“O instrumento clássico de legitimação de regimes políticos no mundo moderno é, naturalmente, a ideologia, a justificação racional da organização do poder”. P. 09
“No caso do jacobinismo, por exemplo, havia a idealização da democracia clássica, a utopia da democracia direta, do governo por intermédio da participação direta de todos os cidadãos. No caso do liberalismo, a utopia era outra, era a de uma sociedade composta por indivíduos autônomos, cujos interesses eram compatibilizados pela mão invisível do mercado. Nessa versão, cabia ao governo interferir o menos possível na vida dos cidadãos. O positivismo possuía ingredientes utópicos ainda mais salientes”. P. 09
“Os republicanos brasileiros que se voltavam para a França como seu modelo tinham à disposição, portanto, um rico material em que se inspirar. O uso dessa simbologia revolucionária era facilitada pela falta de competição por parte da corrente liberal, cujo modelo eram os Estados Unidos. Esta não contava com a mesma riqueza simbólica a sua disposição”. P. 12
“… salientava-se jacobinos e positivistas, os últimos com a especificidade que os marcava e que tinha a ver com a visão histórica, filosófica e religiosa de Auguste Comte, e com sua concepção da estratégia política a ser adotada no Brasil para promover as transformações sociais. Ambos os grupos se mostraram conscientes da importância do uso dos símbolos e dos mitos na batalha pela vitória de sua versão republicana”. P. 13
“A discussão dos símbolos e de seu conteúdo poderá fornecer elementos preciosos para entender a visão de república que lhes estava por trás, ou mesmo a visão de sociedade, de história e do próprio ser humano. (…) Um símbolo estabelece uma relação de significado entre dois objetos, duas idéias, ou entre objetos e idéias, ou entre duas imagens”. P. 13
“No caso da criação de novos regimes, o mito estabelecerá a verdade da solução vencedora contra as forças do passado ou da oposição”. P. 14
“Todo regime político busca criar seu panteão cívico e salientar figuras que sirvam de imagem e modelo para os membros da comunidade. (…) Há situações em que a mesma figura pode apresentar diferentes imagens de heróis para diferentes setores da população, como é o caso de Abraham Lincoln nos Estados Unidos. Para a população negra e da costa leste em geral, Lincoln é o herói-salvador do povo, o mártir. Para o meio oeste e o oeste, ele é o herói-conquistador, o desbravador, o homem da fronteira. Por ser parte real, parte construído, por ser fruto de um processo de elaboração coletiva, o herói nos diz menos sobre si mesmo do que sobre a sociedade que o produz”. P. 14
I UTOPIAS REPUBLICANAS
“Como pais exportador de matérias-primas e importador de idéias e instituições, os modelos de república existentes na Europa e na América, especialmente nos Estados Unidos e na França, serviriam de referencia constante aos brasileiros”. P. 18
“… estavam certos os fundadores, ou grande maioria deles: a base filosófica da construção que deveriam compreender, a base do novo pacto político, tinha de ser a predominância do interesse individual, da busca da felicidade pessoal. (…) Como se sabe, para Hume todos os homens eram velhacos e só poderiam ser motivados por meio do apelo a seus interesses pessoais. (…) O mundo utilitário é o mundo das paixões, ou no máximo o mundo da razão a serviço das paixões, e não o mundo da virtude no sentido antigo da palavra.
