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segunda-feira, dezembro 23, 2024

A LUTA PELO DIREITO – PARTE 2

O povo ridiculariza-o sem o compreender… Valeria muito mais porém que o compreendesse!
Naquela pequena quantidade de dinheiro, ele defende a Inglaterra e prova, com este proceder, que não é homem que abandone a sua pátria.
Não é nossa intenção ofender nem causar o menor pesar a alguém, mas a questão é tão importante que somos forçados a estabelecer um paralelo.
Suponhamos um austríaco gozando da mesma posição social e colocado nas mesmas circunstâncias que um inglês; como procederia ele em igual caso?
Se tivéssemos de responder com a nossa experiência, diríamos — não chegarão a dez por cento os que imitam o inglês, porque eles recuam diante dos desgostos oriundos de uma contenda, temem os resultados de uma interpretação má, o que não teme o inglês; em uma palavra, eles pagam.
Mas no dinheiro que o inglês recusa e o austríaco paga, há alguma coisa de característico da Inglaterra e da Áustria: há a história secular do seu respectivo desenvolvimento político e da sua vida social.
Este pensamento oferece-nos uma transição fácil, mas permita-se-nos, antes de terminar esta parte, repetir o princípio que estabelecemos no começo:
A defesa do direito é um ato da conservação pessoal e, por conseguinte, um dever daquele que foi lesado para consigo mesmo.

CAPÍTULO IV
A luta pelo direito na esfera social

Trataremos de provar agora que a defesa do direito é um dever que temos para com a sociedade. Para fazê-lo, devemos pnimeiramente mostrar a relação que existe entre o direito objetivo e o subjetivo.
Mas qual será ela?
Segundo o nosso modo de ver, é o contrário do que nos diz a teoria hoje mais aceita em afirmar que o primeiro supõe o segundo.
Um direito concreto não pode originar-se se­não da reunião das condições que o princípio do direito abstrato liga à sua existência.
Eis aqui tudo quanto nos diz a teoria dominante das suas relações; e, como se vê, é apenas um lado da questão.
Tal teoria faz exclusivamente sobressair a dependência do direito concreto com relação ao direito abstrato e não diz absolutamente coisa alguma dessa relação que existe também em sentido inverso.
O direito concreto restitui ao direito abstrato a vida e a força que recebe; e como está na na­tureza do direito que se realisa praticamente, um princípio legal que jamais esteve em vigor, ou que perdeu a sua força, não merece tal nome, é uma roda gasta que para coisa alguma serve no mecanismo do direito e que se pode destruir sen em nada alterar a marcha geral.
Esta verdade aplica-se sem restrição a todas as partes do direito, tanto ao direito público, como ao privado e ao criminal.
A legislação romana sancionou explicitamente esta doutrina, fazendo da — desuetudo uma causa da revogação das leis; a perda dos direitos concretos pelo não uso prolongado (non-usus) também significa exatamente a mesma coisa.
Enquanto a realização prática do direito público e do penal está assegurada, porque está imposta como um dever aos funcionários públicos, a do direito privado apresenta-se aos particulares sob a forma de direito, isto é, por completo abandonada a sua prática à sua livre iniciativa e à sua própria atividade.
O direito não será letra morta e realisar-se-á no primeiro caso se as autoridades e os funcionarios do Estado cumprirem com o seu dever, no segundo, se os indivíduos fizerem valer os seus direitos.
Mas, se por qualquer circunstância, por comodidade, por ignorância ou por medo, estes últimos ficarem longo tempo inativos, o princípio legal perderá por esse fato o seu valor.
As disposições do direito privado podemos, pois, dizer, não existem na realidade e não têm força prática, senão na medida em que se fazem valer os direitos concretos; e, se é certo que estes devem sua existência à lei, não é menos certo que por outra parte eles lha restituem.
A relação que existe entre o direito objetivo e o subjetivo ou abstrato e concreto assemelha-se à circulação do sangue, que partindo do coração aí de novo volta.
A questão da existência de todos os princípios do direito público repousa sobre a fidelidade dos empregados no cumprimento dos seus deveres; a dos princípios do direito privado sobre a eficácia destes motivos, que levam o lesado a defender o seu direito: — o interesse e o sentimento.
Se estes móveis não são suficientes, se o sentimento se extingue, se o interesse não é bastante poderoso para sobrepujar o amor da comodidade, vencer a aversão contra a disputa e a luta, para dominar o recuo de um processo, será o mesmo que se o princípio legal não vigorasse.
Mas dir-se-á: — que importa?
O lesado não está só em causa?
Ele recolherá os maus frutos.
Relembrêmo-nos do exemplo de um indivíduo que foge do campo da batalha.
Se mil soldados entram em ação, pode perfeitamente suceder que não se note a falta de um só; porém, se cem deles abandonam a sua bandeira, a posição dos que permanecem fiéis será mais crítica, porque todo o peso da luta cairá sobre eles.
Esta imagem, parece-nos, reproduz bem o estado da questão.
