brasileiros se conectam à Internet e essa comunidade, evidentemente, se comunica entre si (ANDRADE, 2001).
Linguagem onde são trocadas as letras componentes das palavras e as abreviaturas existem a todo momento e não apenas as conhecidas da sociedade (citadas acima), ou seja, uma linguagem totalmente fora do entendimento de uma pessoa não usuária deste meio e que está, muitas vezes, tomando conta da escrita convencional dos internautas. Uma linguagem informal, a qual se aproxima muito da língua falada do cotidiano, o internauta foge das normas rígidas da língua escrita, já que não tem tempo para redigir seu texto e fazer um planejamento prévio do seu discurso. Deste modo, muitas vezes cria abreviações, símbolos e sinais que tornam mais rápida a comunicação (ANDRADE, 2001).
Além de confundir o jovem sobre o modo como se escreve corretamente determinada palavra colocada no papel e, algumas vezes ele não ter conhecimento sobre a maneira exata de escrevê-la, no caso de uma avaliação, por exemplo, esta linguagem é tão comum para ele, que se torna a correta, esquecendo-se da tradicional, até mesmo fora do mundo virtual, como é o caso do uso da escrita na escola.
As polêmicas questionam se a linguagem do mundo virtual não invadirá o mundo real ou se o linguajar tipicamente virtual não estaria transgredindo a norma culta de nossa língua e prestes a invadir o mundo real e ainda se as crianças e adolescentes frequentadores das salas de bate-papo poderiam estar aprendendo a escrever errado, em virtude da forma de escrever na Internet (ANDRADE, 2001).
A escrita começou a surgir no momento em que o obejtivo do ato de representar pictoricamente tinha como endereço a fala e, através dela, o leitor se informasse sobre as coisas. Sua primeira função era informativa, porém, hoje, não é a única nem a principal função da escrita. (CAGLIARI, 2006).
A escrita, seja qual for, sempre foi uma maneira de representar a memória e as histórias vivenciadas pelas pessoas. Muitas vezes ela serve como um tesouro que guarda a memória coletiva, religiosa, mágica, científica, política, artística e cultural. Ou seja, a escrita sempre vai nos dar a oportunidade de criar um baú de recordações e ensinamentos culturais. A escrita é uma das manifestações mais antigas da humanidade, ao lado da arte e da arquitetura (CAGLIARI, 1987).
Diante da definição da questão de minha investigação, que pretende discutir a função social da escrita, eu ficava me perguntando: como compreender a escrita nos dias atuais, diante de tantas formas de comunicação? Essa questão evocou-me às experiências pessoais com a escrita, pois, quanto mais nos apropriamos dela, podemos afirmar e reafirmar nossa singularidade, uma vez que quanto menos apropriação dela temos, mais excluídos estamos.
Assim, mediada pela aluna que sou, parto em busca de minha própria história da escrita, pois como um:
[…]sistema de signos histórico e social que possibilita ao homem significar o mundo e a realidade […] aprendê-la é aprender não só as palavras, mas também os seus significados culturais e, com eles, os modos pelos quais as pessoas do seu meio social entendem e interpretam a realidade e a si mesmas (PCN-LP, p.22).
1.1. MINHA HISTÓRIA DE ESCRITA
Não me recordo muito bem sobre a minha primeira experiência com a escrita, mas jamais me esquecerei de dois professores, especiais e fundamentais em minha vida. Eles sempre estavam presentes, guiando-me na fase do letramento, quando cursava o Ensino Fundamental na escola Sud Mennucci, anos de 1994 e 1995.
Foram pessoas magníficas, que tiveram que seguir outros rumos durante o ano letivo, mas que continuaram a se comunicar comigo através de cartas semanais por um longo tempo. Tempo que até hoje me deixa ótimas lembranças e muitas saudades. Creio que uma boa parte de meu gosto pela escrita surgiu nessas conversas e entretenimentos: as valiosas cartas.
Segundo os PCN de Língua Portuguesa,
A linguagem é uma forma de ação interindividual orientada por uma finalidade específica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos momentos da sua história. Dessa forma, se produz linguagem tanto numa conversa de bar, entre amigos, quanto ao escrever uma lista de compras, ou ao redigir uma carta diferentes práticas sociais das quais se pode participar (PCN-LP, p.22).