O utilitarismo, a ênfase no interesse individual, colocava dificuldades para a concepção do coletivo, do público. A solução mais comum foi a de simplesmente definir o publico como a soma dos interesses individuais, como na famosa fórmula de Mandeville: vícios privados, virtude pública”. P. 19
“como observa Hannah Arendt em On revolution, no caso americano a verdadeira revolução já estava feita antes da independência”. P. 19
“Era conservador, na visão de Comte, aquele que conseguia conciliar o progresso trazido pela Revolução com a ordem necessária para apressar a transição para a sociedade normal, ou seja, para a sociedade positivista baseada na Religião da Humanidade”. P. 21
“De especial importância é a ênfase dada por Comte à noção de pátria. A pátria é a mediação necessária entre a família e a humanidade, é a mediação necessária para o desenvolvimento do instinto social. Ela deve, para atender a tal função, construir verdadeira comunidade de convivência, não podendo, portanto, possuir território excessivamente grande”. P. 22
“O fenômeno de buscar modelos é universal”. P. 22
“O Império brasileiro realizara uma engenhosa combinação de elementos importados”. P. 23
“Somente ao final do Império começaram a ser discutidas questões que tinham a ver com a formação da nação, com a redefinição da cidadania”. P. 23
“O guarani, de José de Alencar, romance publicado em 1857, buscava, dentro do estilo romântico, definir uma identidade nacional por meio da ligação simbólica entre uma jovem loura portuguesa e um chefe indígena acobreado. A união das duas raças num ambiente de exuberância tropical, longe das marcas da civilização européia, indicava uma primeira tentativa de esboçar o que seriam as bases de uma comunidade nacional com identidade própria”. P. 23
“Se o governo imperial contava com simpatias populares, inclusive da população negra, era isso devido antes ao simbolismo da figura paternal do rei do que à participação real dessa população na vida política do pais”. P. 24
“Em São Paulo existia, desde 1873, o partido republicano mais organizado do país, formado principalmente por proprietários. A província passara por grande surto de expansão do café e sentia-se asfixiada pela centralização monárquica”. P. 24
“No Brasil, não houvera a revolução prévia. Apesar da abolição da escravidão, a sociedade caracterizava-se por desigualdades profundas e pela concentração do poder”. P. 25
“Via-se no Império brasileiro, por exemplo, o atraso, o privilégio, a corrupção, quando o imperador era dos maiores promotores da arte e da ciência, quando a nobreza era apenas nominal e não hereditária, quando o índice de mortalidade pública era talvez o mais alto da história independente do Brasil. Mas as acusações eram feitas provavelmente de boa-fé, faziam parte da crença republicana”. P. 26
“Pela lei dos três estados, a Monarquia correspondia à fase teológico-militar, que devia ser superada pela fase positiva cuja melhor encarnação era a república. a separação entre Igreja e Estado era também uma demanda atraente para esse grupo, particularmente para os professores, estudantes e militares”. P. 27
“Um grupo social que se sentiu particularmente atraído por essa visão da sociedade e da república foi o dos militares. O fato é extremamente irônico, de vez que, de acordo com as teses positivistas, um governo militar seria uma retrogradação social. Mas entram ai as surpresas que fazem interessante o fenômeno da adaptação de idéias”. P. 27-28
“Com exceção de poucos radicais, os vários grupos que procuravam em modelos republicanos uma saída para a Monarquia acabavam dando ênfase ao Estado, mesmo os que partiam de premissas liberais. (…) A sociedade escravocrata abria também poucos espaços ocupacionais, fazendo com que os deslocados acabassem por recorrer diretamente ao emprego público ou à intervenção do Estado para abrir perspectivas de carreira. Bacharéis desempregados, militares insatisfeitos com os baixos salários e com minguados orçamentos, operários do Estado em busca de uma legislação social, migrantes urbanos em busca de emprego, todos acabavam olhando para o Estado como porto de salvação. A inserção de todos eles na política se dava mais pela porta do Estado do que pela afirmação de um direito de cidadão. Era uma inserção que se chamaria com maior precisão de estadania”. P. 29