Em verdade, trata-se no terreno do direito privado de uma luta do direito contra a injustiça, de um combate comum de toda a Nação na qual todos devem achar-se estreitamente unidos.
Desertar em semelhante caso, é também trair a causa comum, porque é engrossar as forças do inimigo, aumentando a sua ousadia e audácia.
Quando a arbitrariedade, a ilegalidade ousam levantar descomedida e impudentemente a cabeça, pode sempre reconhecer-se por este sinal que aqueles que eram chamados a defender a lei não cumpriram o seu dever.
Portanto, cada um está encarregado na sua posição de defender a lei, quando se trata do direito privado, porque todo o homem está encarregado, dentro da sua esfera, de guardar e de fazer executar as disposições legais.
O direito concreto que possui não é mais que uma autorização que recebe do Estado para com­bater pela lei nas ocasiões que lhe interessam e de entrar na liça para resistir à injustiça, é uma autorisação especial e limitada, ao passo que a do funcionário público é absoluta e geral.
O homem luta, pois, pelo direito inteiro, defendendo o seu direito pessoal no estreito espaço em que ele se exerce.
O interesse e as demais conseqüências de sua ação se estendem pelo mesmo fato muito além de sua personalidade.
A vantagem geral que disto resulta não somente o interesse ideal de que a autoridade e a majestade da lei sejam protegidos, mas um benefício real, perfeitamente prático, compreendido e apreciado por todos como que defendendo e assegurando a ordem estabelecida nas relações sociais.
Suponhamos que o amo não repreende mais os seus criados pelo mal cumprimento de seus deveres, que o credor não pretende molestar seus devedores, que o público não tem nas compras e vendas uma minuciosa vigilância dos pesos e medidas, — por ventura só a autoridade da lei será danificada?
Seria isto o mesmo que sacrificar em uma certa direção a ordem da vida civil, sendo difícil calcular quais seriam as funestas conseqüências destes deploráveis fatos. O crédito, por exemplo, seria lesado de um modo muito sensível…
Todos faríamos o possível por não entreter negócios com aqueles que nos obrigassem a discutir e a lutar quando o direito é evidente; colocaríamos, sem dúvida, os nossos capitais em outras praças e importaríamos as mercadorias de tais lugares.
Quando um tal estado de coisas existe, a sorte daqueles que têm a coragem de fazer observar a lei é um verdadeiro martírio; o seu sentimento firme e enérgico do direito faz justamente a sua desgraça.
Abandonados por todos os que deveriam ser seus naturais aliados, permanecem completamente sós na presença da arbitrariedade que a apatia e a pusilanimidade dos demais convertem na maior audácia e ousadia; e se conseguem enfim com­prar, a preço de grandes sacrificios, a satisfação de permanecer fiéis quanto ao seu modo de agir e de pensar, não recolhem mais que zombaria e ridículo.
Aqueles que transgridem a lei não são os que principalmente assumem a responsabilidade em tais casos, mas sim os que não têm coragem de defendê-la.
Não acusamos a injustiça de suplantar o direito, mas este por que se deixa suplantar, porque se chegássemos a classificar, segundo a importância, estas duas máximas: — “não cometas uma injustiça” — e “não sofras nenhuma” — se deveria dar como primeira regra — “não sofras injustiça alguma” — e, como segunda — “não cometas nenhuma.”
Se considerarmos o homem tal qual ele é, não há dúvida de que a certeza de encontrar uma resistência firme e resoluta, seria melhor meio para fazer que não cometesse uma injustiça, do que uma simples proibição, cuja força prática não é, em realidade, mais que um preceito da lei moral.
Dir-se-á agora que vamos demasiadamente longe, pretendendo que a defesa de um direito concreto não é somente um dever do indivíduo que é atacado para consigo mesmo, mas também um dever para com a sociedade?
Se o que temos dito é verdade, se está estabelecido que defendendo o indivíduo o seu direito defende a lei, e na lei a ordem estabelecida como indispensável para o bem público, — quem ousará afirmar que ele não cumpre ao mesmo tempo um dever para com a sociedade?
Se o Estado tem o direito de chamá-lo para lutar contra o estrangeiro, e se pode obriga-lo a sacrificar-se e a dar sua vida pela salvação pública, — porque não terá o mesmo direito quando é ata­cado pelo inimigo interno que não ameaça menos a sua existência que os outros?
Se a covarde fuga é, no primeiro caso, uma traição à causa comum, — poder-se-á dizer que não se dá o mesrno no segundo?
Não, não basta para que o direito e a justiça floresçam em um país, que o juiz esteja disposto sempre a cingir sua toga, e que a polícia esteja disposta a fazer funcionar os seus agentes; é mister ainda que cada um contribua por sua parte para essa grande obra, porque todo o homem tem o dever de esmagar, quando chega a ocasião, essa hidra que se chama a arbitrariedade e a ilegalidade.
Inútil é fazer notar quanto enobrece, sob este ponto de vista, a obrigação em que cada um se acha de fazer valer o seu dever.