Desde então, em todas as fases de minha vida, tenho a participação direta da escrita. Boa parte da minha adolescência teve a participação dos tão queridos diários (melhor amigo das meninas) e, principalmente, de cadernos que se transformavam em jóias, compostos por frases, reflexões, músicas, poemas e, até mesmo minhas próprias criações como poetisa. Lembro-me de perder horas e esquecer do mundo real que me cercava quando estava na companhia de tão belas misturas de palavras.
Estes tesouros participantes de minha adolescência me acompanham até hoje, pois como cita Toquinho na música O Caderno: o que está escrito aqui comigo ficará guardado se lhe dá prazer&
Em minha fase colegial (Ensino Médio) era fascinada pela disciplina Língua Portuguesa e suas maravilhas escondidas por trás dos códigos, tanto que assim que o conclui, optei por uma faculdade de Letras, da qual desisti por me sentir sem base prévia para tamanho conhecimento, que é o universitário.
Hoje, cursando Pedagogia, sinto-me preparada teoricamente para quem sabe, um dia, ingressar em Letras novamente no intúito de dominar amplamente os segredos da escrita.
Creio que o gosto pela leitura seja um dos principais motivos que me desperta, cada vez mais, o interesse pela escrita e sua melhor forma de elaboração. A escrita só é significada pela leitura e vice-versa, a leitura da palavra só existe porque há a escrita.
nas narrativas, vida e texto duas formas do tecer que se entrelaçam – dão a ver, dão a ler, as especificidades de vivências diferenciadas, nas quais os saberes, a emoção, os sentimentos experimentados de angústias e de raiva, os sonhos, os fantasmas, o amor, que muitas e muitas vezes escapam à observação objetiva, fundem-se em tramas e dramas irredutíveis uns aos outros (FONTANA, 2000, p.223).
Lendo, encantei-me pelas formas que algumas pessoas conduzem seus textos, como é o caso de Pedro Bial, Cazuza, Zibia Gasparetto e Padre Fábio de Melo, autores que admiro muito pelo encanto de suas palavras. Palavras que mesmo em diferentes tipos de textos/escritas conseguem nos prender pela leitura de modo a esquecermo-nos e perdermo-nos no tempo. Tempo que difere de pessoa para pessoa, eu, por exemplo, gosto da noite, tanto para escrever como para uma leitura. Sua calmaria, seu silêncio e sua beleza formam um conjunto perfeito e ideal, na minha opinião, para desfrutar da leitura e da produção de textos. Cazuza, em seu poema Trapaça, representa com suas doces palavras o impacto da noite em algumas pessoas:
Quando a insônia me convence
Que essa solidão é o céu
Uma calma congelada
Paralisa a minha dor
E o dia nasce azul e feliz
O mundo acorda e eu vou dormir
Quando a noite me acostuma
A enxergar na escuridão
Você vem e acende tudo
E eu sou um cego a procurar
Alguém no mundo para me dizer
Se o amor existe, serve para quê?
(Cazuza, sem data)
Em cada ano que se passou de minha vida, tive professores exemplares que me despertaram e continuam despertando o gosto pela prática da escrita. Prática que muitas pessoas não gostam de exercer, mas que sabem que seu aprendizado é essencial em suas vidas, sendo de importância extrema para a participação na sociedade.
No curso de Pedagogia algumas disciplinas me despertaram a curiosidade sobre o tema da escrita, o que me fez escolhê-lo para meu trabalho de conclusão de curso. Durante as pesquisas e a elaboração do trabalho percebi que até eu mesma, sendo letrada e cursando o nível superior, encontro diversas dificuldades em expressar minhas ideias no papel, em encontrar e empregar a palavra certa de modo que o leitor possa chegar o mais perto possível do meu pensamento.
Narrar pressupõe uma comunidade de vida e de discurso entre o narrador e o ouvinte, fundada em uma tradição e memória comuns. Aquele que narra (com) partilha saberes e vivências nos quais seus ouvintes se re-conhecem e, pelo re-conhecimento, inserem-se na história que está sendo narrada, fazendo sugestões sobre sua continuação, vivendo essa continuação (FONTANA, 2000, p.223).
Por vivermos em um mundo letrado, onde as palavras estão por toda parte (outdoors, televisão, embalagens de produtos etc.), o saber escrever é fundamental na vida das pessoas, pois estas necessitam se comunicar com o outro não apenas através da fala, mas também por bilhetes, cartas e e-mails, sabendo expor suas ideias no papel de forma compreensiva ao outro. Assim, penso em meu papel de professora, pois a responsabilidade de ensinar um aluno a escrever:
é tanto maior quanto menor for o grau de letramento das comunidades em que vivem os alunos. […] cabe à escola promover a sua ampliação de forma que, progressivamente, durante os oito anos do ensino fundamental, cada aluno se torne capaz de interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos eficazes nas mais variadas situações (PCN-LP, p.21).
