UNIVERSIDADE ESTADUAL VALE DO ACARAÚ
PRÓ-REITORIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO (CDH)
Curso de Especialização em Educação Especial
A AQUISIÇÃO DO PORTUGUÊS COMO SEGUNDA LÍNGUA PELO SURDO
Marilia Dagmar Gondim Machado
FORTALEZA – CEARÁ
2007
RESUMO
Esta monografia teve como objetivo verificar a produção textual dos surdos em língua portuguesa. Para tanto, foram colhidos quatro textos redigidos por um aluno adulto de cada série de 6ª a 9ª, de uma escola pública estadual para surdos localizada na cidade de Fortaleza. A partir dessas produções escritas, procurou-se observar como as mesmas foram desenvolvidas e quais foram os aspectos divergentes do português presentes nelas. Para apreender a realidade, adotamos a metodologia de pesquisa que pode ser classificada como qualitativa dentro da abordagem etnográfica. A respeito da aquisição do português como segunda língua, fizemos um estudo bibliográfico. Em seguida, começamos uma fase exploratória, que se constituiu de observação, coleta sistemática de informações e seleção de aspectos relevantes. Como embasamento teórico para o estudo, foi desenvolvida uma breve retrospectiva histórica do surdo e ainda foram analisadas as abordagens educacionais: Oralismo, Comunicação Total e Bilingüismo com suas implicações para o ensino escolar desse aluno. Foram utilizados autores como: Brito (1993), Góes (1996), Felipe (2001), além de consultas às contribuições de Vygotsky (1987) sobre sócio-interacionismo, para subsidiar teoricamente o trabalho. O estudo permitiu concluir que o aluno surdo, que utiliza a Língua de Sinais como meio natural de comunicação, apresenta uma série de dificuldades ao produzir textos em português, como: falta de flexões verbais e nominais, falta ou excesso de preposições, conjunções, conectivos, artigos e outros. Além da transcrição equivocada de certas palavras e o uso de frases curtas. Portanto, o estudo surgiu de uma necessidade própria do professor em sala de aula, de instigar e motivar o uso da língua portuguesa escrita, a partir de um trabalho de produção individual e de constante auto-correção, ou seja, o estudante produz o seu texto e com o auxílio do profissional da educação, ele vai aos poucos o reconstruindo, com o intuito de aperfeiçoá-lo. A abordagem utilizada tenta mostrar que o surdo, como membro de uma comunidade diferente com cultura, hábitos e língua própria, tem o direito de aprender uma segunda língua, na modalidade escrita, para que possa se relacionar com a comunidade majoritária.
SUMÁRIO
Introdução
Capítulo I – Considerações sobre a Comunidade Surda e a Língua Brasileira de Sinais (Libras)
Síntese histórica sobre a Comunidade Surda
A Língua Brasileira de Sinais (Libras) e a aquisição desta pela surdo
Cultura, Identidade e Comunidade Surda
As entidades participantes na vida educacional, cultural e social dos surdos
FENEIS
APADA
Centro de Capacitação de Profissionais da Educação e de Atendimento às Pessoas com Surdez CAS
Confederação Brasileira de Desportos de Surdos CBDS
As Metodologias utilizadas para educar surdos
Oralismo
Comunicação Total
Bilingüismo
Capítulo II Conhecendo o Instituto Cearense de Educação de Surdos ICES e a aquisição do português como segunda língua
Conhecendo a escola pesquisada.
A aquisição do português como segunda língua pelos surdos no Instituto Cearense de Educação de Surdos ICES
Analisando os resultados da aquisição do português como segunda língua pelo aluno surdo
Considerações finais
Referências
INTRODUÇÃO
O presente estudo é resultado da prática educacional em torno da aquisição do português como segunda língua pelo surdo, que aponta diversas dificuldades no processo de construção da leitura-escrita. Neste caso, a língua portuguesa será para ele a sua segunda língua, tendo em vista que, a oralização deixa de ser a base do processo de alfabetização e letramento.
O surdo vive e atua no mundo como qualquer outro ser humano. Ele apenas possui uma característica que o diferencia dos demais: a surdez. Apesar da sua diferença que é bastante peculiar, o surdo é um sujeito social que tem em si impressas as diferenças individuais, as influências sociais, educacionais, culturais e históricas que compõem o seu cotidiano.
Assim, a criação dos sinais pela Comunidade Surda aparece como meio natural de comunicação e instrumento do pensamento, para que possam atuar e comunicar-se. Enquanto a Língua de Sinais é espontânea para o surdo, o conhecimento da língua falada e o decorrente domínio da escrita não ocorrem naturalmente. A Língua de Sinais é para ele, a sua língua natural (L1). No caso do Brasil, a Língua portuguesa é considerada como segunda língua (L2), assim como, por exemplo, o inglês é para as pessoas ouvintes.
Neste estudo, teremos como objetivo demonstrar que o aluno surdo pode aprender, conhecer e interpretar uma segunda língua que não seja a sua língua natural de acesso, através de práticas alternativas em observância às suas necessidades especiais. E ainda, devemos identificar a importância da Língua portuguesa como língua oficial do país em relação ao surdo (L2).
As línguas ditas L2 necessitam de metodologias e recursos adequados para seu ensino e aprendizado, mantendo sempre como referencial a língua L1. A Língua Brasileira de Sinais, ou seja, a Libras não é apenas uma ferramenta para facilitar a comunicação, mas uma língua completa que o surdo deve aprender para que possa se desenvolver em muitos sentidos, e principalmente, conhecer a língua escrita do seu país que, no caso do Brasil é o português.
Este estudo parte do pressuposto de que a modalidade vísuo-espacial é o canal perceptual adequado à aquisição e utilização da linguagem pelas pessoas surdas, tendo implicações diversas para o seu desenvolvimento pessoal.
O motivo da investida nesta pesquisa foi o nosso trabalho como professora com os alunos na oficina de redação, no Instituto Cearense de Educação de Surdos ICES, sendo uma escola especial que atende 476 alunos surdos, distribuídos na educação infantil e fundamental.
Na oficina de redação, os estudantes têm a oportunidade de conhecer os diversos tipos de texto, como: bilhetes, convites, cartões de apresentação, cartões postais, cartas, biografias, dentre outros. Percebida a diferença entre os textos e reconhecida as características específicas de cada um, o aluno deve tentar produzi-los de forma individual e similar aos modelos apresentados pela professora.
Assim que os textos são produzidos, os alunos iniciam a auto-correção em grupo, em que devem observar se o que escreveram está bom, contém algum erro e precisa ser melhorado.
