A priori mostra-se indelével reconhecer a desmesurada inteligência e mérito do filme “o Mercador de Veneza”, baseado no livro daquele que foi o maior literário de sua época, mas também um dos maiores de todos os tempos — William Shakespeare.
O Mercador de Veneza (no original em inglês, The Merchant of Venice) é um filme norte-americano de 2004, um drama dirigido por Michael Radfort baseado na obra homônima de William Shakespeare. Relata a história do Bassânio, nobre que envolve o melhor amigo numa dívida da qual o valor da penhora é de uma fatia da carne do corpo do mesmo.
Em seguida passo a fazer o contexto da estória que proveio do livro a qual derivou o filme.
Trata-se de uma obra polêmica, escrita talvez por volta de 1596 e 1598, data na qual os judeus estavam ausentes da Inglaterra (foram expulsos em 1290, e só seriam novamente aceitos em 1655). A estória tem um tom paradoxal, pois quem mais chama atenção não é o “mocinho”, mas sim o vilão.
Nessa estória um agiota judeu, Shylock, é retratado com desprezo. A vítima é um cristão, Antônio, que realiza um peculiar contrato com o judeu, penhorando 1 libra(cerca de 453 gramas) de sua própria carne. Percebe-se claramente no seio da obra de Shakespeare a repetição de uma velha máxima anti-semita: “um judeu mal querendo o sangue do bom cristão”.
Mas essa magna estória, a do Mercador de Veneza, regionalizada em “O Auto da Compadecida” por Ariano Suassuna, traz à baila uma indagação que desde logo me fiz ao terminar de assistir-la: será que na sociedade contemporânea em face do argumento da livre iniciativa poderi-se-a realizar um contrato do tipo que foi feito? Será que a liberdade de contratação que há contemporânea justificaria a feitura de um contrato que dispusesse de parte do corpo de um ser-humano? Será que a liberdade de contratação é tão lata que justificaria a não imposição de limites aos contratantes?
A resposta imediata para todas essas indagações é um redondo NÃO!
Em face de nosso ordenamento jurídico, fundado com a Constituição de 1988, não pode-se fazer do contrato uma espécie de panacéia a qual legitime tudo aquilo que se quer, que não tenha limites, que não tenha uma função social. O contrato realizado pelo judeu, Shylock, e pelo cristão, Antônio, no qual houve a penhora de 1 libra de carne do corpo deste, hodiernamente, seria impossível, seria inexistente em razão do que se extrai do princípio da DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA(art. 1, inciso III da Constituição Federal). Não encontra agasalho também entre nós o contrato que importe diminuição permanente da integridade física, é o que se extrai do Art. 13 do Código Civil de 2002: “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”.
Assim, o contrato realizado pelo cristão, Antônio, e pelo Judeu, Shylock, no qual se questiona a validade ou não do contrato realizado por este e aquele em face da lei de Veneza, à época foi considerado lícito por simples motivo de estar registrado em cartório. Todavia, em nossa realidade normativa, em razão do que ocorreu na Alemanha logo depois da Segunda Guerra Mundial, na Espanha e em Portugal na década de 1970, e, particularmente no Brasil no ano de 1988, a chamada (re)humanização dos direitos, também chamada de despatrimonialização do direito, ou ainda horizontalizarão dos direitos fundamentais, não encontraria razão de ser em nosso sentir.
Isto é, um contratado dessa natureza, mesmo que registrado em cartório como foi o contrato entre o cristão e o judeu, não existiria pelo simples motivo de ir de encontro aos valores que em nossa sociedade, pelo menos em tese, temos como supremos, valores trazidos à lume primeiro pela CARTA POLÍTICA de 1988, e, logo depois, pelo nosso Código Civil de 2002— o princípio da dignidade da pessoa humana em primeiro , e, conseguintemente, a supremacia dos direitos de personalidade em face dos direitos patrimoniais.
Dessa forma, nosso Código Civil de 2002 deslegitimaria o contrato feito por Antônio e por Shylock em razão dos princípios que o norteiam, princípios que o Magno mentor do código, Miguel Reale, o atribuiu: Eticidade(ética e boa-fé), Sociabilidade e Operacionalidade.
O contrato que tiraria uma libra 1 libra de carne do corpo de Antônio indubitavelmente iria de encontro ao princípio da Eticidade, pois tal contrato está totalmente dissonante com a ética que nos move, isto é, não parece-me agir com ética os contratante que põem em penhora aquilo que sem o qual a vida seria impossível.
Em segundo lugar o contrato já citado afeta também o princípio da sociabilidade, haja vista que, inegavelmente, vai de encontro aos bons costumes, vai de encontro à axiologia vencedora entre nós (o ser, pelo menos in abstrato, passou a significar mais do que ter).
Por último, como nosso código adota o sistema de cláusulas gerais, digo que não seria possível dispor da libra acordada por Antônio, posto que iria de encontro ao primado máximo de nossa República e que o Código Civil de 2002 implicitamente, nos artigos referente aos direitos de personalidade, trouxe : o PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
Em síntese, é verdade que o contrato realizado no filme O MERCADOR DE VENEZA foi de encontro aos direitos de personalidade, não encontrando esse contrato qualquer agasalho entre nós se fosse realizado hodiernamente.
Finalizando, conforme propunha o Marquês de Beccaria, influenciado pela filosofia Kantiana, contrariando a lógica contratual estabelecida entre o Judeu e o Cristão em o “Mercador de Veneza”: “a liberdade deixa de existir sempre que as leis permitam que em determinadas circunstâncias um cidadão deixe de ser “um homem” para vir a ser “uma coisa” que se possa por em prêmio”.