A teoria atual não nos fala mais que de uma atitude exclusivamente passiva em relação à lei; e a nossa doutrina apresenta, às vezes, um estado de reciprocidade no qual o combatente retribui à lei o serviço que dela recebe, reconhecendo-lhe assim a missão de cooperar para uma grande obra nacional.
Demais, pouco importa que a questão apareça sob este ou outro aspecto, porque o que existe de grande e elevado na lei moral é precisamente que ela não conta só com os serviços daqueles que a compreendem, mas que dispõe de bastantes meios de todo o gênero para fazer obrigar aqueles que não respeitam os seus preceitos.
Assim é que, para obrigar a homem ao matrimônio, faz agir em uns o mais nobre dos sentimentos humanos, em outros a paixão grosseira dos sentidos põe em rnovimento o amor, em um terceiro os gozos e, por fim, a avareza em outros; mas qualquer que seja o meio, todos procuram a união conjugal.
Isto também sucede na luta pelo direito, seja o interesse ou a dor que causa a lesão legal, ou a idéia do direito, quem impele os homens a entrar em luta, todos concorrem para trabalhar na obra comum: — a proteção do direito contra a arbitrariedade. Atingimos o ponto ideal da nossa luta pelo direito.
Partindo do baixo motivo do interesse, elevâmo-nos ao ponto de vista da defesa moral da pessoa, para chegar por último a esse comum trabalho de onde deve sair a realização total da idéia do direito.
Que alta importância assume a luta do indivíduo pelo seu direito, quando ele diz:— o direito inteiro, que foi lesado e negado em meu direito pessoal, é que eu vou defender e restabelecer!
Quanto está longe desta altura ideal onde a eleva tal pensamento, essa baixa região do puro individualismo, dos interesses pessoais, dos desígnios egoístas e das paixões que um homem pouco cultivado torna como verdadeiro domínio do direito!
Dir-se-á, talvez, que é uma idéia tão elevada que só a filosofia do direito pode penetrá-la; não ela é de aplicação prática, porque ninguém intenta uma ação somente pela idéia do direito.
Bastar-nos-ia, para refutar essa objeção, recordar a instituição das ações populares 30 no Direito romano que são uma prova evidente do contrário; mas não faríamos justiça ao nosso povo, nem a nós mesmos, se negássemos este sentimento ideal.
Todo homem que se indigna e experimenta profunda cólera, vendo o direito oprimido pela arbitrariedade, possui-o sem dúvida alguma.
Por mais que um motivo egoísta se misture com o sentimento penoso, que provoca uma lesão pessoal, esta dor tem, ao contrário, sua causa única no poder da idéia moral sobre o coração humano.
Esta energia da natureza moral, que protesta contra o atentado dirigido ao direito, é o testemunho mais belo e o mais elevado que se pode dar ao sentimento legal; é um fenômeno moral tão interessante e instintivo para a observação do filósofo como para a imaginação do poeta.
Não há, que saibamos, afecção alguma que possa operar tão subitamente no homem uma transformação tão radical, porque está provado que tem o poder de elevar as naturezas, mesmo as mais dóceis e mais conciliáveis, a um estado de paixão que lhes é completamente estranho, o que mostra que elas têm sido feridas na parte mais nobre do seu ser e que se lhes tem tocado na fibra mais delicada do seu coração.
É semelhante ao fenômeno da tempestade no mundo moral. Grande e majestoso em suas formas pela rapidez, pelo imprevisto e potência da explosão, pelo poder desta força moral que é se­melhante ao desencadeamento de todos as elementos furiosos que derrubam tudo que se acha diante, para logo vir a calma benfeitora e produzir no indivíduo, como em todos, uma purificação moral do ar que a alma respira.
Mas se a força limitada do indivíduo vai quebrar-se contra as instituições que dispensam à ar­bitrariedade uma proteção que negam ao direito, é evidente que a tempestade descarregará suas iras sobre o autor e, então de duas uma : — ou o sentimento legal irritado cometerá um desses crimes de que falaremos mais adiante, ou nos oferecerá o espetáculo não menos trágico de um homem que trazendo constantemente em seu coração o aguilhão da injustiça, contra a qual é impotente, chegará a perder, pouco a pouco, o sentimento da vida moral e toda crença no direito.
Não desconhecemos que esse sentimento ideal do direito que possui o homem, para quem um ataque, ou uma lesão da idéia legal é mais sensível que um atentado contra sua pessoa, e para o que se se sacrifica, sem interesse algum, à defesa do direito oprimido, como se se tratasse do seu próprio, — é um privilégio de naturezas escolhidas.
O homem positivo, realista, despojado de toda a aspiração ideal, que não vê na injustiça senão dano feito a seu próprio interesse, compreende, entretanto, perfeitamente essa relação que estabeleci entre o direito concreto e a lei, e que pode as­sim resumir-se: — o meu direito é o direito inteiro; defendendo-me, defendo todo o direito que foi lesado ao ser lesado o meu direito.
Pode isto parecer um paradoxo, e entretanto é muito justo considerar este modo oposto às crenças dos legistas.