Depois da fase de aperfeiçoamento das produções, os melhores textos são selecionados pela professora e enviados para o Jornal do Surdo, jornal mensal do ICES, onde os alunos têm a oportunidade de ver os seus trabalhos e poder compará-los com os outros dos colegas. A consciência dos estudantes surdos de que aqueles escritos que mais se destacam são escolhidos para serem colocados no jornal, serve de estímulo e motivação para que eles se empenhem cada vez mais no desenvolvimento da tarefa.
Além disso, há algo bastante utilizado pelos alunos que é o Correio do Surdo. Este correio trata-se de uma forma dos estudantes utilizarem os conhecimentos adquiridos na oficina de redação e escreverem bilhetes, cartas ou até mesmo convites, para os colegas da mesma sala ou de outras, com o intuito de estabelecer uma comunicação com os seus pares usando o português escrito.
A linguagem tem papel fundamental na construção do conhecimento, por isso foi necessária uma análise sobre as sérias dificuldades apresentadas nas produções escritas dos alunos surdos, tanto em relação ao sentido quanto aos aspectos coesivos.
O ensino do português como segunda língua neste estudo foi direcionada em dois aspectos: sob uma proposta bilíngüe, em que a Libras deve ser respeitada como a língua natural do surdo, e sob uma visão sócio-interacional1 do discurso, em que: o conhecimento sistêmico, o conhecimento de organização textual e o conhecimento de mundo ligado às práticas sociais, auxiliaram no aprendizado do português e a mesma será utilizada nos diversos contextos em que vive. Conforme Vygotsky (1987, p.125): uma palavra adquire o seu sentido no contexto em que surge: em contextos diferentes, altera o seu sentido.
Serviram como sujeitos desta pesquisa, quatro alunos de cada série, de 6ª a 9ª, na faixa etária de 18 a 50 anos. Outros indivíduos também foram relevantes para o sucesso da mesma, tais como: coordenadora pedagógica, professores surdos e intérpretes.
No decorrer deste estudo, as atividades desenvolvidas procuraram responder o seguinte questionamento: É relevante para o aluno surdo que ele aprenda a ler e escrever em língua portuguesa? E como ocorre a aprendizagem do português pelo surdo? Tal problemática levantada é preocupante, pois por não haver o feedback via audição pelos surdos, torna-se muito difícil a compreensão do mecanismo do português, nos moldes tradicionais da escola, principalmente para aqueles que possuem perda severa à profunda.
Surgiu ainda outro questionamento: O escrever e ler em Língua de Sinais, para o surdo, é o caminho natural em todo esse contexto ou será que para uma criança surda submetida a uma educação bilíngüe bastaria que ela lesse e escrevesse em sua segunda língua e utilizasse a sua primeira língua (nesse caso, a Libras), como comunicação presencial e imediata? Como será proporcionado o ensino do português com estratégias baseadas na aquisição de segunda língua?
Na busca de respostas às questões apresentadas, formulamos uma hipótese para direcionar o nosso trabalho: Os surdos, na maioria dos casos desconhecem a estrutura da língua portuguesa escrita e a rejeita por não encontrar funcionalidade em seu uso. Isto é um obstáculo que dificulta muito a sua aprendizagem.
Para apreender a realidade, adotamos a metodologia de pesquisa que pode ser classificada como qualitativa dentro da abordagem etnográfica. A respeito da aquisição do Português como segunda língua pelo surdo, fizemos um estudo bibliográfico. Em seguida, começamos uma fase exploratória, que se constituiu de observação, coleta sistemática de informações e seleção de aspectos relevantes.
No presente trabalho, dividido em dois capítulos, faremos no primeiro algumas considerações sobre a Comunidade Surda onde foram investigadas a sua história, identidade e cultura. Ainda no primeiro capítulo, foram levantadas algumas características da Libras, a sua importância para o surdo e as metodologias empregadas na educação dos mesmos. No segundo capítulo, é apresentada uma pesquisa feita no Instituto de Educação de Surdos ICES e como acontece a aprendizagem da língua portuguesa por esses alunos. No mesmo capítulo, foram estudadas as entidades que auxiliam e participam na vida educacional, cultural e social desses estudantes.
Para investigar a realidade, analisamos algumas produções escritas dos alunos surdos, bem como foram feitas entrevistas com os professores surdos e intérpretes. O exame das informações coletadas e a análise da realidade observada, possibilitou a elaboração desta monografia, que visou ampliar nossos conhecimentos, além de fornecer uma melhor reflexão sobre o aprendizado efetivo do português através da Libras, derrubando as barreiras entre surdos e ouvintes, para que ao menos ocorra o diálogo.
CAPÍTULO I – CONSIDERAÇÕES SOBRE A COMUNIDADE SURDA E A LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS(LIBRAS)
Na sociedade em que vive, o homem ou se apropria de um instrumento que lhe é oferecido ou o elabora com todas as peças necessárias, como ocorre com o surdo. Neste caso, ele ainda o faz inteligível no âmbito de suas relações familiares. Este instrumento de fundamental importância à sua sobrevivência chama-se linguagem, que é sempre um sistema de sinais articulados, podendo ser esses sinais sonoros, visuais, tácteis, ou de outra natureza. De resto, o homem não é só um animal que utiliza instrumentos, como alguns outros, mas é talvez o único que os constrói, se não os acha elaborados.
O desenvolvimento da linguagem, característica inerente ao homem, é a essência da aquisição de conhecimentos. A linguagem é a ferramenta necessária ao homem na transferência de conhecimentos, aprendizagem e experiências individuais, possibilitando por meio desta a transformação do meio ambiente.
De acordo com Felipe (2001, p. 20), uma das semelhanças entre as línguas é que os usuários de qualquer língua podem expressar seus pensamentos diferentemente, por isso uma pessoa que fala uma determinada língua, irá utilizá-la de acordo com o contexto em que se está inserido, ou seja, não conversamos com um amigo íntimo da mesma forma que com um estranho. Outra similaridade é que todas as línguas possuem diferenças quanto ao seu uso em relação à região, ao grupo social, à faixa etária e ao gênero. O ensino oficial de uma língua sempre trabalha com a norma culta, que é utilizada na forma escrita e falada e sempre toma alguma região e um grupo social como padrão.
O surdo não se diferencia dos demais apenas na linguagem, mas também na sua história, no seu convívio social e educação. Esses elementos darão origem à Comunidade Surda, onde o surdo encontra pessoas com valores, idéias e histórias de vida semelhantes a sua e percebe que faz parte de uma minoria que coaduna com a sua realidade.