“Dentro de tal visão, o patriota era quase incompatível com o homem econômico, a cidadania incompatível com a cultura”. P. 29
“Ora, alem de ter surgido em uma sociedade profundamente desigual e hierarquizada, a República brasileira foi proclamada em um momento de intensa especulação financeira, causada pelas grandes emissões de dinheiro feitas pelo governo para atender às necessidades geradas pela abolição da escravidão. (…) Em vez da agitação do Terceiro Estado, a República brasileira nasceu no meio da agitação dos especuladores, agitação que ela só fez aumentar pela continuação da política emissionista. (…) Predominava a mentalidade predatória, o espírito do capitalismo sem a ética protestante”. P. 29-30
“A imagem mais popular do marechal Floriano Peixoto era a do Guardião do Tesouro, uma pálida versão do Robespierre dos tempos do Comitê de Salvação Pública, chamado o Incorruptível. Mas durou pouco a reação. A corrupção e a negociata voltaram a caracterizar o novo regime, fazendo com que o antigo, acusado antes de corrupto, aparecesse já como símbolo de austeridade pública”. P. 30
“O ponto central do debate era a relação entre o privado e o público, o individuo e a comunidade”. P. 30
“As propostas concretas dos positivistas, e não apenas suas posições filosóficas, iam também na intenção de promover a integração. A começar por sua demanda básica de incorporação do proletariado à sociedade. De preferência, essa incorporação deveria ser feita pelo reconhecimento, por parte dos ricos, do dever de proteger os pobres, por meio de mudança de mentalidade, e não pelo conflito de classes.(…) Até mesmo a transição republicana deveria ser feita de maneira suave: os ortodoxos queriam que o imperador tomasse a iniciativa de se proclamar ditador republicano”. P. 31
“Para que funcionasse a república antiga, para que os cidadãos aceitassem a liberdade pública em troca da liberdade individual (…) talvez fosse necessária a existência anterior do sentimento de comunidade, de identidade coletiva, que antigamente podia ser o de pertencer a uma nação”. P. 32
“No Brasil do inicio da República, inexistia tal sentimento. Havia, sem dúvida, alguns elementos que em geral faziam parte de uma identidade nacional, como a unidade da língua, da religião e mesmo a unidade política. A guerra contra o Paraguai na década de 1860 produzira, é certo, um inicio de sentimento nacional. Mas fora muito limitado pelas complicações impostas pela presença da escravidão”. P. 32
“A busca de uma identidade coletiva para o país, de uma base para a construção da nação, seria tarefa que iria perseguir a geração intelectual da Primeira República (1889-1930). (…) Os propagandistas e os principais participantes do movimento republicano rapidamente perceberam que não se tratava da república de seus sonhos”. P. 32-33
II – AS PROCLAMAÇÕES DA REPÚBLICA
“Não decorrera ainda um mês da proclamação da República quando o encarregado de negócio da França, no Rio de Janeiro, Camille Blondel, anotava a tentativa dos vencedores de 15 de novembro de construir uma versão oficial dos fatos destinada à história. (…) O encarregado percebera um fenômeno comum aos grandes eventos: a batalha pela construção de uma versão oficial dos fatos, a luta pelo estabelecimento do mito de origem”. P. 35
“Benjamin Constant (…) seus seguidores insistem em lhe dar o papel de fundador da República, de responsável pela ação dos militares; teria sido ele quem fornecera os fundamentos ideológicos, quem convencera Deodoro e evitara que o episódio não passasse de quartelada”. P. 36
“Deodoro, Benjamin Constant, Quintino Bocaiúva, Floriano Peixoto (…) A dança dos adjetivos, definidores do papel de cada um desses homens, prossegue até os dias de hoje. A luta maior é pela qualificação de fundador, disputada pelos partidários de Deodoro e Benjamin Constant. Quintino é raramente fundador; com freqüência aparece como patriarca ou aposto. Em torno de Floriano há mais consenso, pois veio depois: ele será o consolidador, o salvador da República. Os que tiram de Deodoro a qualidade de fundador lhe dão, em compensação, o título de proclamador”. P. 37