A lei, segundo a idéia que dela temos, não entra absolutamente em nada na luta pelo direito, e não se trata nesta luta da lei abstrata, mas da sua forma material, de um daguerreotipo qual­quer, na qual ela não tem feito mais que fixar-se, sem que seja possível feri-la nela própria imediatamente.
Não desconhecemos a necessidade técnica deste modo de ver, mas ela não deve impedir-nos de reconhecer a justeza da opinião oposta, que, colocando a lei e o direito em uma mesma linha, vê como conseqüência de uma lesão do segundo um ataque feito à primeira.
Esta opinião, talvez, para algum espírito desprevenido seja muito mais exata que nossa teoria jurídica.
A melhor prova do que afirmamos é a própria expressão de que se serve o alemão e que se em­pregava no latim.
Entre nós — o autor chama os outros a juízo, e os romanos chamavam à acusação — “legis actio”.
É, pois, nos dois casos a lei que está em questão, é ela que se vai discutir em um caso particular, e este ponto de vista é da mais alta impor­tância, especialmente para a inteligência do processo no direito antigo dos romanos.
A luta pelo direito é, pois, ao mesmo tempo uma luta pela lei; não se trata somente de um interesse pessoal, de um fato isolado em que ela toma corpo de daguerreotipo, como já dissemos, no qual se fixa na passagem de um de seus luminosos raios, que se pode dividir e quebrar sem a atingir a ela mesma; mas trata-se da lei que se tem desprezado e calcado e que deve ser defendida sob pena de torná-la uma frase vazia de sentido.
O direito pessoal não pode ser sacrificado, sem que a lei o seja também.
Este modo de encarar, que chamaremos, em duas palavras — a solidariedade da lei e o direito concreto, é, como já acima dissemos, a expressão real da sua relação no mais íntimo da sua natureza e que não está tão profundamente oculta, que até o egoísta, incapaz de toda idéia superior, talvez C’ compreenda como em nenhum outro caso, porque o seu interesse é associar o Estado à luta.
É por este meio que ele sem saber, nem querer, contra o seu direito e contra si mesmo, se levanta até à altura ideal de onde se sente representando a lei.
A verdade é sempre verdade, ainda que, contra ela, o indivíduo não a reconheça e não a defenda mais que no estreito ponto de vista do seu interesse pessoal.
É o espírito de vingança e o ódio que impelem Shylock a pedir ao tribunal a autorização de cortar a sua libra de carne nas entranhas de Antônio; mas as palavras que o poeta põe em seus lábios são tão verdadeiras como em quaisquer outros. É a linguagem que o sentimento do direito lesado falará sempre.
É a potência dessa persuasão inquebrantável de que o direito deve ser sempre direito.
É o entusiasmo apaixonado de um homem que tem consciência de que não luta só por sua pessoa, mas também por uma idéia.
A libra de carne que eu reclamo, — lhe faz dizer Shakespeare:
— Eu a paguei caro, ela é minha e eu a quero.
Se vós ma recusais, onde vossa justiça?
O direito de Veneza ficará sem força alguma.
…Essa é a lei que eu represento.
…Eu me apoio sobre meu título.
O poeta, nestas quatro palavras: — “eu represento a lei” — determinou a verdadeira relação do direito sob o ponto de vista objetivo e subjetivo, e a significação da luta pela sua defesa melhor do que poderia fazê-lo qualquer filósofo.
Estas palavras convertem por completo a pretensão de Shylock em uma questão, cujo objeto é o próprio direito de Veneza.
Que atitude verdadeiramente corajosa não é a deste homem em sua fraqueza quando pronuncia estas palavras!
Não é o judeu que reclama a sua libra de carne, mas a própria lei veneziana que assoma à barra do tribunal, porque o seu direito e o direito de Veneza são apenas um; o primeiro não pode perecer sem perecer o segundo.
Se finalmente sucumbe sob o peso da sentença do juiz, que anula o seu direito por uma indecorosa zombaria, 31 se o vemos esmagado pela dor mais cruel, coberto pelo ridículo e com­pletamente abatido, afastar-se vacilando, podemos então afirmar nesse sentimento que o direito de Veneza está humilhado em sua pessoa, que não é o judeu Shylock que se afasta com dificuldade, mas um homem que representa o desgraçado judeu da Idade Média, esse pária da sociedade que em vão grita:
Justiça!
Esta opressão do direito de que ele é vítima não é, contudo, o lado mais trágico nem mais comovedor da sua sorte; o que há de mais horrível é que esse homem, que esse infeliz judeu da Idade Média crê no direito, podendo-se dizer mesmo que como um cristão.
A sua fé é tão inquebrantável e firme como uma rocha; nada a faz abalar; o próprio juiz a alimenta até o momento em que se resolve a catástrofe e o fulmina como um raio.
Então contempla a sua desgraça e vê que só é um mísero judeu da Idade Média a quem se nega a justiça, iludindo-o.