Em nossa sociedade atual, é necessário que o sujeito seja capaz de compreender e interpretar textos, assim como produzir textos próprios, não bastando apenas saber reproduzir os signos que formam as palavras, necessita-se de um contexto. O papel da escrita como comunicação social implica o saber escrever formalmente, visando a troca de informação entre sujeitos.
Dominando a escrita, o sujeito tem a possibilidade de autonomia para expressar suas ideias, pensamentos e planos, ao mesmo tempo em que também tem a possibilidade de fantasiar, viver um mundo fora de sua realidade atual. Ou seja, na multiplicidade de possibilidades de significação instaurada pela palavra (BAKHTIN, 2002), pela escrita prendemo-nos ao real, mas também temos a possibilidade da liberdade de voar em um mundo de sonhos, onde tudo é possível, conforme nossas vontades.
Há, ainda, outros fatores que destacam a importância do conhecimento da escrita, tais como a busca por emprego, a porta para a cultura e a entrada para os saberes (que serão discutidos nos próximos capítulos). Tais aspectos são fundamentais na vida do sujeito que vive em sociedade.
Estamos tão acostumados a conviver com a escrita, que não nos damos conta de como vive uma pessoa analfabeta, não paramos para pensar e questionar este problema. O ato de escrever está tão presente em nossas vidas que não percebemos que muitas pessoas não possuem este saber e, muitas vezes, nem tiverem a oportunidade para tal. Muitas famílias de classes sociais menos favorecidas vêem a escrita apenas existente para uma assinatura de seu nome ou para se fazer listas de compras e recados. Ou seja, para essas pessoas a escrita é apenas uma pequena garantia de sobrevivência na sociedade e não, como para os outros grupos de classes sociais, um passatempo, uma arte, pois escrever também é uma forma de expressão artística.
Ninguém escreve ou lê sem motivo, sem motivação. É justamente por isso que, em certas culturas, o uso da escrita se apresenta como algo secundário e dispensável mesmo e, em outras, como imprescindível. Muitas pessoas podem até ler jornal todos os dias, mas escrevem muito raramente (CAGLIARI, 2006, p.102).
É preciso uma motivação para escrever, e não apenas o saber fazer. Grande parte da população existente nas cidades não necessita da escrita para cumprir seu trabalho, pois esta não é exigida em determinados serviços. Assim, os programas de alfabetização de adultos devem ser elaborados de acordo com as reais necessidades e vivências do sujeito, e não a partir de uma cultura taxada, pela sociedade, como a ideal. Infelizmente, a arte literária não é motivação de escrita para todas as pessoas, muito pelo contrário, ela é a motivação de muito poucos.
Sendo assim, este trabalho focará a importância social da escrita e seus agravantes, como o preconceito e a dificuldade de uma pessoa analfabeta para viver entre os alfabetizados, visando despertar a atenção para um problema que está bem perto de nós, mas que nem sempre damos a devida importância, por não ser um assunto comentado diariamente e, por nós mesmos não estarmos vivendo tal situação.
CAPÍTULO 2
LETRAMENTO, ALFABETIZAÇÃO E O IMPACTO DA LEITURA E DA ESCRITA NA VIDA MODERNA
A educação é um processo social, é desenvolvimento. Não é a preparação para a vida, é a própria vida.
(John Dewey)
A palavra alfabetismo (estado ou qualidade de alfabetizado) não é de uso frequente em nossa sociedade, enquanto analfabetismo, que significa o seu contrário, é de uso bastante frequente e de compreensão familiar e universal.
Conhecemos bem, e nos acostumamos, sobre a condição de um analfabeto, que não é apenas o estado do indivíduo que não teve acesso à leitura e a escrita, mas sim quanto a sua exclusão no momento de exercer, em sua totalidade, o que é seu direito como cidadão, como ter acesso aos bens culturais da sociedade em que está inserido (SOARES, 2005).
O conceito de alfabetização também denota um conjunto de saberes sobre o código escrito da sua língua, que é mobilizado pelo indivíduo para participar das práticas letradas. Daí se dizer que um indivíduo é analfabeto, semi-analfabeto, semi-alfabetizado para referir-se aos modos, graus ou níveis desses saberes que ele apresenta (KLEIMAN, 2005, p.13).