“… chegaram a se reunir após o 15 de novembro para estabelecer o que consideravam a verdade sobre os fatos e combater o esforço dos que tentavam, segundo eles, deturpar a história em proveito próprio”. P. 38
“O tema corporativo foi decisivo para convencer Deodoro a participar do movimento. É conhecida sua resistência à admissão de civis – paisanos, casacas, como dizia – na conspiração (…) De fato, Ouro Preto decidira reorganizar a Guarda Nacional e fortalecer a polícia como contrapeso à indisciplina do Exército, mas era certamente falso que pretendesse reduzir o contingente do exército, ou mesmo extingui-lo, como se disse a Deodoro”. P. 39
“Esse grupo não tinha visão elaborada de República, buscava apenas posição de maior prestígio e poder, a que julgava ter o Exército direito após o esforço da guerra contra o Paraguai”. P. 39
“O estilo do quadro é o da clássica exaltação do herói militar, elevado sobre os comuns mortais montando fogoso animal. (…) a 15 de novembro, ele não levava espada, apesar de depoimentos em contrário. Representá-lo erguendo a espada coruscante, como queria o major Jacques Ourive, seria violar por demais a verdade dos fatos. Já bastava a dúvida sobre o sentido do gesto de erguer o boné”. P. 40
“Benjamin não aparece em primeiro lugar como representante da classe militar, como vingador e salvador do Exército. Aparece como o professor, o teórico, o portador de uma visão da história, de um projeto de Brasil. A ele se devia o fato de o 15 de novembro ter ido além de uma aquartelada destinada a derrubar o ministério de Ouro Preto, de se ter transformado em mudança de regime, em revolução, em salvação da pátria”. P. 40
“Benjamin é colocado no panteão cívico do Brasil, ao lado de Tiradentes e José Bonifácio. Tiradentes na Inconfidência, José na Independência, Benjamin na República, era essa, para os ortodoxos, a trindade cívica que simbolizava o avanço da sociedade brasileira em direção a seu destino histórico, que era também a plenitude da humanidade em sua fase positiva”. P. 41
“Em sua forma pura, a vertente ligada a Benjamin Constant ficou restrita às propostas dos ortodoxos e não encontrou aplicação prática. Mas contribuiu para várias medidas dos primeiros anos da República, sobretudo a separação da Igreja e do Estado, a introdução do casamento civil, a secularização dos cemitérios, o início do contato com o operariado, a reforma do ensino militar”. P; 42
“Se a republicados deodoristas resumia-se à salvação do Exército, a república da vertente Benjamin Constant queria a salvação da pátria”. P. 42
“A figura simbólica da República, representada por uma mulher, deveria dominar o monumento. (…) A única modificação significativa, que não foge a simbologia positivista, foi a substituição da Pátria no alto do monumento pela Humanidade, representada também por uma mulher, agora com uma criança de colo”. P. 45
“Os republicanos civis foram colocados a par da conspiração apenas quatro dias antes do seu desfecho. Mesmo assim, como vimos, contra a vontade de Deodoro. Para a legitimidade do movimento, no entanto, era importante que ele não aparecesse como simples ação militar. Era fundamental que a presença dos históricos constasse do próprio evento, a fim de evitar a ironia de uma proclamação alheia ao esforço que desenvolviam havia tantos anos”. P. 49
No congresso do partido realizado em 1888, Barata Ribeiro, o futuro prefeito florianista da cidade, manifestava seu ceticismo, afirmando que era das províncias que se devia esperar a vitória do movimento. O Rio de Janeiro, no máximo, contribuir com a pirotecnia”. P. 50
“Deodoro representava o apoio da corporação militar sem interferência na concepção do novo regime e mesmo em seu funcionamento”. P. 50
“Se havia históricos positivistas, especialmente no Rio Grande do Sul, eles não predominavam no Rio e muito menos em são Paulo, onde estava maior o peso do movimento. A república sociocrática dos positivistas era incompatível com a república democrática dos paulistas, isto é, com a república representativa à maneira norte-americana. (…) Os grandes adversários ideológicos dos históricos eram os positivistas e não os deodoristas.
