A reescritura de textos literários para diferentes meios de linguagem representa, para os estudos de tradução, um campo frutífero de investigação, pois se trata de um fenômeno cada vez mais comum de aproximação de textos de diferentes estilos por meio de diversas mídias. A literatura reescrita é uma constante atividade na mídia contemporânea, já que, com a profusão de gêneros textuais, a delimitação entre as fronteiras desses gêneros torna-se cada vez mais escassa.
Se, por um lado, um texto literário, ao ser reescrito, “desconfigura-se” no seu valor canônico por tornar-se mais popular, por outro, atinge outros públicos e, por ser ampliado para novos contextos de linguagem, cria imagens do texto original. Por meio dessas imagens, esse texto original volta a ser lido Segundo esse conceito, a tradução é uma reescritura de um texto original e as reescrituras afetam profundamente a interpenetração dos sistemas literários, não somente pelo fato de projetar a imagem de um escritor ou uma obra em outra literatura ou por fracassar em fazê-lo, mas também por introduzir novos instrumentos no corpo de uma poética, delineando mudanças.
A história literária procura no contexto social e político da época as explicações ou relações com a obra literária, e dentro de uma obra traduzida pode-se detectar os contrastes acentuados entre a obra e sua tradução. As diferenças e semelhanças podem ser observadas, contudo em 1958, René Wellek, manifesta-se contra os estéreis paralelismos, resultados de caça às semelhanças. Ele inspira-se no formalismo russo e pede menos dados externos nas análises.
Recusa-se a distinguir literatura contemporânea da literatura do passado (postura anti-historicista) e aceita estudos comparados no interior de uma só literatura. Face a esta realidade este estudo será feito observando-se as diferenças e semelhanças encontradas na tradução da obra “Three pictures” de Virginia Woolf.
A dificuldade em analisarmos uma tradução surge sempre que nos defrontamos com uma expressão idiomática. Estas formas idiomáticas raramente têm qualquer semelhança com as formas usadas na outra língua para expressar a mesma idéia. Existe correspondência no plano da idéia, mas não da forma. É importante, entretanto, lembrar que os idiomas não são rígidos como as ciências exatas. Existem normalmente várias maneiras de se expressar uma idéia em qualquer língua; basta ser criativo. Portanto, o tradutor pode usufruir das mais variadas formas na hora de escolher uma tradução possível para determinadas expressões idiomáticas.
A tradução literária é processo bastante conflituoso de idéias usado pelos tradutores para dar harmonia e transformar o texto traduzido numa obra que trás a idéia do original, mas com características do meio em que vive. Numa tradução, a obra em estudo, sofre um deslocamento da tradição original , para se fazer presente em um novo período histórico e literário. O tradutor ao reescrever, pode utilizar outras conotações lingüísticas, expressões culturais e idiomáticas.
Após a analise comparativa da tradução do conto “Three pictures” escrito por Virginia Woolf em junho de 1929 e traduzida por Alberto Augusto Miranda e Alexandra Bernardo com o título “Três quadros”. Foram observadas varias expressões culturais e idiomáticas, bem como ignorados algumas expressões, omitido seu significado. Percebe-se também que o tradutor foi fiel ao texto original, dentro de um limite.
Após análise e comparação do conto com a tradução de Alberto Augusto Miranda e Alexandra Bernardo percebe-se que os tradutores na maioria das vezes foram fieis ao texto original, como por exemplo, os nomes dos personagens Dodson, Rogers e Tommy não foram modificados, dando desta forma mais originalidade ao texto. Mas como ocorre na maioria das traduções houve reduções e acréscimos de palavras nos parágrafos, o que não comprometeu o entendimento do conto.
Desta forma conclui-se que para se estabelecer uma comparação é necessário antes de tudo ter um bom conhecimento da Língua Materna, para poder identificar semelhanças e diferenças entre duas ou mais línguas.