Porém, o fenômeno do saber ler e escrever, e sua devida importância, é uma preocupação que surgiu recentemente em nosso contexto social por conta de uma nova realidade em que não basta apenas o saber ler e escrever, é preciso também saber fazer uso da leitura e da escrita, saber responder às exigências que a sociedade faz de ambas as práticas, pois é preciso compreender o sentido em uma determinada situação que envolva qualquer produto cultural escrito.
Durante muito tempo, era considerado analfabeto o indivíduo incapaz de escrever seu próprio nome. De um tempo para cá, o que define este indivíduo como analfabeto ou alfabetizado é o saber escrever um bilhete simples ou um recado, que são ações da escrita que a fazem ser uma prática social.
Ser alfabetizado hoje significa incorporar as práticas da leitura e da escrita, adquirir competência para usá-las, envolver-se através de livros (assim como jornais, revistas etc.), saber preencher formulários, escrever cartas, localizar-se em catálogos telefônicos, compreender uma bula de remédio entre outros (SOARES, 2005).
Um indivíduo, mesmo não sabendo ler e escrever, pode ser considerado letrado no momento em que a leitura e a escrita têm forte presença em sua vida, partindo de um mero interesse em ouvir uma leitura alheia ou um simples ditado para que outra pessoa escreva por ele, pois desta maneira o indivíduo encontra-se envolvido em práticas sociais de leitura e escrita (SOARES, 2005).
É letrada a pessoa que consegue tanto ler quanto escrever com compreensão uma frase simples e curta sobre sua vida cotidiana.
É iletrada a pessoa que não consegue ler nem escrever com compreensão uma frase simples e curta sobre sua vida cotidiana (UNESCO, 1958, p.4).
Segundo Magda Soares, em seu livro Letramento: um tema em três gêneros (2005, p.48):
Escrever: é também um conjunto de habilidades e comportamentos que se estendem desde simplesmente escrever o próprio nome até escrever uma tese de doutorado& uma pessoa pode ser capaz de escrever um bilhete, uma carta, mas não ser capaz de escrever uma argumentação defendendo um ponto de vista, escrever um ensaio sobre determinado assunto[&] Assim: escrever é também um conjunto de habilidades, comportamentos e conhecimentos.
Quando pensamos em escrever, somos levados a uma releitura da realidade, de momentos, pois através da escrita recriamos e revivemos experiências já vividas. Cada pessoa tem, em sua escrita, a leitura de seu próprio mundo, que é transmitido para o leitor.
Ao nascer, cada um de nós mergulha na vida social, na história, e vive, ao longo de sua existência, distintos papéis e lugares sociais, carregados de significados estáveis e emergentes que nos chegam através dos outros. Mediados por nossos parceiros sociais, próximos e distantes, conhecidos e ignorados, integramo-nos progressivamente nas relações sociais, nelas aprendendo a nos reconhecermos como pessoas (FONTANA, 2000, p.222).
O letramento (palavra que apareceu pela primeira vez por Mary Kato, 1986) resulta da ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e escrita; é o estado ou condição que adquire um grupo social, ou indivíduo, como consequência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais (SOARES, 2005).
[&]um indivíduo alfabetizado não é necessariamente um indivíduo letrado; alfabetizado é aquele indivíduo que sabe ler e escrever; já o indivíduo letrado, o indivíduo que vive em estado de letramento, é não só aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e escrita, pratica a leitura e a escrita, responde adequadamente às demandas sociais de leitura e escrita (SOARES, 2005, p.39).
O termo letramento surgiu ao lado de alfabetização devido à mudança na maneira de considerar o significado do acesso à leitura e à escrita em nosso país da mera aquisição da tecnologia do ler e escrever à inserção nas práticas sociais de leitura e escrita (SOARES, 2005, p.21).
Escrita, alfabetização e letramento estão ligados entre si, como uma relação produto/processo: os sistemas de escrita são como um produto cultural e, alfabetização e letramento são processos de aquisição de um sistema escrito.
A alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem& pertence, assim, ao âmbito do individual (TFOUNI, 2006, p.9).
O objetivo do letramento é investigar não somente a pessoa alfabetizada, mas também a analfabeta, desligando-se da verificação somente do individual e, focando-se no social, pois a alfabetização, como processo individual, não se completa por conta de a sociedade estar sempre em processo de mudança e a atualização individual para acompanhar essas mudanças é constante (TFOUNI, 2006).
Assim, de um ponto de vista sociointeracionista, a alfabetização, enquanto processo individual, não se completa nunca, visto que a sociedade está em constante movimento.