Este capítulo tem, por finalidade, apresentar uma síntese histórica sobre a Comunidade Surda, a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e a sua aquisição e as metodologias utilizadas na Educação de Surdos.
1.1.SÍNTESE HISTÓRICA SOBRE A COMUNIDADE SURDA
Na antigüidade, as pessoas diferentes, inclusive os surdos, eram considerados não-humanos: seres desqualificados e inferiores. Os surdos eram vistos como aqueles que possuíam defeito de nascença e que, portanto, como animais que precisam competir pela sobrevivência, eram inferiores aos outros animais homens e deveriam ser eliminados. Dessa forma, os surdos foram excluídos da sociedade antiga, sendo proibidos de casar, possuir ou herdar bens.
Mesmo em nível religioso2, as pessoas diferentes e os doentes eram considerados impuros, castigados e condenados por Deus. Segundo esta teologia, Deus castigava alguém, enviando-lhe doenças ou permitindo o nascimento de descendentes com doenças físicas.
Ainda nos primórdios da civilização, alguns povos dispensavam tratamentos bárbaros aos surdos, como: os chineses que lançavam – os ao mar; os Espartanos jogavam os do alto dos rochedos e os Atenienses eram enjeitados e abandonados em praças públicas ou nos campos.
Com o nascimento de Jesus, o Filho de Deus para os cristãos, os surdos deixam de ser considerados impuros, sob a crença cristã de que todos seríamos filhos de Deus e amados pelo Pai, independente do que teríamos, seríamos ou faríamos, mas pelo que éramos: seres humanos.
Esta alteração cultural e religiosa apresentou grande avanço na transformação da mentalidade da época, porém não foi suficiente para eliminar totalmente o forte preconceito contra os surdos.
Segundo Santo Agostinho3, filósofo e teólogo cristão de profunda influência na filosofia ocidental e no cristianismo, a fé somente seria obtida pela captação do Sermão.
Aristóteles também emitiu opiniões em relação aos surdos e sua educação. Para ele, a Educação somente poderia ser obtida através da audição, pois alguém que não conseguia ouvir, não seria capaz de aprender nada. Portanto, como o surdo não tinha linguagem, ele não era considerado humano e não tinha possibilidade de desenvolver as suas faculdades intelectuais.
Então, durante muitos anos, foi iniciado um trabalho de recuperação dos Surdos-Mudos, no intuito de humanizá-los, ou seja, tentar dar fala a eles.
A igreja católica, até a Idade Média, acreditava que as suas almas não poderiam ser consideradas imortais, porque eles não podiam falar os sacramentos.
Conforme Barbosa (2004, p. 09), Bartolo della Marca dAncona, advogado e escritor do século XIV, foi o primeiro a aludir sobre a possibilidade do Surdo4 poder aprender através da Língua de Sinais ou da língua oral.
Até o século XV, não havia nenhum interesse na educação dos surdos, pois eram consideradas pessoas primitivas, sendo relegadas à marginalidade na vida social. Não havia direitos assegurados, nem uma cultura suficientemente desenvolvida que aceitassem a sua diferença.
No ocidente5, os primeiros educadores de surdos de que se tem notícia, começaram a surgir a partir do século XVI, sobretudo na Espanha, França, Inglaterra e Alemanha. Nesta classe de pessoas, podem-se citar os nomes: Rudolphus Agrícola (1443 1485), Girolano Cardano (1501 1584), Pedro Ponce de Leon (1510 1584), Juan Pablo Bonet e Abbé Charles de lEpee (1712 1789).
Em meados do século XVI, Girolano Cardano propôs um conjunto de princípios que prometia uma ajuda social e educacional para os surdos, em que este podia pensar, compreender símbolos gráficos ou combinações deles associados a objetos ou figuras que os representassem. Assim, no início de 1555, surgiu a educação oral para crianças surdas. Algumas crianças surdas de famílias nobres aprenderam a falar e a ler para poderem ser reconhecidas como pessoas nos termos da lei e herdar títulos e propriedades de suas famílias.
Nos Estados Unidos, em 1817, Thomas Hopkins Gallaudet, com Laurent Clerc fundaram o Asilo Americano para Educação e Instrução dos Surdos Mudos (atual Universidade Gallaudet). Nesta época, houve uma grande valorização e aceitação da Língua de Sinais, aumentando o número de surdos alfabetizados na França, nos Estados Unidos e em outras partes do mundo.
Pedro Ponce de Leon (1510 1584)6, um frade Beneditino espanhol, que segundo depoimento escrito por alguns de seus alunos, utilizava a combinação de sinais com um esforço concentrado na escrita. Inventou o alfabeto manual transformando-o em instrumento de acesso à escrita e à leitura para posteriormente, enfatizar a fala.
De acordo com Barbosa (2004, p.10), o fundador da primeira escola pública para surdos no mundo, o Instituto Nacional para Surdos-Mudos em Paris, foi Charles Michel de LEpée, conhecido como Abbé de LEpée7. Começou a ensinar os surdos em 1760 através da religião, já que possibilitava o acesso à cultura e ao letramento. LEpée inventou os sinais metódicos que foi o resultado da combinação de sinais com o francês escrito para integrar à gramática da língua, e ainda, reconheceu que esta Língua de Sinais desenvolvia-se e servia como transmissora de conhecimentos essenciais aos surdos.
Outra grande contribuição de LEpée para a educação do surdo foi a mudança da educação individual para a coletiva, sem privilegiar apenas aqueles que podiam arcar com o trabalho particular de um educador.
O século XVIII foi considerado o período mais próspero da educação dos surdos, pois houve a fundação de várias escolas para surdos. Além disso, qualitativamente, a educação do surdo também evoluiu porque através da Língua de Sinais, os surdos podiam aprender e dominar diversos assuntos, e exercer diversas profissões.
Como relata Sacks (1990, p.37):
Esse período que agora parece uma espécie de época áurea na história dos surdos, testemunhou a rápida criação de escolas para surdos em todo o mundo civilizado; a saída dos surdos da negligência e da obscuridade; sua emancipação e cidadania; a rápida conquista de posições de eminência e responsabilidade escritores, engenheiros, filósofos e intelectuais surdos, antes inconciliáveis, tornavam-se subitamente possíveis.
Em 1857, o diretor e professor surdo francês, Ernest Huet que era discípulo de LEpée, trouxe uma carta de recomendação da França ao Reitor do Imperial Colégio de D. Pedro II para facilitar a abertura da primeira escola de surdos no país. Então, Huet foi o fundador do Instituto dos Surdos Mudos, atual Instituto Nacional de Educação de Surdos- INES, que usava o método combinado. Não foi fácil à Huet iniciar a constituição da escola, pois naquele tempo, não havia no Brasil referência alguma a respeito da Educação de surdos, e inclusive as famílias relutavam em educá-los.