Tradução:
O PRIMEIRO QUADRO
É impossível olhar e não ver quadros. Se o meu pai fosse ferreiro e o seu par do reino, nós próprias seríamos quadros uma para a outra. Provavelmente não conseguiremos sair da moldura do quadro usando palavras normais. A senhora ver-me-á sempre encostada à porta da oficina, com uma ferradura na mão e pensará, enquanto passa: “Olha que engraçado!”. Pela minha parte, vê-la-ei sempre no bem-bom do seu carro, quase como se estivesse a acenar ao zé-povinho, e pensarei: “Aqui está um quadro da velha e luxuriosa Inglaterra aristocrata!” Não há dúvida que estamos ambas enganadas nos nossos julgamentos, mas não deixamos de fazê-los.
Ainda agora na curva da estrada vi um desses quadros. Poderíamos dar-lhe o nome de “O Regresso do Marinheiro” ou coisa parecida. Um marinheiro jovem carregando a trouxa; uma rapariga de braço dado com ele; os vizinhos indo ao seu encontro; um jardinzinho de flores radiosas; ao passarmos poderíamos ver no fundo desse quadro que o marinheiro tinha regressado da China, e havia um banquete à sua espera na sala; dentro da trouxa ele trazia uma prenda para a sua amada; e ela em breve traria no ventre o seu primeiro filho. Ficávamos com a sensação de tudo estar como devia.
Havia qualquer coisa que nos preenchia, uma plenitude diante de tal felicidade; a vida parecia mais fácil, mais doce.
Nessa atmosfera entrei no quadro tentando conhecê-lo o melhor que podia, captando a cor do vestido dela, a cor dos olhos dele, descobrindo o gato amarelo a roçar-se no portão do jardim.
O quadro flutuou nos meus olhos durante algum tempo; a maior parte das coisas tornou-se mais viva, mais quente, mais simples; outras coisas mais tontas; algumas erradas e outras certas, mais cheias de sentido. Em momentos estranhos desse dia e do dia seguinte o quadro voltava a aparecer; pensava nele, tinha inveja, apesar da simpatia, do marinheiro feliz e da sua amada; o que estariam a fazer, a dizer.
Imaginava outros quadros a partir do primeiro, um quadro do marinheiro a cortar lenha, a tirar água; a falarem da China; a rapariga a colocar a prenda em cima da lareira, onde todos pudessem ver; a fazer as roupinhas do seu bebê, e todas as portas e janelas abertas para ouvir os pássaros cantar e as abelhas zumbir, e o Rogers – era o nome dele – não tinha palavras para dizer o quanto tudo isto o satisfazia depois dos mares da China. Enquanto fumava o seu cachimbo, com um pé no jardim.
O SEGUNDO QUADRO
No meio da noite um grito forte atravessou a aldeia. Depois ouviu-se o som de uma pequena barafunda; e a seguir um silêncio de morte. Tudo o que podia ser visto da janela era o ramo de um lilás dependurado imóvel e poderoso no meio da estrada. A noite estava quente e inerte. Não havia lua. O grito fez com que tudo parecesse agourento. Quem tinha gritado? Por que é que ela tinha gritado?
Era uma voz de mulher, desencadeada pelo estado-limite de uma sensibilidade quase assexuada, quase inexpressiva. Era como se a natureza humana tivesse gritado contra alguma iniqüidade, algum horror inexplicável. Havia um silêncio de morte. As estrelas brilhavam quietinhas. Os campos mantinham-se inertes. As árvores estavam imóveis. No entanto, todos pareciam culpados, condenados, agourentos. Havia a sensação de que se devia fazer alguma coisa.
Alguma luz devia surgir agitada, mexendo-se de um lado para o outro. Alguém devia aparecer correndo pela estrada abaixo. Devia haver luzes nas janelinhas. E então talvez outro grito, menos assexuado, menos mudo; conformado, apaziguado. Mas não veio nenhuma luz. Não se ouviram nenhuns passos. Não houve nenhum segundo grito. O primeiro tinha sido engolido, e estava um silêncio de morte.
