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terça-feira, dezembro 3, 2024

A LUTA PELO DIREITO – PARTE 3

E a conclusão que disso tiramos é que o sentimento do direito não é igualmente lesado por todos os ataques, por quanto enfraquece ou aumenta segundo os indivíduos e os povos vêem na lesão que se faz ao seu direito uma ofensa mais ou menos grave à condição de sua existência moral.
Quem quisesse continuar a questão, sob este ponto de vista, seria fartamente recompensado em seus esforços.
Desejaríamos juntar aos exemplos da honra e da propriedade, um capítulo que recomendamos especialmente — o matrimônio.
Quantas reflexões poderiam fazer-se do modo diverso como os indivíduos, os povos e as legislações consideram o adultério!
A segunda condição do sentimento legal, isto é — a força de ação, é uma pura questão de caráter. A atitude de um homem ou de um povo em presença de um atentado cometido contra o seu direito é a pedra de toque mais segura para julgá-lo.
Se compreendermos por caráter a personalidade plena e inteira, não há, sem dúvida, melhor ocasião de exibir esta nobre qualidade que em presença do que arbitrariamente lesa, ao mesmo tempo, o direito e a pessoa.
As formas pelas quais se produz a reação causada por um atentado ao sentimento do direito e da personalidade que se traduzem, sob a influência da dor, em vias de fato, apaixonadas e selvagens, ou que se manifestam por uma grande e tenaz resistência, de modo algum podem servir para deterrninar a força do sentimento legal.
Seria, pois, um erro e dos mais grosseiros supor em uma Nação selvagem, e em um homem da plebe, um sentimento mais ardente que o de um homem educado, porque aqueles tornam o primeiro partido e estes o segundo.
As formas são quase sempre devidas à educação e ao temperamento, pnincipalmente quando uma resistência firme e tenaz não cede em impor­tância a uma reação violenta e apaixonada.
Seria deplorável que isso fosse de outromodo, pois seria o mesmo que dizer que o sentimento do direito se extingue nos indivíduos e nos povos em proporção e medida do progresso que fazem no seu desenvolvimento intelectual.
Um olhar lançado sobre a história e sobre o que se passa na vida é suficiente para nos convencer do contrário.
Não é igualmente na antítese da pobreza e da riqueza que poderemos achar a solução, por quanto, por mais diferente que seja a medida econômica, conforme a qual o rico e o pobre julgam um mesmo objeto, quando se trata de um ataque à propriedade, como já fizemos observar, não tem aplicação alguma, porque não se trata neste caso do preço material desse objeto, mas do valor ideal do direito e, por conseqüência, da ener­gia do sentimento legal relativamente à propriedade; não é a quantidade mais ou menos considerável da riqueza que decide, mas a força do sentimento legal.
E a melhor prova que se pode considerar é a que o povo inglês nos oferece.
Jamais a sua riqueza alterou o sentimento do direito; pelo contrário, temos muitas vezes sobre o continente ocasião de julgar e nos persuadir­mos da energia com que este sentimento se manifesta nas mais simples questões de propriedade.
É conhecida por todos essa figura do viajante inglês que, para não ser vítima das trapaças das hospedarias, hoteleiros, cocheiros, etc., opõe uma resistência tal que dir-se-ia que se tratava de defender o direito da velha Inglaterra; detém-se na viagem se for mister, chegando a dispender o décuplo do valor do objeto, antes de ceder.