Em 1878, em Paris, foi realizado o I Congresso Internacional sobre a Instrução de Surdos. Entre outros importantes debates, teve destaque a utilização da mímica natural por parte dos educadores e alunos surdos para que a compreensão da língua falada fosse melhor aprendida pelos surdos. Para isso, seria necessário o respeito às diferenças entre as duas línguas. Foi também nesse congresso que os surdos conquistaram o direito de assinar documentos.
O escocês Alexander Graham Bell8, o inventor do telefone, abre uma escola oralista para surdos, onde defende o ensino da fala e que o surdo não poderia lecionar para outros surdos. Para Bell, assim como para grande parte dos educadores oralistas, o aprendizado da linguagem oral permitiria aos surdos a integração social, rompendo a barreira lingüística entre ouvintes e surdos. Bell resistia à criação de escolas especiais para surdos porque temia a formação de comunidades surdas com tendência ao casamento endógamo, onde seriam criadas colônias de surdos dentro da sociedade nacional, ou seja, a sua principal preocupação era que os surdos constituíssem uma maioria de indivíduos que seriam a variação não-ouvinte da espécie humana.
Pode-se perceber através da história dos surdos, que os mesmos sempre foram uma minoria lingüística inserida em uma maioria dominante9, que impunha ordens aos mais fracos e incapazes, devendo esses obedecer e aceitar passivamente aquilo que lhes era mandado.
Enfim, os surdos eram escondidos pelas suas famílias que tinham vergonha de os ter concebido, suas famílias eram esterilizadas ou as crianças surdas eram transformadas em cobaias de pesquisas.
A discriminação não passa somente por leis e direitos como ocorreu na Antigüidade, continuando até os nossos dias atuais. No caso dos surdos, pensa-se que o domínio da Língua de Sinais é suficiente para incluí-los na sociedade, mas a sua inclusão passa por uma transformação muito mais profunda no pensar, ver e agir de cada um. A discriminação vem da forma de encarar o outro como alguém menor / menos capaz do que o eu. Isto, no entanto, é algo cultural, que nenhuma lei no mundo sozinha pode mudar.
Atualmente no Brasil, os serviços prestados aos surdos ainda são muito poucos. Exemplo disso são alguns programas apresentados pela televisão que sequer possuem legenda oculta ou interpretação em Libras. Há um total descaso quanto à necessidade de intérpretes em locais públicos como hospitais, delegacias, fóruns, etc.
Os surdos ainda continuam até os dias de hoje, sendo vítimas de preconceito. Eles são discriminados, muitas vezes, até mesmo pela própria família. A Comunidade Surda precisa ter a sua cultura10 e língua valorizadas para que possam sentir-se seguros e a sua identidade seja fortalecida.
Portanto, o surdo apresenta algumas características específicas, tais como: diferenças humanas, o multiculturalismo, a construção divergente de identidades, o desenvolvimento de tecnologias diferenciadas para a sua educação, dentre outras. Esses aspectos mencionados, fazem dele um sujeito participante da Cultura Surda, sendo diferente da ouvinte, mas não é um ser incapaz de atuar, trabalhar, estudar e conviver em sociedade. Para isso, basta que as suas limitações como sujeito multicultural sejam respeitadas.
A LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS (LIBRAS) E A AQUISIÇÃO DESTA PELO SURDO
De acordo com Felipe (2001, p.120), o mais antigo registro que menciona a Língua de Sinais é de 368 a.C., escrito pelo filósofo grego Sócrates, quando perguntou ao seu discípulo: Suponha que nós, os seres humanos, quando não falávamos e queríamos indicar objetos, uns para os outros, nós o fazíamos, como fazem os surdos-mudos, sinais com as mãos, cabeça, e demais membros do corpo?11
A comunicação por sinais foi a solução encontrada também pelos monges beneditinos da Itália, cerca de 530 d.C., para manter o voto do silêncio. Mas pouco foi registrado sobre esse sistema ou sobre os sistemas usados por surdos até a Renascença, mil anos depois.
Até o fim do século XV, não havia escolas especializadas para surdos na Europa porque, na época, eles eram considerados incapazes de serem ensinados. A maioria das pessoas surdas foram excluídas da sociedade porque não falavam, algo que para a época, a fala estava etimologicamente ligada ao pensamento e não ao simples ato de emitir sons articulados.
Segundo a Política Educacional para Surdos do Rio Grande do Sul12, Surgiram várias propostas educacionais, porém a Educação das pessoas surdas através das Línguas de Sinais continuou sendo a preferida por eles. Conforme relato anterior, na França, o Abbé Charles Michel de LEpee foi o fundador da primeira escola pública para surdos em Paris, sendo o professor que mais contribuiu para o surgimento da Língua de Sinais, pois considerando insuficiente, as mímicas e gestos criados por eles como meio de comunicação, inventou os sinais metódicos. LEpee em sua pesquisa junto aos surdos, começa a transmitir a idéia de que a Língua de Sinais seria a transmissora de conhecimento entre os surdos.
No Brasil, o Instituto Nacional da Educação de Surdos INES, foi fundado por Ernest Huet, em 1857. O Instituto contribuiu para o desenvolvimento da Língua Brasileira de Sinais, que surgiu da mistura das mímicas e gestos, já usados pelos surdos das várias regiões do Brasil, com a Língua de Sinais Francesa.
O Instituto contribuiu, também para o fortalecimento da Libras porque, em 1896, houve nesta escola um encontro internacional que avaliou a decisão do II Congresso Internacional sobre a Instrução de Surdos13 que tinha ocorrido em 1880, em Milão. Assim, o Instituto continuou como um centro de integração para o desenvolvimento da Libras, pois segundo o relatório do Diretor Tobias Rabello Leite, de 1871, esta escola já possuía alguns alunos vindos de várias partes do país e após dezoito anos retornavam às cidades de origem levando com eles a Libras.
De acordo com Felipe (op. cit., p. 139), o respeito pela Libras originou a primeira pesquisa à respeito desta língua, que foi publicada em 1857, sendo denominada: Iconografia dos Signaes dos Surdos-mudos (ou seja, a criação dos símbolos). Este livro mostrava através de desenhos e explicações destes, os sinais mais utilizados pela Comunidade Surda do Rio de Janeiro. Foi feito por Flausino José da Gama, ex-aluno do Instituto dos Surdos-Mudos, que ao completar dezoito anos foi contratado pela escola para ser um repetidor, ensinando aos seus colegas, em Libras, os conteúdos das disciplinas, segundo o relatório do Diretor, Tobias Rabello Leite, de 187114.