Estava-se no escuro com o ouvido de prevenção. Tinha sido simplesmente uma voz. Não havia nada a relacionar com ela. Não veio nenhum tipo de quadro para interpretá-la, para decodificá-la. Mas quando finalmente o escuro se destapou tudo o que se via era uma forma humana obscura, quase sem contornos, erguendo em vão um braço gigantesco contra uma iniqüidade esmagadora.
O TERCEIRO QUADRO
O bom tempo manteve-se intacto. Se não fosse aquele solitário grito na noite, ter-se-ia a sensação de que a Terra tinha aportado em segurança; que a vida tinha deixado de se antecipar ao vento; que tinha alcançado uma baía calma e se deixara ficar ancorada, quase imóvel, nas águas mansas. Mas o som insistia. Para onde quer que se fosse, por exemplo, uma longa caminhada a subir os montes, algo parecia mexer-se inquietamente por baixo da superfície, tornando a paz, a estabilidade circundantes um pouco irreais. As ovelhas estavam agrupadas na encosta; o vale dividia-se em ondas longas e estreitas como a queda de águas suaves.
Cada um na solidão da sua leira. O cão rebolava no pátio. As borboletas brincavam à volta da urze. Tudo estava muito sossegado, o mais seguro que era possível. No entanto, não se deixava de pensar, um grito tinha posto tudo em causa; toda esta beleza tinha sido cúmplice naquela noite; tinha consentido; permaneceu calma, continuou bela; a qualquer momento podia despedaçar-se outra vez. Esta divindade, esta segurança estavam apenas à superfície.
Para sair deste estado apreensivo, era preciso voltar ao quadro do regresso do marinheiro. Vê-lo uma vez mais destacando vários pormenores que não tinham sido aplicados antes: o azul do vestido dela, a sombra que caía da árvore de flores amarelas. Agora eles estavam no umbral, ele com a sua trouxa às costas, ela a tocar levemente a manga dele com a mão. E um gato amarelo tinha fugido pela porta.
Ao lembrar gradualmente o quadro com todos os pormenores, percebia-se pouco a pouco que esta calma e contentamento e boa vontade permaneciam abaixo da superfície ocupando o lugar de algo traiçoeiro, sinistro. As ovelhas a pastar, as ondas do vale, a leira, o cão, as borboletas bailarinas eram de fato uma prova disso. E então voltava-se a casa, com a cabeça fixa no marinheiro e na sua mulher, criando quadro após quadro a partir deles para que todos os quadros de felicidade e satisfação se pudessem sobrepor àquele grito inquietante e odioso, até o esmagarem e silenciarem, impelindo-o para fora da existência.
Aqui estava finalmente a aldeia, e o cemitério que tínhamos de atravessar; ao entrar nele pensava-se mais uma vez na paz daquele sítio, com os seus ciprestes, as suas tumbas polidas, as suas covas anônimas. Sentia-se que a morte era agradável neste sítio. De fato, reparemos naquele quadro! Um homem a abrir uma cova, e as crianças a fazer um lanche mesmo ali ao lado enquanto ele trabalha.
Ao mesmo tempo em que as pás de terra amarela são atiradas para cima, às crianças empanturram-se de pão com doce e bebem leite por canecas enormes. A mulher do coveiro, uma mulher gorda e bonita, senta-se numa campa e estende o avental na relva ao lado da cova aberta para servir de mesa. Algumas pedrinhas de cimento caem no meio das louças. Quem vai ser enterrado? Perguntei eu. O velho senhor Dodson morreu finalmente? “Ah! Não. É para o Rogers, o marinheiro,” – respondeu a mulher, fitando-me nos olhos- “morreu há duas noites, de uma febre desconhecida. Não ouviu a mulher dele?” Ela veio para a rua gritar… “Oh Tommy, estás todo sujo de terra!”
Que quadro!
REFERÊNCIAS
Http://moisesneto.com.br/estudo40.html
Http://meninasvamosaovira.blogspot.com/2007/01/virgnia-woolf.html