Este tipo de Shylock faz-nos lembrar outro que não é menos histórico, nem menos interessante e poético: — o de Miguel Kohlhaas que, na no­vela com este nome, Henrique Kleist nos representa com tanto acerto.
Shylock retira-se completamente despedaçado pela dor; as suas forças esgotam-se e não luta mais; sofre sem resistência os resultados do juízo.
Com Miguel Kohlhaas a coisa é, porém, outra.
Quando ele esgotou todos os meios para fazer valer o seu direito tão indignamente desprezado, quando um ato injusto exercido pelo gabinete do príncipe lhe fechou todo o caminho legal, e vê que até a autoridade no seu mais alto representan­te, o soberano, faz causa comum com a injustiça, a dor inexprimível que causa senelhante ultraje encoloriza-o e insurreiciona-o.
— “Mais vale ser cão do que ser homem e ver-­se calcar aos pés” — vocifera ele, e imediatamente toma uma suprema resolução.
— “Aquele que me recusa a proteção das leis, — acrescenta ele — degrada-me entre os selvagens do deserto e põe em minhas mãos a clava com que devo defender-me.”
Arranca a essa justiça venal a espada desonrada que ela traz e maneja-a de tal modo que o espanto e o terror se espalham pelo país; a sua ação é tal que este estado apodrecido é abalado até os seus fundamentos e o príncipe treme sobre seu trono.
Não é o sentimento selvagem da vingança que o anima, ele não se faz salteador e assassino como Carlos Moon que queria — “fazer ressoar em toda a natureza o grito da revolução, para levar ao combate contra a raça das hienas, o ar, a terra, o mar” — e que declara a guerra a toda a humanidade porque foi violado no seu direito; não, ele age ao contrário sob a influência desta idéia moral: — “que tem para com o mundo o dever de consagrar todas suas forças para conseguir reparação e pôr os seus concidadãos ao abrigo de semelhantes injustiças.”
Esta é a idéia a que ele tudo sacrifica, a comodidade de sua família, a honra do seu nome, todos os seus haveres, o seu sangue e a sua vida; não destrói por destruir; tem um fim: — o de vingar-se do culpado e de todos que fazem causa comum com ele.
Quando vê surgir a esperança de poder obter justiça, voluntariamente depõe as suas armas; porém, como fora escolhido para nos mostrar até que ponto a ignomínia, a ilegalidade e a baixeza de caráter ousam descer nessa época, vê que falta a promessa que se lhe havia dado, que se viola o salvo conduto que lhe fora entregue e termina os seus dias na praça onde eram executados os criminosos.
E, entretanto, antes de morrer faz-se-lhe justiça e este pensamento de não ter combatido em vão, de ter mantido a sua dignidade humana, sustentando o justo, eleva o seu coração acima dos horrores da morte, e assim, reconciliado comsigo mesmo, com o mundo e com Deus, abandona-se resolutamente e de boa vontade ao carrasco.
Quantas reflexões não nos deve sugerir este drama legal!
Nele temos um homem honrado, escrupulosamente amigo do direito, cheio de amor por sua família e de sentimento religioso que, de um modo impetuoso, se converte em um Átila, espalhando o luto e a desolação em todos os povos por onde passa. Mas, de onde vem essa transformação?
Nasce precisamente dessas qualidades em que se origina, por assim dizer, vem dessa grandeza moral que o torna superior a todos os seus inimigos; ela vem desse alto respeito pelo direito, da crença em sua santidade, da força de ação que possui o seu sentimento moral que é in­teiramente justo e são.
Na sorte trágica deste homem, o que ha de profundamente comovedor é que as qualidades que constituem e distinguem a nobreza da sua natureza, isto é, este sentimento ardente e ideal do direito, esse sacrifício heróico em defesa de uma idéia, em contato com o mundo miserável de então, onde a arrogância dos poderosos apenas era igualada pela venalidade e covardia dos juízes, concorrem precisamente à perda dele.
Os crimes que cometeu recaem com um duplo ou tríplice peso sobre o príncipe, seus funcionários e juízes, que o impeliram da via legal para a da ilegalidade.
Qualquer que seja a injustiça que possamos sofrer, por mais violenta que seja, não há para o homem alguma que possa ser comparada à que pratica a autoridade estabelecida por Deus, quan­do ela viola a lei.
O assassinato judiciário, como o chama perfeitamente a nossa lingua alemã, é o verdadeiro pecado mortal do direito.
Aquele que, estando encarregado da administração da justiça, se faz assassino, é como o médico que envenena o doente, como o tutor que faz perecer seu pupilo.
O juiz que se deixava corromper era, nos primeiros tempos de Roma, punido com a pena de morte.
Para a autoridade judiciária que tem violado o direito não há acusador mais terrível que a figura sombria e continuamente ameaçadora do homem, que a lesão do sentimento legal tornou criminoso; é a sua própria sombra sob traços bem sanguinolentos.
Aquele que foi vítima de uma injustiça, corrompida e parcial, acha-se violentamente lançado fora da via legal, faz-se vingador e executor do seu direito, e não é raro que, arremessado pelo declive, fora de seu fim direto, se torne inimigo da sociedade, salteador e homicida.