Apesar de toda essa tentativa de reconhecimento da Língua de Sinais, a oficialização da Libras em lei, conforme relatado anteriormente, só ocorreu um século e meio depois, em abril de 2002. Nesse ínterim, o Brasil trocou a monarquia pela república, teve seis Constituições e viveu a ditadura militar. De acordo com Salles et al. (2004, p. 55), o longo intervalo deve-se às decisões arbitrárias tomadas no Congresso de Milão, em 1880, de proibição do uso da Língua de Sinais. Neste evento, ficou definido que o Método Oral é o mais adequado na educação do surdo, tornando-se o domínio da língua oral, condição básica para sua aceitação em uma comunidade majoritária. Esta ação foi implementada na Brasil em 1881.
A Libras quase mudou de nome e só voltou a vigorar em 1991, no Estado de Minas Gerais, com uma lei estadual. Só em agosto de 2001, com o Programa Nacional de Apoio à Educação do Surdo, os primeiros 80 professores foram preparados para lecionar a Língua Brasileira de Sinais. A regulamentação da Libras em âmbito federal só ocorreu em 22 de dezembro de 2005, com o Decreto nº. 562615.
As Línguas de Sinais não são somente um conjunto de gestos que interpretam as línguas orais, como muitas pessoas pensam. Estas línguas expressam idéias sutis, complexas, e até mesmo abstratas. Os seus usuários podem discutir filosofia, literatura ou política, além de esportes, trabalho, moda e utilizá-las para fazer poesias, contar estórias, criar peças teatrais e humor.
Analisando recursos expressivos das línguas de sinais, Quadros (1995, p.1), afirma:
Os sinais, em si mesmos, normalmente não expressam o significado completo do discurso. Este significado é determinado por aspectos que envolvem a interação dos elementos expressivos da linguagem. No ato da conversação, o receptor deve determinar a atitude do emissor em relação ao que ele produz. Os surdos utilizam a expressão facial e corporal para omitir, enfatizar, negar, afirmar, questionar, salientar, desconfiar, e assim por diante.
Assim, como qualquer outra língua, as Línguas de Sinais aumentam seus vocabulários de acordo com a necessidade ou face às mudanças culturais e tecnológicas.
Além disso, conforme afirma Felipe (2001, p.19), não há uma única Língua de Sinais como se imagina, pois assim como as pessoas em toda parte do mundo falam línguas diferentes, há também várias línguas de sinais diferentes, como: a Língua de Sinais Francesa, Chilena, Portuguesa, Americana, Argentina, Venezuelana, Inglesa, Italiana, Urubus-kaapor, entre outras.
Embora cada Língua de Sinais tenha sua própria estrutura gramatical, surdos de países com línguas de sinais diferentes, comunicam-se uns com os outros com mais facilidade, algo que não ocorre entre ouvintes, pois necessitam de um tempo bem maior para que sejam compreendidos. Isto é devido à capacidade dos surdos em desenvolver e aproveitar gestos e pantomimas para a comunicação e estarem atentos às expressões faciais e corporais das pessoas, além dessas línguas terem muitos sinais que se assemelham às coisas representadas.
Muitas pessoas acreditam que a Libras é o português feito com as mãos, que os sinais substituem as palavras desta língua, e que ela é uma linguagem como a das abelhas ou a do corpo, como a mímica. Esses mitos precisam ser desfeitos porque a Libras, como toda Língua de Sinais, é uma língua de modalidade gestual-visual que utiliza, como canal ou meio de comunicação, movimentos gestuais, expressões faciais e corporais que são percebidos pela visão; diferentemente da Língua Portuguesa na modalidade oral-auditiva, que utiliza como canal ou meio de comunicação, sons articulados que são percebidos pelos ouvidos. As diferenças não estão somente na utilização de canais diferentes, estão também nas estruturas gramaticais de cada uma.
Uma semelhança entre as línguas é que todas são estruturadas a partir de unidades mínimas que formam unidades mais complexas, ou seja, todas possuem os seguintes níveis lingüísticos: o fonológico, o morfológico, o sintático e o semântico. Além disso, todas as línguas possuem diferenças quanto ao seu uso em relação à região, ao grupo social, à faixa etária e ao gênero. O ensino oficial de uma língua sempre trabalha com a norma culta, a norma padrão, que é utilizada na forma escrita e falada (ou sinalizada) e sempre toma alguma região e um grupo social como padrão.
O que é denominado de palavra ou item lexical nas línguas orais-auditivas são denominados sinais nas línguas de sinais. Os sinais surgem da interação de movimentos das mãos com suas formas e dos pontos no espaço ou no corpo onde esses movimentos são feitos. Estas articulações das mãos, que podem ser comparadas aos fonemas e às vezes aos morfemas, são chamadas de parâmetros.
Assim, as línguas de sinais constituem sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas. Como qualquer língua também existem diferenças regionais e sócio – culturais. Portanto, deve-se ter atenção às modalidades praticadas em cada unidade da Federação.
Segundo Lucinda Ferreira Brito (1995)16 apud Salles et al. (2004, p.83), lingüista brasileira pioneira no estudo da Língua Brasileira de Sinais (Libras):
O canal vísuo-espacial pode não ser o preferido pela maioria dos seres humanos para o desenvolvimento da linguagem, posto que a maioria das línguas naturais são orais-auditivas, porém é uma alternativa que revela de imediato a força e a importância da manifestação da faculdade da linguagem nas pessoas.
Segundo Felipe (2001, p. 20 e 21), nas Línguas de Sinais podem ser encontrados os seguintes parâmetros que formarão os sinais:
Configuração das mãos: São formas das mãos, que podem ser da datilologia (alfabeto manual) ou outras formas feitas pela mão predominante (mão direita para os destros ou esquerda para os canhotos), ou pelas duas mãos do emissor ou sinalizador. Os sinais APRENDER, LARANJA e ADORAR têm a mesma configuração de mão e são realizados na testa, na boca e no lado esquerdo do peito, respectivamente.
Ponto de articulação: é o local onde é feito o sinal, podendo tocar alguma parte do corpo ou estar em um espaço neutro vertical (do meio do corpo até a cabeça) e horizontal (à frente do emissor). Os sinais TRABALHAR, BRINCAR, CONSERTAR são feitos no espaço neutro e os sinais ESQUECER, APRENDER e PENSAR são realizados na testa.
