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sexta-feira, novembro 22, 2024

Casos do Romualdo – Simões Lopes Neto

Casos do Romualdo – Simões Lopes Neto

Completando as histórias de Simões Lopes Neto sobre o Rio Grande do Sul, este livro conta os vários casos de Romualdo, gaúcho do interior, contidos em suas Memórias, que fariam corar o Barão de Münchausen. Entre outras coisas, vê-se o parto de 87 ao mesmo tempo e da mesma mãe, a caça de onças a vela, o desenroscamento de tatus (não perguntem) e várias outras histórias hilárias de caça, viagem e outros assuntos relacionadas ao RS, contadas no estilo de fala do estado.

Conto escolhido: O COBERTORZINHO DE MOSTARDAS

Fui mandado para Mostardas, a passar uns dias com o meu padrinho. Foi um rega-bofe a viagem, que durou três dias, a bordo dum lanchão; foi outro rega-bofe a estadia, que durou duas semanas, em casa do padrinho.

Mostardas é uma povoação perdida entre areais, junto à costa do oceano. Gente boa, do bom tempo. Tece o linho, de que faz desde os enxovais de casamento até as camisas do diário; tece a lã desde os xergões grosseiros até o picotinho lustroso.

Nesse tempo existia ai uma raça especial de ovelhas que produziam uma lã tão aquecedora como nunca mais vi outra. Essas ovelhas morriam muito no verão abafadas na pele, era necessário tosqueá-las à navalha. A gente que trabalhava com tal lã suava em barba e ficava com as mãos vermelhas, quentes, fumegando, como se estivesse lidando com água esperta.

Mas eu, como criançola, pouca atenção dava a estas cousas.

O lanchão amarrou novamente; nele devia eu regressar. Na véspera da partida, a santa da madrinha arrumou a minha bagagem. Minha, propriamente, era apenas uma canastra pequena, forrada de couro cru, peludo. O mais eram presentes que eu levava: um fardo de miraguaia salgada, uma barrica de camarões secos, uma peça de picote, umas toalhas com renda de bilros, etc.

E para mim, expressamente meu, um cobertorzinho, feito da tal lã das tais ovelhas especiais. O meu cobertorzinho era pequeno; dava apenas bem para o meu corpo: muito leve, transparente e felpudinho. Do lado que devia ficar com os pés tinha duas barras vermelhas e do lado da cabeça tinha o meu – Romualdo – em letras azuis.

Fiquei encantado! E como já queria utilizá-lo na viagem, emalei-o atando-o com uma embira larga, descascada a capricho.

Na manhã seguinte, sob bênçãos e lágrimas dos meus padrinhos, embarquei.

O lanchão içou velas. Ainda uns abanados de mãos, de lenços… e tudo lá ficou, para sempre, na volta do arroio!

Mal pus os pés em terra, meu pai disse-me que eu marcharia para Bagé… como caixeiro.

Chorando, entreguei os presentes, as cartas, dei as lembranças, os recados e os abraços que me confiaram.

Na minha desgraça só o meu cobertorzinho me consolava. Mal toquei-lhe, para mostrá-lo a minha mãe, a embira, de ressequida, esfarinhou-se. Não prestei a isso maior atenção, mas já foi suando que o amarrei com uma ourela de pano piloto.

Minha mãe abanava-se de leque, como em dezembro.

Segui para Bagé. Na chegada, vi que meu patrão era um espanhol baixinho, gordo e gritão. Pus a canastra ao ombro e marchamos para casa do negócio.

Fazia frio!…frio!… Que frio fazia!… As fumaças o cigarro do espanhol ficavam paradas no ar, endurecidas, talvez congeladas… Pouca gente a pé. Muitos homens a cavalo; emponchados, todos. Na casa, o patrão conduziu-me ao meu quarto, isto é, ao quarto da caxeirada. Atirei-me sobre o meu pelêgo. Mas o frio cortava…

Meio de gatinhas, pés duros, canelas duras, ombros duros, mãos duras, consegui abrira canastra e sacar meu cobertorzinho. Provavelmente eu devia estar com a cara como uma batata roxa…

Tocar no cobertor foi uma satisfação, abri-lo um prazer, estendê-lo sobre os meus pelêgos, uma alegria; meter-me debaixo dele, um consolo divino… E ferrei num sono de pedra.

Lá pelas tantas acordei-me meio afogado, lavado em suor.

Acordei-me sob uma granizada de risadas e falaraz dos rapazes companheiros, todos em trajes menores, sentados nos peitoris das janelas que davam para o quintal.

— Que abafamento! que calor! diziam eles.

— Parece meio-dia de fevereiro!

— Se tivesse água agora, era banho certo!

Eu, por mim, não podia mais; parecia-me que tinha um pano de fogo em cima do corpo. Fui para a janela, como os outros.

Nisto o espanhol abriu a porta do nosso quarto e — descalço, em ceroulas e de poncho de pala enfiado — bradou:

— Eh! muchachos! Habrá fuego em la calle?

Que está caliente como um sol dormiendo!…

— Que fuego, nem fuego! Calor da noite é que é.

— Isto é tormenta!

E o calor aumentava. Casas abriam-se com rumor, acendiam-se os candeeiros e as velas das “mangas” de vidro. Ouviam-se risadas, conversas, chamados. Havia movimento em toda a parte, como se fosse dia.

As pessoas que chegavam de outros lugares queixavam-se de que o calor aqui no armazém ainda era mais insuportável que lá.

De repente ouvimos um estouro forte, dentro do balcão; era um barril de melado que arrebentava, espumando. Um dos caixeiros que fora servir a um freguês avisou ao patrão que as velas de sebo e as barras de sabão estavam pegadas, tudo quase como uma pasta.

O espanhol, corado, pingando suor, e sempre em ceroulas e de pala enfiado, correu para os fundos.

— Mira! Que cosa barbara!…

Do lado do arroio vinha uma algazarra alegre, gritos, gargalhadas, ditos: era o povo que tomava banho!

Aquilo estava esquisito, estava… Nunca se tinha visto um tão curioso calor em junho, entre Santo António e São João, que é o tempo justo em que a geada cura as laranjas e branqueia como farinha, no terreiro e nos telhados.

E o espanhol, bufando, repetia:

— Que cosa barbara! que cosa barbara!

Eu, bem se imagina, estava atarantado com tudo aquilo; e sentindo a roupa empapada, com receio de alguma constipação, resolvi mudar outra, enxuta… e esgueirei-me para o quarto.

Quase não pude entrar, sufocava, lá dentro; era um forno. Contudo, avancei até minha canastra: era insuportável, aí perto.

Então, só então, como um raio, foi que me lembrei do meu cobertorzinho!

Era ele, só ele, o calor, a quentura da sua lã, que estava causando todo aquele estrupido na cidade.

Fiquei aterrorizado… se o espanhol descobrisse!…

Muito caladinho, apressado, dobrei-o, amarrei-o e atirei-o para o fundo da canastra, que fechei com o cadeado.

E disfarçado, vim para o balcão, com os companheiros. Dai a pouco começou a abrandar a torreira; Foi abrandando; veio a viração da madrugada; já se respirava melhor. Surgiram as barras do dia e todos se foram deitar, para aproveitar ainda uma hora de sono.

Nunca ninguém soube disto. Dias depois, para tirar-lhe as pulgas, estendi o meu cobertorzinho ao sol.

Foi o meu prejuízo: combinaram-se a quentura da lã e o calor do astro… e pegou fogo!

Quando fui levantar a minha coberta, era pura cinza… e nem fumaça tinha havido!

Olhem que era um cobertorzinho quente, aquele!…

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