Não é de estranhar, então, que a versão de Quintino Bocaiúva e de Francisco Glicério buscasse reduzir o papel de Benjamin, mais do que o de Deodoro”. P. 50
“Segundo Quintino, foi sua decisão, apoiada por Sólon, que levou à proclamação, inventando os boatos deflagradores da movimentação dos movimentos de São Cristóvão e, assim, definindo a situação. (…) Sua decisão, o arrojo de Sólon, o heroísmo de Deodoro – eis, segundo ele, os ingredientes que fizeram a República. A decisão é dos históricos, é do chefe do Partido Republicano; os militares são os instrumentos livremente aceitos para implementá-la. Quintino sugere que a própria Questão Militar teria sido parte da tática republicana de agitar os quartéis contra o governo. Sena Madureira, ‘nosso companheiro’, teria dado inicio ao conflito com tal finalidade”. P. 51
“A interferência militar, segundo ele, tornara possível a proclamação do novo regime quando os republicanos eram parte insignificante da população. Daí também, segundo ele, a quase nenhuma diferença entre o regime antigo e o novo. Não era a república de seus sonhos”. P. 52
“Se nenhum líder republicano civil teve qualquer gesto que pudesse ser imortalizado pela arte, o povo também esteve longe de representar um papel semelhante ao que lhe coube na Revolução Francesa de que tanto falavam os republicanos”. P. 52
O único exemplo de iniciativa popular ocorreu no final da parada militar, quando as tropas do Exército deixavam o Arsenal da Marinha para regressar aos quartéis. Os populares que acompanhavam a parada pediram a Lopes Trovão que lhes pagasse um trago. A conta de quarenta mil-réis acabou caindo nas costas do taverneiro, pois Lopes Trovão só tinha onze mil-réis no bolso. O anônimo comerciante tornou-se, sem querer, o melhor símbolo do papel do povo no novo regime: aquele que paga a conta”. P. 53.
“Para o novo projeto militar, era necessária uma figura que não dividisse, que fosse o próprio símbolo não só da união militar mas da união da própria nação. O candidato teve de ser buscado no Império: Caxias. O duque passou a representar a cara nacional conservadora da República”. P. 53
“O mito de origem ficou inconcluso, como inconcluso ficou a República”. P. 54
III – TIRADENTES: UM HERÓI PARA A REPÚBLICA
“A luta em torno do mito de origem da República mostrou a dificuldade de construir um herói para o novo regime. Heróis são símbolos poderosos, encarnação de idéias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva. São, por isso, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos. (…) Herói que se preze tem de ter, de algum modo, a cara da nação. Tem de responder a alguma necessidade ou aspiração coletiva, refletir algum tipo de personalidade ou de comportamento que corresponda a um modelo coletivo valorizado”. P. 55
“Deodoro era o candidato mais óbvio ao papel de herói republicano. Não era apenas pela indisputada chefia do movimento militar que derrubou a Monarquia, mas também por certos aspectos de sua atuação na jornada de 15 de novembro. O velho militar, moribundo na véspera, mal se mantendo na sela, pondo-se à frente da tropa, entrando desassombradamente no Quartel-General: sem dúvida, havia aí ingredientes de heroicidade”. P. 56
“Em torna da passagem histórica de Tiradentes houve e continua a haver intensa batalha historiográfica até hoje se disputa por seu verdadeiro papel na Inconfidência, sobre sua personalidade, sobre suas convicções, sobre sua aparência física”. P. 57
“Pouco se sabe sobre a memória de Tiradentes entre o povo de Minas Gerais e da cidade do Rio de Janeiro. Que devia existir tal memória é difícil negar.”. P. 58