Movimento: Os sinais podem ter um movimento ou não. Por exemplo, os sinais AJOELHAR e EM-PÉ não têm movimento; já os sinais EVITAR e TRABALHAR possuem movimento.
Orientação/ direcionalidade: Os sinais têm uma direção com relação aos parâmetros acima. Por exemplo, os verbos IR e VIR se opõem quanto à direcionalidade, ocorrendo o mesmo com os verbos SUBIR e DESCER, ACENDER e APAGAR.
Expressão facial e/ou corporal: As expressões faciais e corporais são extremamente importantes para o real entendimento do sinal, sendo que a entonação em Língua de Sinais é feita pela expressão facial. Por exemplo, os sinais ALEGRE e TRISTE não apresentarão significação completa, se a configuração das mãos na produção do sinal não estiver combinada à expressão facial.
Portanto, falar com as mãos é combinar esses cinco elementos para formarem as palavras e estas formarem as frases em um contexto. Além dos parâmetros mencionados, a Libras também segue algumas convenções:
A grafia: os sinais da Libras, para efeito de simplificação, serão representados por itens lexicais da Língua Portuguesa (LP) em letras maiúsculas. Por exemplo: LIVRO, BOLO, CASA.
A datilologia (alfabeto manual): é usada para expressar nomes de pessoas, localidades e outras palavras que não possuem sinal, estará representada pela palavra separada, letra por letra, por hífen. Por exemplo: J-O-Ã-O, A-N-E-S-T-E-S-I-A, H-I-P-Ó-T-E-S-E.
Os sinais: Um sinal, que é traduzido por duas ou mais palavras em Língua Portuguesa, será representado pelas palavras correspondentes separadas por hífen. Por exemplo: QUERER-NÃO (não querer), TER-NÃO (não ter).
Os verbos: serão usados no infinitivo. Todas as concordâncias e conjugações são feitas no espaço. Por exemplo: EU QUERER CURSO.
Desinência de gênero: Na Libras, não há desinências para gênero (masculino ou feminino). O sinal, representado por palavra da Língua Portuguesa que possui marcas de gênero, será determinado através do símbolo @, para reforçar a idéia de ausência e não haver confusão. Por exemplo: AMIG@ amiga ou amigo, FRI@ fria ou frio, MUIT@ muita ou muito, TOD@ toda ou todo, EL@ ela ou ele.
Os pronomes: serão representados pelo sistema de apontação. Apontar em Libras é culturalmente e gramaticalmente aceito.
As frases: obedecerão à estrutura da Libras, não do português. Por exemplo: VOCÊ GOSTAR FORTALEZA? (Você gosta de Fortaleza?)
Diante do exposto, a Língua de Sinais é para os surdos o que a língua oral é para os ouvintes, pois por não poderem adquirir naturalmente a língua oral por seu déficit auditivo, criaram e transmitiram, de geração em geração a sua língua própria. Esta língua tem estrutura e gramática próprias, cuja modalidade de recepção e produção é visuo-gestual, não sendo originadas de qualquer língua oral, e assim como o português, possui algumas variações regionais.
Os mais de cento e vinte anos da Educação de Surdos puderam mostrar que o tipo de exposição exclusiva à língua oral é completamente insatisfatória para um acesso pleno à segunda língua.
A situação é bastante complexa, como afirma Salles et al. (2004, p.78):
As experiências socioculturais do surdo compartilhadas ao longo de sua vida são decisivas para a diversidade e complexidade da sua realidade. Fatores como: o grau de surdez (profunda, severa, moderada, leve), a origem da surdez (congênita ou adquirida e, no último caso, a idade da perda da audição), o fato de os pais serem ou não surdos, a sensibilidade dos pais e educadores para as necessidades de comunicação do surdo, em particular a capacidade dos mesmos na utilização da Língua de Sinais, as políticas públicas de educação e saúde.
A Língua de Sinais é, sem dúvida, a língua natural dos surdos. Língua natural é aquela que os sujeitos adquirem na interação com outros, sem necessitar de muito esforço e de um trabalho sistematizado. Assim, os surdos adquirem a Língua de Sinais como os ouvintes adquirem o português oral, no caso do Brasil.
Conforme Salles et al. (Ibid, p.73), da mesma forma como ocorre com os ouvintes, há três propriedades que se manifestam na aquisição da língua materna (L1) pelas pessoas surdas:
Universalidade: corresponde ao fato de que, em condições normais, todas as crianças adquirem uma língua natural.
Uniformidade: refere-se às semelhanças no processo de aquisição a despeito das consideráveis diferenças nos estímulos do ambiente.
Rapidez: define-se em comparação com a manifestação de outras habilidades como o raciocínio com números, entre outras.
Felipe (op. cit., p.154) afirma que as crianças surdas passam por estágios muito semelhantes às ouvintes, ou seja, elas vão internalizando a língua do mais simples para o mais complexo. Sendo assim, caso a criança surda tenha contato com a Língua de Sinais desde cedo, observar-se-á as seguintes fases:
Primeira fase ou período pré-lingüístico: este é o período inicial que se assemelha ao balbucio das crianças ouvintes. Nesta fase, a criança produz seqüências de gestos que fonologicamente se assemelham aos sinais, mas não são reconhecidos como tal, são somente movimentos das mãos com algumas formas.
Segunda fase ou período de uma palavra ou sinal: a criança surda começa a nomear as coisas, aprende a unir o sinal ao objeto, produzindo suas primeiras palavras. Nesta fase, as crianças surdas fazem os sinais com erros nos parâmetros, assim como as crianças ouvintes que ainda não conseguem pronunciar as palavras corretamente. A criança surda pode, por exemplo, trocar a configuração das mãos ou o ponto de articulação, mas o adulto entende que ela produziu um sinal na língua.
Terceira fase ou período das primeiras combinações: a partir dos dois anos e meio, a criança surda começa a produzir frases de duas palavras, iniciando sua sintaxe, mas ainda as palavras são usadas sem flexão e concordância, a ordem das palavras constituirá sua primeira sintaxe.
Quarta fase ou período das múltiplas combinações: a partir desta fase, a criança surda já começa a adquirir a morfologia de uma Língua de Sinais. A aquisição de subsistemas morfológicos mais complexos continua até os cinco anos, quando também já produzirá frases gramaticais maiores e mais complexas. O primeiro subsistema mais complexo que adquire é a concordância verbal na Língua de Sinais.
O processo de aquisição de uma Língua de Sinais pelo surdo é semelhante ao de qualquer outra língua pelo ouvinte, por isso o surdo deve assumir a Libras como a sua língua natural, sendo de certa forma, responsável pela construção do sujeito em relação à sua percepção de mundo e de si próprio, organização do pensamento e informação de suas experiências.