Se a sua natureza for nobre e moralizada, como a de Miguel Kohlhaas, poderá sobrepôr-se a essas tendências, mas chegará a ser criminoso e sofrerá por isso a pena correspondente à sua falta, mártir do seu sentimento do direito.
Diz-se que o sangue dos mártires não corre em vão, e isto pode ser aqui uma grande verdade.
É provável que o seu espectro suplicante subsista largo tempo, porque uma opressão do direito, semelhante à de que fora vítima, permanece sobejamente impressa para ser olvidada.
Evocando esta sombra, queremos mostrar, por um exemplo frisante, até onde se pode chegar, se o sentimento do direito for enérgico e ideal, quan­do a imperfeição das instituições legais negam uma satisfação legítima.
A luta pela lei converte-se em uma luta contra ela.
O sentimento do direito abandonado pelo poder que devia protegê-lo, livre e senhor de si mesmo, procura os meios para obter a satisfação que a imprudência, a má vontade e a impotência recusam.
Não é somente nas naturezas isoladas, especialmente cheias de vida e inclinadas à violência, que o sentimento nacional do direito, se me posso assim exprimir, se eleva e protesta contra semelhantes instituições legais.
Estas acusações e estes protestos reproduzem­-se, por vezes, pelo povo inteiro em certos fatos que, segundo o seu fim ou o modo como o próprio povo ou uma classe determinada os consideram ou aplicam, podem ser encarados como simplesmente acessórios, com que a Nação concorre para as instituições do Estado.
Tais eram na Idade Média, entre outros, o cartel de desafio, que prova a impotência ou a parcialidade dos tribunais correcionais de então e a fraqueza do poder público.
Em nossos dias a existência do duelo atesta-nos, sob uma forma sensível, que as penas que o Estado aplica a um ataque à honra, não satisfazem o sentimento delicado de certas classes da sociedade.
Isto nos dá a entender ainda a vingança do corso, e essa justiça popular aplicada na América do Norte que se chama a lei de Lynch.
Tudo anuncia muito claramente que as instituições legais não estão em harmonia com o sentimento legal do povo ou de uma classe e, em todos os casos, obriga o Estado a reconhecê-las como necessárias ou ao menos a suportá-las.
Quando a lei as tem proscrito, sem poder conseguir fazê-las desaparecer, podem dar origem a um grave conflito para o indivíduo.
O corso que prefere antes obedecer a lei que recorrer a vingança, é desprezado pelos seus; aquele que, ao contrário, acedendo à influência nacional a emprega, está sujeito a cair sob o braço da justiça.
Assim acontece com o nosso duelo — aquele que o recusa, quando o dever o impõe, é desprezado; aquele que o aceita recebe a punição, e, neste caso, a posição é igualmente penosa para o indivíduo como para o juiz.
Procurar-se-ia debalde tratar de descobrir fatos semelhantes na história primitiva de Roma, porque as instituições do Estado estavam então em harmonia completa com o sentimento nacional.
Assim que apareceu o cristianismo, foi que os cristãos se afastaram dos tribunais seculares para levar suas causas diante do bispo, como os judeus na Idade Média que fugiam dos tribunais católicos, apelando para a decisão de seus Rabinos.

Nada mais temos a dizer sobre a luta do indivíduo pelo seu direito.
Estudâmo-lo na gradação dos seus motivos, considerando-o primeiramente como um puro cálculo de interesse, elevando-nos logo desse grau a esta consideração ideal: — a manutenção da personalidade, a defesa das condições da existência moral, para atingir enfim um ponto de vista que é a sua maior altura e de onde uma falta pode precipitar o homem que foi lesado no abismo da ilegalidade: — tal é a realização da idéia do direito.
O interesse desta luta, longe de reduzir-se ao direito privado ou à vida pnivada, estende-se, ao contrário, muito mais além.
Uma Nação não é, em suma, mais que o conjunto de indivíduos que a compõem; ela sente, pensa e age, como seus membros isolados sentem, pensam e agem.
Se o sentimento do direito no indivíduo está embotado, é covarde e apático quando se trata do direito privado; se os obstáculos que opõem as leis injustas ou as más instituições não lhe permitem mover-se e desenvolver-se livremente em toda a sua pujança, se ele é perseguido quando deveria ser protegido e encorajado; se em sua virtude se acostuma a sofrer a injustiça, a considerá-la como um estado de coisas que não se pode mudar; — quem poderá crer que um homem, cujo sentimento legal está tão enfraquecido, tão apático e paralizado, possa despertar tão subitamente, sentir tão violentamente e agir com tanta energia quando se pratica uma lesão legal que não atinge o indivíduo, mas todo o povo, quando se trata de um atentado à sua liberdade política, de destruir ou alterar a sua constituição ou de um ataque estrangeiro?
Como é possível, pois, que aquele que não está acostumado a defender corajosamente o seu direito pessoal, se sinta impelido a sacrificar voluntariamente os seus haveres e a sua vida pela salvação pública?