Enquanto a alfabetização ocupa-se da aquisição da escrita, o letramento concentra-se nos aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade (TFOUNI, 2006).
Quando dizem que uma pessoa que não incorpora os usos da escrita, não se apropria plenamente das práticas sociais de leitura/escrita, não estão se referindo a índices de alfabetização, mas sim, a níveis de letramento.
A ausência da escrita em uma sociedade é tão importante quanto sua presença, e, ambas são fatores que atuam ao mesmo tempo como causa e consequência de transformações sociais, culturais e psicológicas.
Para Vygotsky (1984), segundo Tfouni (2006, p.21): o letramento também representa a causa da elaboração de formas mais sofisticadas do comportamento humano que são os chamados processos mentais superiores, tais como: raciocínio abstrato, memória ativa, resolução de problemas etc.
Nas sociedades modernas, podemos dizer que não existe o letramento grau zero, que seria equivalente ao iletramento. Segundo o processo sócio-histórico, o que existe nas sociedades industriais modernas são graus de letramento, sem que com isso suponha-se a sua inexistência.
A visão etnocêntrica (forma de pensamento de quem crê na supremacia do seu grupo étnico) cria certa confusão entre não-alfabetizado e iletrado, por exemplo: os membros analfabetos de uma comunidade civilizada tratam e consideram as palavras de um modo semelhante aos selvagens (TFOUNI, 2006, p.24). O etnocentrismo pode ser esquecido, começando a se considerar alfabetização e letramento como processos interligados, porém separados. Assim, também estaremos separando o letramento do processo de escolarização, que comumente acompanha o processo de alfabetização.
Ao contrário do que se pensa, os não-alfabetizados têm capacidade para desviar seu raciocínio e resolver conflitos que se estabelecem no plano da dialogia. Assim, a questão não está em ser ou não, alfabetizado enquanto indivíduo, mas sim em ser ou não letrado na sociedade em que vive (TFOUNI, 2006).
Começar a dizer nunca é tarefa simples. E começar a escrever torna-se trabalho árduo e duplamente complexo (TFOUNI, 2006, p.29).
Se ao falar estamos aprisionados pela ilusão da completude, ao escrever ficamos presos em uma contradição, que tem a ver com a ilusão da linearidade do pensamento (e da transparência da linguagem) e a necessidade de imaginar um interlocutor ausente, muitas vezes fantasmático e idealizado, para o qual precisamos planejar e organizar o nosso discurso.
Não existe uma questão exata do que seja o letramento. A necessidade de se começar a falar disso surgiu da tomada de consciência, dos linguistas, de que havia algo além, mais amplo e, até determinante em relação ao sentido do termo alfabetização e sua função. A palavra letramento não é e não deve ser usada como sinônimo de alfabetização.
A ênfase do letramento é sempre colocada nas práticas, habilidades e conhecimentos voltados sempre para a codificação ou decodificação de textos escritos (TFOUNI, 2006).
O letramento pode atuar indiretamente, e influenciar até mesmo culturas e indivíduos que não dominam a escrita. Isto nos mostra que o letramento é um processo mais amplo que a alfabetização. Como diz Magda Soares em Letramento: um tema em três géneros (p.15): letramento& uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita.
Em nosso país existem algumas pesquisas que avaliam o nível de letramento de jovens e adultos, considerando como alfabetizado (o termo correto seria letrado) o indivíduo que tenha, no mínimo, completado a 4ª série do Ensino Fundamental, com base no propósito de que são necessários quatro anos de escolaridade para a apropriação da leitura e da escrita e de seus usos sociais. Mas, quando se pensa e calcula sobre o analfabetismo do Brasil seguindo esses critérios, o índice cresce de forma assustadora e inesperada (SOARES, 2005).
Estarmos incorporando a palavra letramento em nosso vocabulário significa que compreendemos que nosso problema não se resume apenas em ensinar leitura e escrita, mas também em levar o indivíduo todos eles a fazer uso dessa leitura e escrita de forma a envolver-se, principalmente, em suas práticas sociais. Assim, o nível de letramento de grupos sociais relaciona-se fundamentalmente com as suas condições sociais, culturais e econômicas (SOARES, 2005, p.58).