Segundo Skliar (1997)17 apud Bernardino (2000, p.39):
Se não se organiza adequadamente o acesso destas crianças à Língua de Sinais, seu contato será tardio e seu uso restringido a práticas comunicativas parciais, com as conseqüências negativas que isto implica para o desenvolvimento cognitivo, e, sobretudo, para o acesso à informação e ao mundo de trabalho.
A criança ouvinte desde cedo é exposta à língua oral, através da qual lhe será permitido trocar experiências comunicativas e vivenciar situações do seu meio, constituindo a sua linguagem. Por outro lado, as crianças surdas não tem as mesmas oportunidades porque a nossa sociedade não oferece condições às mesmas para que a sua língua seja desenvolvida e consolidada. Nota-se, dessa forma, que a maior limitação não advém da surdez, e sim da falta de informação e atitude das pessoas em geral.
A criança surda necessita estar em contato com um adulto surdo, fluente em Libras, o mais rápido possível para que de maneira rápida e eficiente seja adquirida a língua por ela. A importância da aquisição da Língua de Sinais por essa criança a capacitará para a significação do mundo e possibilitará a vivência de novas experiências, além de contribuir para a formação da identidade da pessoa surda.
A Língua de Sinais representa um papel fundamental na vida do surdo, pois esta é capaz de conduzi-lo através de uma língua estruturada ao desenvolvimento pleno.
Conforme Góes (1996, p.43), essa língua deve ser inserida na vida da criança surda nos três primeiros anos de idade para que ela tenha um desenvolvimento pleno como sujeito, porém quando a sua aquisição é tardia, o surdo encontra algumas dificuldades na compreensão de um contexto complexo, pensamento abstrato, desenvolvimento de sua subjetividade, evocação do passado e outros.
No entanto, de acordo com a realidade do nosso país, a detecção da surdez nem sempre ocorre até o primeiro ano de vida, tendo-se o acesso à Língua de Sinais tardiamente. Dificilmente, os profissionais responsáveis por diagnosticar a surdez em crianças apontam para a importância da Libras. Esses profissionais devem transmitir aos familiares da criança surda as diferentes propostas de trabalho, como: o fonoaudiológico, informar sobre a importância da Libras para o seu processo educacional, social e cultural, e ainda suas concepções e conseqüências para o desenvolvimento geral do surdo. Segundo Brito et al. (1997, p.22):
As Línguas de Sinais são tão naturais quanto as orais para nós e, para os surdos, elas são mais acessíveis devido ao bloqueio oral-auditivo que apresentam. Porém, não são mais fáceis nem mais complexas. Os surdos são pessoas e, como tais, dotados de linguagem assim como todos nós. Precisam apenas de uma modalidade de língua que possam perceber e articular facilmente para ativar seu potencial lingüístico e, conseqüentemente, os outros potenciais e para que possam atuar na sociedade como cidadãos normais. Eles possuem o potencial. Falta-lhes o meio. E a Língua Brasileira de Sinais é o principal meio que se lhes apresenta para deslanchar esse processo.
A Língua de Sinais tem como meio propagador o campo gestuo-visual, o que a diferencia da língua oral, que utiliza o canal oral-auditivo. Além disso, as duas línguas são antagônicas em relação às regras construtivas. Essa língua deve ser respeitada, como qualquer outra, pois tem como importância a comunicação e ainda é capaz de facilitar o aprendizado de uma segunda língua, tornando-se um ser bilíngüe.
Dessa forma, a criança necessita de uma língua que possibilite a integração ao seu meio, no qual ela seja capaz de compreender o que está ao seu redor, significar suas experiências, em vez de uma língua que a torne um ser apto para reproduzir um número restrito de palavras e frases feitas, que para ela não teriam nenhum significado comunicativo, restringindo sua potencialidade para construir e utilizar a linguagem no processo dialógico.
Conforme Góes (1996, p.38):
Sobretudo nas situações de surdez congênita ou precoce em que há problemas de acesso à linguagem falada, a oportunidade de incorporação a uma Língua de Sinais mostra-se necessária para que sejam configuradas condições mais propícias à expansão das relações interpessoais, que constituem o funcionamento nas esferas cognitiva e afetiva e fundam a construção da subjetividade. Portanto, os problemas tradicionalmente apontados como característicos da pessoa surda são produzidos por condições sociais. Não há limitações cognitivas ou afetivas inerentes à surdez, tudo dependendo das possibilidades oferecidas pelo grupo social para seu desenvolvimento, em especial para a consolidação da linguagem.
O indivíduo surdo, ser humano como qualquer outro, necessita: crescer, desenvolver-se, amadurecer, construir e constituir-se inserido numa língua própria e natural. A criança interage com outras através da linguagem, repensando suas ações, elaborando seu pensamento, vivenciando novas experiências e se desenvolvendo. Uma criança que não escuta, não possuirá as mesmas condições de aprendizagem da criança ouvinte, sendo a sua língua de acesso à comunicação diferente da língua oral.
Os ouvintes têm bloqueado a aquisição da Língua de Sinais pelos surdos, não permitindo que estes aprendam essa língua quando crianças e também não favorecendo um ambiente adequado para a aquisição natural da mesma.
A oficialização da Língua de Sinais foi de extrema importância para os surdos, pois foi através dessa lei que eles têm hoje a sua língua natural pura e garantida. Porém, as Associações da classe ainda lutam para garantir os direitos deles já previstos, mas os resultados dessa luta ainda não são suficientemente fortes para promover mudanças favoráveis em suas vidas.
Não se pode mais negar aos surdos o direito a serem parte integrante e participativa da nossa sociedade, por isso a sua diferença deve ser respeitada para que ele seja capaz de desenvolver-se, promover a integração com a sua cultura para que se identifique e possa utilizar de forma efetiva a Língua de Sinais.
CULTURA, IDENTIDADE E COMUNIDADE SURDA
A constituição da identidade do indivíduo surdo está relacionada às práticas sociais, e não somente a uma língua determinada, e às interações discursivas diferenciadas no decorrer de sua vida: na família, na escola, no trabalho, nos cursos que faz, com os amigos, dentre outros.
Esse grupo particular de surdos que compartilha a mesma cultura, e por isso se identifica é denominado Comunidade Surda.
Segundo a lingüista surda Carol Padden (1989) apud Felipe (2001, p. 38): Uma Comunidade Surda é um grupo de pessoas que mora em uma localização particular, compartilha as metas comuns de seus membros e, de vários modos, trabalha para alcançar estas metas.