Como esperar do homem que, renunciando ao seu direito por inclinação aos gozos, não viu o dano moral feito em sua pessoa e em sua honra, daquele que não conheceu até então no direito outra medida que a de seu interesse material, tenha outro modo de julgar quando se trata do direito e da honra nacional?
De onde surgiria expontaneamente esse sentimento legal até então desmentido?
Não, isto não pode ter lugar!
Aqueles que defendem o direito privado são os únicos que podem lutar pelo direito público e pelo direito das gentes; eles empregarão nessa luta as qualidades já reveladas na outra e elas decidirão a questão.
Pode-se, pois, afirmar que no direito público e no das gentes recolher-se-ão os frutos, cuja semente foi semeada e cultivada pela Nação no direito privado.
Nas profundezas desse direito, nos menores detalhes da vida é onde se deve acumular lenta­mente a força que entesoura esse capital moral que o Estado necessita para poder atingir o seu fim.
A verdadeira escola da educação política não é para o povo o direito público, mas o direito privado; e, se quiremos saber como uma Nação defenderá em um dado caso os seus direitos políticos e a sua posição internacional, basta saber-se como o indivíduo defende o direito pessoal na vida privada.
Não podemos esquecer-nos do que dissemos do inglês, sempre pronto a lutar; no dinheiro que defende este homem com tanta tenacidade, está a história do desenvolvimento político da Inglaterra.
Pessoa alguma ousará arrancar a um povo, do qual cada membro tenha por costume defender valentemente o seu direito, até nos menores detalhes, o bem que lhe é mais precioso.
Não foi também por acaso que o povo da antiguidade, que teve no interior o mais alto desenvolyimento político, teve também o maior desenvolvimento de forças no exterior, por quanto o povo romano possuía também, ao mesmo tempo, o mais aperfeiçoado direito privado.
O direito é o ideal (por mais paradoxal que isto possa parecer) não o ideal fantástico, mas o do caráter, isto é — o do homem que se reco­nhece como sendo o seu próprio fim, e que liga pouca importância a tudo que existe, quando é atacado nesse domínio íntimo e sagrado.
Demais, que importa donde vem o ataque feito contra seu direito?
Que venha de um indivíduo, do governo ou de um povo estrangeiro, é-lhe indiferente.
Não é, em verdade, a pessoa do agressor que decidirá da resistência que deve haver, mas a ener­gia do seu sentimento legal e a força moral que emprega para a sua conservação pessoal.
Será, pois, uma verdade a afirmação de que a força moral de um povo determina o grau da sua posição política quer no interior como no exterior.
O Império Chinês com o seu bambú que serve de verga para os adultos e as suas centenas de milhões de habitantes, jamais alcançará aos olhos das Nações estrangeiras o posto honroso que ocupa a pequena república da Suíça no concerto dos povos.
O temperamento dos suíços não é somente ar­tístico, de poesia e ideal; é positivo e prático como o dos romanos, mas no sentido em que tomamos esta palavra; falando-se do seu direito, pode aplicar-se o que dissemos dos ingleses.
O homem que tem o são sentimento do direito, minará a base sobre a qual este sentimento se apoia, se apenas se contenta e satisfaz com a sua defesa, sem contribuir para a manutenção do direito e da ordem; porquanto ele sabe que, combatendo pelo seu direito, defende o direito na sua totalidade; sabe também que, defendendo o direito em geral, luta pelo seu direito pessoal. Quando este modo de ver, quando este sentimento pela legalidade estrita reina em um lugar, em vão se tentaria descobrir esses fenômenos aflitivos que aparecem em outros pontos tantas vezes.
É assim que o povo não tomará o partido do criminoso ou do transgressor da lei a quem a au­toridade quer perseguir, em outros termos, não verá nos poderes públicos o inimigo nato dos povos.
Cada qual não ignora que a causa do direito é a sua própria causa e só o criminoso simpatisará com o criminoso; o homem honrado, ao contrário, de boa vontade ajudará a polícia e as autoridades em suas pesquisas.
Tiraremos, entretanto, a conseqüência de tudo que temos dito. Esta resume-se em uma frase bem simples: — não existe para o Estado, que quer ser considerado forte e inquebrantável no exterior, bem mais digno de conservação e de estima que o sentimento do direito na Nação.
É este um dos deveres mais elevados e mais importantes da pedagogia política.
O bom estado e a energia do sentimento legal do indivíduo constituem a fonte mais fecunda do poder e a garantia mais segura da existência de um país, tanto em sua vida exterior como na interior.
O sentimento do direito é como a raiz da árvore; se a raiz se danifica, se se alimenta em terreno árido ou se se estende por entre rochas, a árvore será raquítica, os frutos ilusórios, bastando uma pequena borrasca para fazê-la rolar pelo chão; mas o que se vê é apenas a copa e o tronco, enquanto que a raiz se oculta na terra dos olhares do observador frívolo.