Uma condição importantíssima para o letramento é que haja a escolarização efetiva de toda a população, pois só percebemos a necessidade do letramento a partir do momento em que o acesso à escolaridade cresceu e tivemos muito mais pessoas lendo e escrevendo, passando a desejar um pouco mais do que apenas saber ler e escrever, ávidos então para compreender e usar efetivamente estes saberes. Outra condição, também considerável, é que exista a disponibilidade e fácil acesso a materiais de leitura. O que acontece nos países do Terceiro Mundo é que se alfabetizam os cidadãos, mas não lhes são dadas as devidas condições para ler e escrever, não existem materiais impressos à disposição, além de o preço de jornais e revistas ser, muitas vezes, inacessível à essas pessoas. Por isso ocorrem os fracassos nas campanhas de alfabetização de nosso país, contentam-se a ensinar a ler e a escrever, mas não criam as condições necessárias para que os novos alfabetizados passem a aprofundar-se em um ambiente de letramento, para que entrem no mundo letrado onde as pessoas têm acesso à leitura e à escrita através de livros, revistas, bibliotecas e livrarias, vivendo em condições sociais em que leitura e escrita têm uma função para elas, tornando-se uma necessidade e, até mesmo, uma forma de lazer (SOARES, 2005).
Um exemplo citado por Soares (p.59) é sobre o antigo Mobral, em que pesquisas mostraram que as pessoas alfabetizadas por esse movimento acabavam desalfabetizadas logo em seguida, pois tinham aprendido a ler e a escrever, mas devido a impossibilidade do uso da leitura e da escrita por carência de, em seu meio, de demandas de tais habilidades, por falta de acesso a materiais impressos, acabaram por perdê-las. Ou seja, tinham sido alfabetizadas, mas não lhes possibilitaram tornarem-se letradas. De acordo com a Declaração de Persépolis de 1975:
[&] não é apenas o processo de aprendizagem de habilidades de leitura, escrita e cálculo, mas uma contribuição para a liberação do homem e para seu pleno desenvolvimento. Assim concebido, o letramento cria condições para a aquisição de uma consciência crítica das contradições da sociedade em que os homens vivem e dos seus objetivos; ele também estimula a iniciativa e a participação do homem na criação de projetos capazes de atuar sobre o mundo, de transformá-lo e de definir os objetivos de um autêntico desenvolvimento humano. (citado por SOARES, 2005, p.77).
O letramento não tem uma essência estática nem universal. Em certo momento, a habilidade de saber ler e escrever o próprio nome já era a comprovação de letramento; hoje, a habilidade de memorizar, por exemplo, um texto sagrado é uma das demandas de letramento (SOARES, 2005).
A partir deste capítulo, pudemos, quem sabe, tomar consciência que, nos dias atuais, não basta apenas saber ler e escrever como antigamente, mas, o que nos torna membros participantes da sociedade em que vivemos é saber, principalmente, interpretar todo o tipo de texto escrito e isso é o que nos faz indivíduos letrados.
CAPÍTULO 3
A ESCRITA NA VIDA DE ALGUÉM
Um livro é como uma janela.
Quem não o lê, é como alguém que ficou distante da janela
e só pode ver uma pequena parte da paisagem.
(Kahlil Gibran)
Quando decidi por pesquisar sobre o tema, não havia considerado a hipótese de uma entrevista para complementar meu trabalho, mas, no movimento da produção deste surgiu a ideia de procurar uma pessoa desprovida do conhecimento da leitura e, principalmente, da escrita para que, assim, pudesse comprovar aspectos que foram comentados durante os capítulos anteriores.
Após a decisão sobre uma entrevista, surgiu a indagação sobre quem seria o sujeito a narrar sua experiência com o tema e, após algumas preocupações para com isso, pedindo opiniões, acabei por encontrar a pessoa certa, entre uma conversa e outra, em minha própria família.
A pessoa que colaborou com meu trabalho, através de uma entrevista, contando sobre sua vida, foi a Senhora D, de 82 anos de idade.
Primeiramente pedi para que a Sra. D. me contasse sobre sua vida e assim foi, ela me contou que nasceu na cidade de Saltinho, trabalhava com os pais na roça, ajudava nos afazeres da casa e cuidava de irmãos mais novos, até que começou a trabalhar em uma fábrica de tecidos, confeccionando-os. Nessa mesma época, D. conheceu e casou-se com A., que é seu marido até hoje, com apenas 13 anos de idade.
D. teve nove filhos, passou por alguns problemas de saúde quando engravidou do último e, por isso, veio morar em Piracicaba, que era onde seu marido trabalhava na época. D. criou seus filhos muito bem, educou-os e todos foram escolarizados e, alguns deles, até se graduaram. Após terem seus filhos independentes e/ou casados, A. se aposentou e voltou com D. para Saltinho, onde vivem até hoje.