Portanto, nessa Comunidade pode ter também ouvintes e surdos que não são culturalmente surdos. Já a Cultura Surda é mais fechada que do que a Comunidade Surda. Membros de uma Cultura Surda se comportam como as pessoas surdas, usam a língua das pessoas de sua comunidade e compartilham das crenças das pessoas surdas entre si e com outras pessoas que não são surdas.
Por esse motivo, falar em Cultura Surda significa também evocar uma questão identitária. Um surdo estará mais ou menos próximo da Cultura Surda a depender da identidade que assume dentro da sociedade. De acordo com Perlin (1998) apud Salles et al. (2004, p. 41), a identidade pode ser definida como:
IDENTIDADE FLUTUANTE: o surdo se espelha na representação hegemônica do ouvinte, vivendo e se manifestando de acordo com o mundo ouvinte.
IDENTIDADE INCONFORMADA: o surdo não consegue captar a representação da identidade ouvinte, hegemônica, e se sente numa identidade subalterna.
IDENTIDADE DE TRANSIÇÃO: o contato dos surdos com a comunidade surda é tardio, o que os faz passar da comunicação visual-oral (na maioria das vezes truncada) para a comunicação visual sinalizada o surdo passa por um conflito cultural.
IDENTIDADE HÍBRIDA: reconhecida nos surdos que nasceram ouvintes e se ensurdeceram e terão presentes as duas línguas numa dependência dos sinais e do pensamento na língua oral.
IDENTIDADE SURDA: ser surdo é estar no mundo visual e desenvolver sua experiência na Língua de Sinais. Os surdos que assumem a identidade surda são representados por discursos que os vêem capazes como sujeitos culturais, uma formação de identidade que só ocorre entre os espaços culturais surdos.
Para que o surdo possa reconhecer sua identidade surda é importante que ele estabeleça o contato com a sua comunidade, como forma de realizar sua identificação com a cultura, os costumes, a língua e, principalmente, a diferença de sua condição. Por intermédio das relações sociais, o sujeito tem possibilidade de acepção e representação de si próprio e do mundo, definindo suas características e seu comportamento diante dessas relações.
Os próprios surdos preferem relacionar-se com outros, pois isto fortalece sua identidade e lhes traz segurança, encontrando nos relatos de problemas e histórias, situações semelhantes às suas: uma dificuldade em casa, na escola, normalmente atrelada à problemática da comunicação. É principalmente entre esses surdos que buscam uma Identidade Surda no encontro surdo-surdo que se verifica o surgimento da Comunidade Surda. Surgem com ela as associações de surdos, onde se relacionam, agendam festinhas de final de semana, encontros em diversos lugares da cidade, como: bares e shoppings.
É nessa comunidade que se discute o direito à vida, à cultura, à educação, ao trabalho, ao bem-estar de todos. É nela que são organizados e pensados os movimentos surdos (caracterizados pela resistência surda ao ouvintismo18, à ideologia ouvinte). É por meio dela que os surdos atuam politicamente para terem seus direitos lingüísticos e de cidadania reconhecidos.
A Comunidade Surda pode ser representada por associações, igrejas, escolas, clubes, ou seja, qualquer lugar onde um grupo de surdos se reúne e divulga a sua cultura, troca idéias e experiências e usa a Língua de Sinais. Dessa forma, ela exerce um papel construtor para a identidade surda, pois é por meio dela que ocorrem as identificações com seus pares e a aceitação da diferença, não como um deficiente ou não-normal, mas como um indivíduo com uma cultura rica que possui valores e língua.
Vale ressaltar que, esta comunidade ainda é minoria, perante a massa onipotente de ouvintes que, na maior parte das vezes, vê os surdos como uma comunidade de incapazes. O depoimento de Laborit (1994, p.39) pode demonstrar essa massa de ouvintes que oprime os surdos: Quero entender o que dizem. Estou enjoada de ser prisioneira desse silêncio que eles não procuram romper. Esforço-me o tempo todo, eles não muito. Os ouvintes não se esforçam. Queria que se esforçassem.
Laborit expressa claramente através desse trecho, o seu esforço unilateral (como pessoa surda) para interagir com os ouvintes, e estes, por não se esforçarem, por discriminarem os surdos, acabam dando visibilidade a essa segregação e permitindo a constituição de um grupo diferente, que acredita ter também uma cultura diferente. Esta estigmatização é imposta por faltar-lhes a característica considerada pela sociedade majoritária, como eminentemente humana: a linguagem oral.
A Comunidade Surda tem muita importância para o desenvolvimento da sua identidade, pois nela a Língua de Sinais ocorre de maneira espontânea. Todo indivíduo precisa interagir com seus semelhantes para que se aproprie de sua cultura e história como forma de construir a sua identidade.
Os surdos por não poderem se expressar como ouvintes, eram desprestigiados e proibidos de usarem a Língua de Sinais na escola ou em casa com pais ouvintes. Era comum a prática de amarrar as mãos das crianças para impedi-las de fazer sinais. Apesar dessas repressões, as línguas de sinais continuaram sendo as línguas preferidas das Comunidades Surdas por serem a sua forma mais natural de comunicação.
A sociedade por muito tempo isolou e discriminou as comunidades surdas, dificultando o processo de sua Identidade Cultural e causando problemas sociais, emocionais e intelectuais na aquisição da linguagem dos surdos.
Até este momento, os Surdos não tinham conseguido serem ouvidos e, na verdade, muitos foram calados por uma Educação que não lhes permitia o acesso à cultura e ao conhecimento em geral. Mas a cultura e a língua dos surdos continuou viva, e eles passaram a reivindicar seus direitos como sujeitos, e entre estes, o direito de que sua língua fosse utilizada na sua educação; que eles fossem reconhecidos não mais como deficientes, mas como diferentes, e que sua cultura fosse respeitada.
Apesar dos avanços em relação à questão do surdo, ainda serem bastante lentos, a Comunidade Surda já pôde comemorar uma grande vitória em 2002 com a aprovação no Congresso Nacional e a sanção da Lei nº 10.43619, em 24 de abril pelo Presidente da República. Esta lei reconheceu a Língua Brasileira de Sinais Libras, como veículo legal de comunicação e expressão da Língua de Sinais no Brasil.
No Brasil, apesar da Comunidade Surda ter conquistado alguns direitos fundamentais, como escola especial, vale-transporte, aparelhos auditivos, intérpretes e outros, a situação ainda é muito precária, em relação à educação, saúde, transporte e lazer, principalmente nas classes menos favorecidas da nossa sociedade.