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terça-feira, novembro 19, 2024

A NORMALISTA – Adolfo Caminha

A NORMALISTA – Adolfo Caminha

Logo no primeiro capítulo, o leitor precisa da ajuda do dicionário para saber o que é um “amanuense”, ou captar o sentido de frases ou expressões como “as insinuações malévolas da alcovitice vilã”. E o “víspora”? Será que todo jovem reconheceria nesse jogo um precursor do bingo atual? E “phaeteon”, “caiporismo”, “redingote”, “coxia” (no sentido de calçada), “botica”? E o tratamento de “vossemecê”?

No caso de A normalista, outro problema de linguagem se coloca: o regionalismo. Além de ter de deslocar a sua imaginação e a sua compreensão no tempo, o leitor se vê diante de expressões restritas ao local em que se desenrola a história do romance. Nesse caso específico de A Normalista, em Fortaleza, no Ceará, mas expressões que também podem ser de uso corrente em todo o Nordeste.

O professor e pesquisador literário M. Cavalcanti Proença escreveu que Adolfo Caminha “teve a preocupação de se não tornar pomposo ou oratório, o que abriu lugar para muito material de linguagem regional de estilização do coloquial”.

Assim, recolhemos os exemplos “bichinha”, “rapariga de família”, “o peru era uma excelente bebida”, e mesmo ditos populares como: “pela cara se conhece quem tem lombrigas”, “sem tugir nem mugir”, e muitos outros.

Na verdade, Adolfo Caminha não insiste em demasiado nas palavras de cunho regional, o que fazem outros escritores, para dar uma “cor local” a histórias ambientadas em lugares de fala bem característica.

Surge, ainda, uma terceira dificuldade para a compreensão imediata do texto, pela utilização de palavras eruditas, pouco usadas na comunicação quotidiana das conversas, do jornal, da televisão. Por exemplo: “seródia”, “rótula”, “tabernáculo”, “estiolando”, “almiscarado”.

Mas tudo isso, vocabulário em parte antiquado, regional ou erudito, não deve desestimular o jovem a prosseguir na leitura começada. Literatura também é este enriquecedor contato com o que ainda não sabemos, mundos distantes do nosso, aberturas para o desconhecido.

E a história? O enredo? Também deve o leitor fazer um esforço para entender a problemática, a tensão e o drama que se desenrola dentro do contexto da época e do local onde foi situado o romance.

As reações dos personagens às situações por eles vividas há 100 anos são, certamente, retratadas de forma diferente caso fossem escritas nos dias de hoje.

No entanto, o leitor deve deixar-se envolver por essa atmosfera regional do passado, que Adolfo Caminha descreve com minúcia realista. Josué Montello, em seu ensaio A ficção naturalista, afirma que A normalista “sobressaía pela transplantação fiel e natural da vida da província e vigor na fixação dos temperamentos e dos caracteres”.

O romance relata as muitas tristezas e poucas alegrias de uma jovem que é entregue por seu pai ao padrinho, para criá-la. Ela é uma menina normal, que estuda, que tem uma amiga confidente, um pretenso namorado de nível muito superior ao seu e, desgraçadamente, é engravidada pelo padrinho e acaba casando-se com um alferes da polícia.

O pano de fundo é uma cidade provinciana do século passado, cheia de preconceitos e maledicências. A jovem Maria do Carmo, personagem principal, que dá nome ao romance, sofre as conseqüências desse meio mesquinho, que não oferece oportunidades de um crescimento interior nem alternativas de vida.

Uma história vulgar, passada numa cidade atrasada e vivida por personagens medíocres, sem horizontes nem futuro.

Mas, graças ao talento do escritor Adolfo Caminha, acontece o milagre da criação literária: o texto se ilumina de uma aura de beleza e continua atraindo, ao longo dos anos, a atenção e o interesse de gerações e gerações de novos leitores.

Neste romance de 1893, a normalista Maria do Carmo é o pretexto para Adolfo Caminha apresentar aos leitores sua visão da Fortaleza de finzinho do século XIX.

De um lado, o povinho miúdo: o pequeno funcionário público, a mulher que vendia rendas, o barbeiro, o guarda-livros, o lenhador e o alferes. Na outra banda, o governador da província, o coronel Souza Nunes, seu filho Zuza – estudante de direito – o jornalista José Pereira, o diretor e os professores da escola normal.

A fraqueza do nexo lógico sentimental ou de qualquer natureza entre as várias peripécias da vida de Maria do Carmo sugere que Adolfo Caminha não conta simplesmente a história dela para distrair seus leitores: é a propósito da vida da normalista que ele vai delineando quadros da vida da capital cearense: uma aula na escola normal, o footing no passeio público, uma festa de casamento, um serão familiar, etc…

Nesta espécie de painel de costumes, o autor parece querer demonstrar ao leitor toda a mesquinha sordidez da vida social na Fortaleza de seu tempo.

O mau humor para com a cidade é transparente, e costuma ser apontado pelos críticos e biógrafos de Adolfo Caminha como uma espécie de vingança: o autor jamais teria perdoado seus conterrâneos por estes lhe terem criticado os amores adúlteros e escancarados com a mulher de um colega.

Trecho:

A luzinha da vela de carnaúba agonizava numa poça de cera derretida.

E essa! Era a segunda vez que sonhava com o Romão, sem quê nem p’ra quê… Com certeza estava para lhe suceder alguma desgraça. Que esquisitice! hum, hum,…

A porta do quarto, que se conservava entreaberta, rangeu nas dobradiças, como se alguém a empurrasse de manso. Apoderou-se de Maria um pavor terrível; arrepiaram-se-lhe os cabelos, e uma extraordinária sensação de frio percorreu-lhe o sangue. Ficou assombrada, sem se mexer, com o ouvido alerta e os olhos fechados, numa prostração de quem está sem sentido.

Pareceu-lhe ouvir chamar pelo seu nome e então subiu um ponto o terror que lhe tapava a boca como uma mordaça de ferro. Abriu os olhos para verificar se com efeito estava acordada e tornou a fechá-los mais que depressa. Instintivamente fez um esforço supremo para gritar, para chamar alguém, mas não podia abrir a boca, estarrecida.

Maria? repetiu a mesma voz, que ela julgava ouvir, uma voz fina, mas abafada, como se saísse das entranhas da terra.

E logo:

— Sou eu, Maria. É o padrinho…

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