Por conta da vida a que as pessoas eram acostumadas naquela época, D. não teve acesso aos estudos, através de sua entrevista pude perceber que a maior preocupação com as mulheres antigamente era mais relacionada com um casamento sólido, em que a mulher era educada para cuidar da casa, do marido e dos filhos.
D. tem algum conhecimento das palavras, da importância delas. Seus filhos a ensinaram a escrever seu nome, o nome deles e também os números, mas ela não via necessidade, além de sentir-se velha para isso, de alfabetizar-se, pois foi criada daquela maneira, passou uma vida inteira sem esses saberes, não ía buscá-los agora que já cumpriu seus objetivos de esposa e mãe.
Ela me contou de suas dificuldades por ser analfabeta. A maioria delas foi superada por conta de que seu marido e filhos cuidavam, e ainda cuidam, dos afazeres que diziam respeito a alfabetização, acompanham-na quando precisa ir a algum lugar, fazem as compras para a casa e, até mesmo, ajudam-na com o telefone, pois D. não sabe usar direito.
E, assim D. tornou-se a pessoa que é hoje, interessada no futuro dos entes queridos e, mesmo sem acesso aos estudos e, principalmente, as regalias da pessoa provida do conhecimento da leitura e da escrita é uma pessoa capaz de relacionar-se com os demais, articulada em suas palavras e, principalmente, confiante em ser quem ela é. Não podendo esquecer de seu orgulho para com seus filhos formados e sua preocupação e noção do quão importante é o estudo na vida de uma pessoa nos dias atuais.
A narrativa conta sem dar explicações definitivas, admitindo diversas interpretações. Seu não-acabamento se apóia na plenitude do sentido e em sua profusão ilimitada, de tal modo que cada história dá ensejo a uma outra história, suscita outras histórias (FONTANA, 2000, p.223).
posso dizer, a partir dos conceitos de letramento trabalhados no capítulo dois, que embora D. seja considerada analfabeta e iletrada, ela vivendo em uma sociedade letrada acaba por apresentar uma oralidade marcada pela apropiação do produto cultural que é a leitura e a escrita, pois valoriza estes saberes.
D. precisa de ajuda até para usar um telefone, que é um meio de comunicação básico em nossa sociedade, mas cria seus prórpios mecanismos para enfrentar estas dificuldades, até solicitando o apoio de seus parentes e pelo que se apresenta, ela acaba, mesmo que precariamente, conseguindo fazer uso deste.
Neste sentido, a entrevista de D. dá a ver o que Soares (2005, p.21) aponta, a saber, que há uma mudança na maneira de considerar o significado do acesso à leitura e à escrita em nosso país da mera aquisição da tecnologia do ler e escrever à inserção nas práticas sociais de leitura e escrita. Assim, mais do que dominar o código, D. por viver em uma sociedade letrada, está inserida no processo.
A partir da narrativa da pessoa entrevistada, pude notar também a diferença de estilo e de necessidades que a vida de antigamente demandava em comparação com a vida atual. A mulher era criada para casar, para ter seu sustento provido por uma outra pessoa, no caso o marido, o que se exigia dela eram conhecimentos domésticos: tinha que cuidar bem de uma casa, criar filhos, acompanhar o marido. A sociedade, com tempo, foi tornando-se complexa, exigindo cada vez mais das pessoas e as mulheres foram ocupando outros espaços. D. não foi formada para as necessidades tecnológicas deste momento histórico, entretanto quis possibilitar aos filhos conhecimentos que não teve e podemos inferir que ela valorizava a leitura e a escrita.
D. apresenta em sua fala aspectos muito comuns de um tempo em que as pessoas importavam-se apenas com trabalho e uma vida honesta independente dos estudos. Hoje, até para um trabalho básico são exigidos conhecimentos de leitura e escrita.
Podemos também considerar o quanto a sociedade e a vida nela foram se tornando cada vez mais complexas não sendo posssível apenas saber ler e escrever, mas se cobra agora a interpretação e decodificação textos das mais diversas naturezas como aponta Chartier (1999, p.77), ao dizer que: os gestos mudam segundo tempos e lugares… Novas atitudes são inventadas, outras se extinguem… do livro impresso ao texto eletrônico.