E aí, onde muitos políticos não acham digno descer, é que age a influência destruidora das leis viciadas e injustas e as más instituições do direito exercem influência sobre a força moral do povo.
Aqueles que se contentam com observar as coisas superficialmente e que não querem ver se­não a beleza da copa, não podem ter a menor idéia do veneno que sobe desde a raiz à ramagem superior.
É por isso que o despotismo sabe bem onde deve descarregar o seu mortífero machado para derrubar a árvore; antes de cortar a copa procura destruir a raiz, dirigindo assim certeiros gol­pes contra o direito privado, desconhecendo e atropelando o direito do indivíduo, — é assim que tem começado todo o despotismo.
E, quando se terminar esta obra, a árvore cai mirrada e sem seiva.
Eis aí porque se deve tratar sempre, nessa esfera, de opor grande resistência à injustiça.
Os romanos andavam sabiamente quando, por um atentado ao pudor e à honra de uma mulher, acabaram de uma vez com a monarquia e mais tarde com o decinvirato.
Destruir no camponês a liberdade pessoal, esmagando-o com impostos e vexames, colocar o habitante das cidades sob a tutela da polícia, não lhe permitindo fazer uma viagem sem o obrigar a apresentar a cada passo o passaporte, encadear o pensamento do escritor por meio de leis injustas, repartir os impostos arbitrariamente e obedecendo ao favoritismo e à influência, são princípios tais que um Machiavel não poderia inventar melhores meios para matar num povo todo o sentimento civil, toda a força moral e assegurar ao despotismo uma tranqüila conquista.
Cumpre considerar que a porta por onde entram o despotismo e a arbitrariedade serve também para favorecer as irrupções do inimigo estrangeiro; e, em último caso, talvez demasiadamente tarde, todos os sábios reconhecerão que o meio mais vigoroso para proteger a nação contra a invasão estrangeira é a força moral unida ao sentimento do direito despertado no povo.
Na época feudal, em que o camponês e o habitante das cidades eram submetidos à arbitrarie­dade e ao absolutismo dos senhores, foi quando o império alemão perdeu a Alsácia e Lorena; -como poderiam estas províncias experimentar um sentimento pelo Império se o não tinham para si mesmas?
Somos unicamente nós os culpados; se nos aproveitamos tardiamente das lições da história, nada tem ela que ver com que não a tivéssemos em tempo compreendido, porque ela nô-las dá sem­pre de modo que possamos aproveitá-las.
A força de um povo corresponde à do seu sentimento do direito; é, pois, velar pela segurança e força do Estado o cultivar o sentimento legal da Nação não só no que se refere à escola e ensino, como também no que toca à aplicação prática da justiça em todas as situações e momentos da vida.
Não é suficiente, portanto, ocupar-se do mecanismo exterior do direito, porque pode estar de tal modo organizado e dirigido que impere a mais perfeita ordem e que o princípio que consideramos como o mais elevado deva ser completamente desprezado.
A servidão, o direito de proteção que pagava o judeu e tantos outros princípios e instituições de épocas passadas, eram, em verdade, às vezes, conformes à lei e à ordem.
Não é menos verdade, entretanto, que essas instituições estavam em profunda contradição com as exigências de um sentimento legal, digno e elevado e que prejudicavam talvez mesmo mais o Estado que o camponês, o habitante das cidades, o judeu sobre que recaía o peso da injustiça.
Determinando de uma maneira clara e precisa o direito positivo, desviando de todas as esferas do direito, não só do civil como das leis de polícia e da legislação administrativa e financeira, tudo o que pode implicar com o sentimento do direito são e digno do homem; proclamando a independência dos tribunais e reformando o processo, — chegar-­se-á seguramente a aumentar a força do Estado, muito melhor que votando o mais elevado dos orçamentos militares.
Toda a disposição arbitrária ou injusta, emanada do poder público, é um atentado contra o sentimento legal da Nação e, por conseqüência, contra a sua própria força.
É um erro contra a idéia do direito que recai sobre o Estado, que há de pagá-lo com excesso e usura, podendo até por diversas circunstâncias chegar a custar-lhe a perda de uma província.
E, tanto assim é, que deve estar obrigado o Estado a não colocar-se, nem por essas razões de conveniências, ao abrigo de tais erros; porquanto cremos que, ao contrário, o mais sagrado dever do Estado é cuidar e trabalhar para a realização desta idéia por ela mesma.
Entretanto pode haver aí uma ilusão de dou­trinário e não censuraremos o homem de Estado prático que responda a semelhante questão, enco­lhendo os ombros.
Por outro lado, é por isso também que temos suscitado a face prática da questão, porque a idéia do direito e a do interesse do Estado se dão aqui as mãos.
Não há sentimento legal, por firme e são que seja, que possa resistir à prolongada influência de um mau direito, porque se embota e se extingue devido à essência do direito, que, como já dissemos por múltiplas vezes, consiste na ação.
A liberdade de ação é para o sentimento legal o que o ar é para a chama; se a diminuís ou paralisais, acabareis com tal sentimento.

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