“Há também registro de que Joaquim Silvério dos Reis, o traidor dos inconfidentes, não pode viver em paz no Rio de Janeiro, para onde se mudara devido à rejeição dos mineiros. A animosidade da população era tão grande que ele alterou o nome, acrescentando-lhe Montenegro, e foi morar no Maranhão. As pessoas não lhe falavam; quando o faziam, era para o insultar. A se acreditar nele, houve até mesmo um atentado a tiros contra sua vida e um incêndio em sua casa”. P. 58-59
“O bisneto da rainha louca governava o país. O Brasil era uma monarquia governada pela casa de Bragança, ao passo que os inconfidentes tinham pregado uma república americana”. P. 59
“Tiradentes já aparece em seu texto com as cores próprias de um herói cívico. É o mártir que soube morrer sem traço de temor, pois ‘se sacrificava por uma idéia’, interpretação típica de um revolucionário francês”. P. 60
“Ao que parece, o primeiro conflito político em torno da figura de Tiradentes ocorreu em 1862, por ocasião da inauguração da estátua de D. Pedro I no então largo do Rocio, ou Praça da Constituição, hoje Praça Tiradentes. A ocasião e o local eram a própria materialização do conflito. No lugar onde fora enforcado Tiradentes, o governo erguia uma estátua ao neto da rainha que o condenara à morte infame”. P. 60
“A luta entre a memória de Pedro I, promovida pelo governo, e a de Tiradentes, símbolo dos republicanos, tornou-se aos pouco emblemática da batalha entre Monarquia e República”. P. 61
“Havia numerosa simbologia na luta entre Pedro I e Tiradentes”. P. 61
“Por revelar importantes documentos até então desconhecidos, a obra de Norberto tornou-se ponto de referência obrigatório nos estudos da Inconfidência que vieram posteriormente, seja para elogiá-la, seja para criticá-la”. P. 62
“Seu ardor patriótico teria sido substituído pelo fervor religioso, o patíbulo de glória se teria formado em ara de sacrifício. Tiradentes, segundo Norberto, tinha escolhido morrer com o credo nos lábios em vez de o fazer com o brado da revolta – viva a liberdade! Que explodira do peito dos mártires pernambucanos de 1817 e 1824. Norberto resumiu assim as razões de seu desapontamento: ‘Prenderam um patriota; executaram um frade! ’”. P. 63
“Além do óbvio apelo à tradição cristã do povo, que facilitava a transmissão da imagem de um Cristo Cívico, poder-se-ia perguntar por outras razões do êxito de Tiradentes como herói republicano. Pois não foi sem resistência que ele atingiu tal posição. (…) Não consta que se tenha tentado transformar Bento Gonçalves, presidente da república sul-rio-grandense, em herói republicano nacional. O fato talvez se deva à posição peculiar do Rio Grande do Sul no cenário brasileiro e a suspeita de separatismo dirigida à revolta farroupilha. Faltava aos heróis gaúchos à característica nacional, indispensável à imagem de um herói republicano.
Frei Caneca era um competidor mais sério. Herói de duas revoltas, uma pela independência, outra contra o absolutismo do primeiro imperador, morrera também como mártir, fuzilado, pois nenhum carrasco se dispusera a enforcá-lo”. P. 67.
“Talvez esteja ai um dos principais segredos do êxito de Tiradentes. O fato de não ter a conjuração passado à ação concreta poupou-lhe ter derramado sangue, ter exercido violência contra outras pessoas, ter criado inimigos. A violência revolucionária permaneceu potencial. Tiradentes era ‘o mártir ideal e imaculado na brancura de sua túnica de condenado’. A violência real pertenceu aos carrascos. Ele foi a vítima de um sonho, de um ideal, dos ‘loucos desejos de uma sonhada liberdade’, na expressão do autor da Memória. Foi vitima não só do governo português e seus representantes, mas até mesmo de seus amigos”. P. 68
“Ao final do Império, inicio da República, até mesmo os monarquistas começaram a reivindicar para si a herança de Tiradentes. P. 70.