Portanto, se quem desconhecia a leitura e a escrita já estava excluído de certa forma de uma apropriação ampla do mundo concreto de sua existência, o que podemos dizer da exclusão em uma sociedade na qual outras demandas surgem a cada minuto? D. não apresenta em sua fala amargura, mas compreende que seus conhecimentos não são suficientes para este tempo e nos leva a pensar qual o nosso papel como professores e como podemos cada vez mais e melhor dar possibilidades aos nossos alunos de aprender a escrever, a ler e assim desenvolver-se na sua cultura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Logo que penso no título de minha pesquisa, lembro-me de um dos principais fatores que me fizeram escolher o assunto, que foi o filme Central do Brasil, mais especificamente sua primeira parte.
O filme nos mostra diversas pessoas, de diferentes culturas, mas com o mesmo propósito de se comunicar e isso nos faz refletir sobre o quão grande é o número de analfabetos existentes em nosso país. Por questão de necessidade, essas pessoas desprovidas dos saberes da leitura e da escrita necessitam criar certa confiança no outro que transcreve seus sentimentos através de uma carta, que continua sendo um importante meio de comunicação, mesmo após o surgimento da era da informática.
No filme, a escriba das cartas é Dora, uma professora aposentada que ganha a vida dessa maneira, assim, ela acaba tendo o poder de mudar ou não a vida dessas pessoas através das cartas que escreve. As pessoas dependem dela, de sua lealdade ao escrever o que realmente lhe é pedido, de certa forma, estão em suas mãos. E as personagens do filme, mesmo sendo analfabetas, assim como a entrevistada do terceiro capítulo deste, demonstram saber a importância da escrita, exatamente por viverem em um mundo letrado e estarem rodeadas por todos esses códigos existentes em nossa sociedade.
As personagens letradas participantes do filme acabam por caçoar de um analfabeto, comentando que nem escrever ele sabe, no momento em que este pede que se escreva ao seu destinatário que ele possui Ensino Superior, mostrando-nos, assim, uma atitude de preconceito, exclusão por parte delas e das próprias pessoas.
Uma professora que ganha a vida escrevendo para os que não sabem acaba brincando com a vida dessas pessoas no momento em que ri das cartas e seleciona as que irão para o correio e as que não irão. Que mundo é esse? Que professora é essa? E essas pessoas que confiaram, muitas vezes, seus destinos à ela, como ficam? Nunca saberiam o real destino de suas cartas e ela não se importa, coloca a culpa nos correios quando questionada sobre o assunto.
O filme nos mostra certa ausência de escola, uma negação até por parte da professora e isso não pode acontecer, não é justo para com os inocentes que só querem estudar. Toda professora sofre algumas dificuldades durante seu trajeto, principalmente quando trata-se do salário e o filme nos mostra uma desvalorização social para com a profissão, mas isso não pode nos deixar amargar como Dora, devemos lutar pelos nossos direitos, mas, principalmente, por uma educação igual para todos. O cenário do filme também nos mostra um país excludente, acompanhado de ambos os lados de Dora, a professora, que deve garantir o acesso à educação (e assim, a escrita) para todos e a escriba, que apenas sobreviverá com seu emprego enquanto existirem essas pessoas desprovidas de estudos.
As personagens pedem conselhos pessoais a Dora, consideram-na experiente, uma visão da parte delas que considera a professora melhor em todos os aspectos apenas por ter o conhecimento escolar. Pessoas inocentes pagam para serem enganadas, o que nos leva a compreender, ainda mais, que não dá para viver sem os conhecimentos de leitura e escrita.
Após toda essa negação presente no filme, os personagens nos levam a perceber que a escrita pode mudar nosso jeito de ser, percebemos que, com o decorrer da história, tanto a professora Dora como o garoto Josué modificam-se a partir do momento em que começam a relacionar-se, independente da diferença quanto à instrução. A professora Dora, amarga do início do filme, não é a mesma de seu final, sensível e com certa empatia, e foi a escrita uma das causas dessa mudança.
O filme nos traz infinitas indagações sobre a sociedade atual, assim como essa pesquisa em que busco, mesmo de forma simplificada, atingir pessoas interessadas no tema, como eu sou, e também professores que possam, através deste, conseguir algum tipo de colaboração e compreensão da importância da escrita, juntamente com seus privilégios e distorções, assim como também uma breve visão quanto aos conceitos de letramento, alfabetização e quanto a mudança social decorrente da função social da escrita.
Podemos encerrar insistindo, mais uma vez, na necessidade com que a educação para todos precisa, mais do que nunca, ser alcançada em uma sociedade tão exigente como a nossa.
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