“A aceitação de Tiradentes veio, acompanhada de sua transformação em herói republicano. Unia o país através do espaço, do tempo, das classes. Para isso sua imagem precisava ser idealizada, como de fato o foi”. P. 71
“A tentativa de transformar Tiradentes em herói nacional, adequado a todos os gostos, não eliminou totalmente a ambigüidade do símbolo”. P. 71
“O segredo da vitalidade do herói talvez esteja, afinal, nessa ambigüidade, em sua resistência aos continuados esforços de esquartejamento de sua memória”. P. 73
IV – REPÚBLICA MULHER: ENTRE MARIA E MARIANNE
“Um dos elementos marcantes do imaginário republicano francês foi o uso da alegoria feminina para representar a República. A Monarquia representava-se naturalmente pela figura do rei, que, eventualmente, simbolizava a própria nação”. P. 75
“Os pintores positivistas foram os únicos a levar a sério a tentativa de utilizar a figura feminina como alegoria cívica”. P. 86
“A virgem ou a mulher heróica dos republicanos era facilmente transformada em mulher da vida, prostituta”. P. 87
“Em vez de mãe, a República é mãe-de-leite, a vaca leiteira, que tem de alimentar políticos e funcionários que vivem dela e não para ela”. P. 88
“Segundo a denúncia, que provocou tumulto na Câmara e levou à suspensão da Sessão, mas que não foi contestada, a foto seria de uma tal sra. Prates, uma das meretrizes mais conhecida da capital. Segundo outras versões, seria de Laurinha Santos Lobo, sobrinha e amante de Murtinho. No reverso da nota, a República era representada por uma clássica Palas Atena, de capacete, escudo e lança. A nota é um resumo precioso. A República, quando não se representava pela abstração, clássica ou romântica, só encontrava seu rosto na versão da mulher corrompida, era uma res publica, no sentido em que a prostituta era uma mulher pública”. P. 89
“Ao considerar a política fora de ação do campo da mulher, Rondon na verdade não se afastava da ortodoxia positivista. Apesar da grande ênfase no papel feminino, apesar da declaração da superioridade da mulher sobre o homem, Comte acabava por lhe atribuir o papel tradicional de mãe e esposa, a guardiã do lar, pois era assim que a mulher garantia a reprodução da espécie e a saúde moral da humanidade”. P. 93
“Em nenhum dos casos a participação feminina indicava qualquer adesão à República. Pelo contrário, em 1904, durante a revolta contra a vacina, os jornais registraram a participação de prostitutas ao lado dos rebeldes. Nesse caso, a representação da República como prostituta talvez fosse tão insultuosa para eles como o era para o novo regime”. P. 93
“A separação entre Igreja e Estado efetivada pela República gerou animosidade entre a população, como o atesta a revolta de Canudos. O uso de um símbolo católico para representar a República poderia soar como profanação”. P. 93
“A maioria das representações femininas, à época da proclamação, já tinha traços fin-de-siècles. Salientava a sensualidade, a beleza, a fragilidade da mulher”. P. 95
“Nessas circunstâncias, a única maneira em que fazia sentido usar a alegoria era aproximar uma República considerada falsificada da visão de mulher que a época considerada corrompida, ou pervertida, a prostituta”. P. 96
V – BANDEIRA E HINO: O PESO DA TRADIÇÃO
“A batalha em torno da simbologia republicana deu-se também em relação à bandeira e ao hino. Não podia ser de outra maneira, de vez que são esses tradicionalmente os símbolos nacionais mais evidentes”. P. 109
“Mais do que a batalha da bandeira, a do hino nacional significou uma vitória da tradição, pode-se mesmo dizer uma vitória popular, talvez a única intervenção vitoriosa do povo na implantação do novo regime”. P. 122
BIBLIOGRAFIA
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 1990