CAPÍTULO V
O direito alemão e a luta pelo direito

Poderíamos dar por concluída aqui a nossa tarefa, mas perrnita-se-nos, entretanto, tratar de uma questão que está intimamente relacionada com a matéria de que temos falado; e esta é a de saber em que proporção o nosso direito atual, ou melhor, o nosso atual direito romano, tal qual está introduzido na Alemanha e do qual ousamos unicamente ocupar-nos, corresponde às condições que temos até aqui desenvolvido.
Não vacilamos em afirmar categoricamente que não corresponde de modo algum e que está muito longe das pretenções legítimas de um homem em que o sentimento legal está perfeitamente são.
Não somente porque, em muitos casos que a prática oferece, não tenha encontrado solução, mas porque reina em seu conjuncto um modo de ver completamente contrário a esse idealismo, que acima representamos, como constituindo a natureza e o bom estado do sentimento legal.
O nosso direito civil não é o que menos reproduz essa consideração ideal que nos mostra em uma lesão não só um ataque contra a propriedade, mas também contra a própria pessoa.
Não tem para todas as violações do direito, salvo o ataque à honra, outra medida que a do valor material, pelo que não é mais que a expressão de um grosseiro e puro materialismo.
Mas dir-se-á: — o que deve garantir o direito do que for violado em sua propriedade, senão o objeto em litígio ou o seu valor? 32
Admitindo-se a justiça desta objeção, imperioso se tornava chegar à conclusão de que não poderia ou não devia ser castigado o ladrão que tivesse restituído o objeto roubado.
Mas, replicar-se-á ainda, o ladrão não ataca somente a pessoa lesada, mas também as leis do Estado, a ordem legal e a lei moral.
Queremos que se nos diga se não acontece o mesmo com o devedor que nega de má fé o em­préstimo que se lhe fez, o mandatário que abusa indignamente valendo-se da confiança em si depositada.
É reparar-se a lesão que se fez ao nosso sentimento legal, o não conceder-nos, depois de longo pleito, senão o que desde o princípio nos pertencia?
Mas, afora esse desejo tão motivado de se obtém satisfação, — não é irritante o desequilíbrio na­tural que existe entre as partes?
O perigo que a ameaça de perder a demanda consiste para um em perder o bem que era seu e para o outro na entrega do objeto que injustamente conservava;
no caso contrário, um teria a vantagem de nada haver perdido, e o outro de se haver enriquecido à custa do seu adversário.
Não é isto provocar a maior das falsidades e conceder um prêmio à deslealdade?
Em verdade, não fazemos senão caracterizar o nosso direito, e mais além teremos ocasião de mencionar fatos em nosso apoio; porém crêmos que facilitará a prova, o considerar desde já o ponto de vista sob que se encarava esta questão no direito romano.
A este respeito distinguimos três graus no seu desenvolvimento.
O sentimento do direito é no primeiro período de uma violência desmesurada, e se posso assim exprimir-me, direi que se não conseguiu dominar: — é o antigo direito; no segundo, reina ostentan­do uma grande força de moderação: — é o direito intermediário; no terceiro enfraquece-se e estiola-­se: — é o fim do império, e particularmente — o direito de Justiniano.
Em poucas palavras resumiremos o resultado das investigações que fizemos e publicamos em outra obra, sob a forma como esta questão aparece, no primeiro grau do seu desenvolvimento.
A irritabilidade do sentimento do direito nesta época era tal, que toda a lesão, todo o ataque ao direito pessoal se considerava como uma injustiça subjetiva, sem se tomar em consideração a inocência ou o grito de culpabilidade do agressor.
Assim o querelante exigia, pelo próprio fato da ofensa, daquele que era formalmente culpado como daquele que somente o era materialmente, — uma satisfação.
Aquele que negava uma dívida provada, evidente (nexum) e o que houvesse causado um dano em alguma coisa do seu adversário, pagava, se perdia, o duplo.
Do mesmo modo o que em ação de reinvindicação retirasse os frutos como se fosse o proprietário, se fosse condenado devia restituir o dobro e por haver perdido o litígio era ainda obrigado a sacrificar a soma caucionada como fiança ou multa (sacramentum).
Não só o querelante como o demandista vencido estava sujeito à mesma pena, e isto porque reclamava coisa que não lhe pertencia.
Se se excedia um pouco na avaliação da quantia que reclamava em juízo, ainda quando fosse de dívida certa, retirava-se e anulava-se a demanda.
Para o direito novo passou alguma coisa dessas instituições e princípios do antigo, mas tudo o que é próprio do direito intermediário tem um espírito completamente diferente que pode ser assim caracterizado: — é a aplicação e o emprego de uma grande moderação, em todos os casos em que se trata de lesões ao direito privado.
Distingue-se rigorosamente a injustiça objetiva da subjetiva: a primeira supõe apenas a restituição do objeto, a segunda acarreta mais uma punição que consiste ou em multa ou em infâmia, sendo esta aplicação proporcional das penas precisamente um dos pensamentos mais puros do direito romano deste período.
Os romanos tinham um sentimento do direito demasiadamente justo para permitir ao depositário que tivesse a perfídia de negar ou de deter injustamente o depósito, ao mandatário ou ao tutor que houvesse abusado de sua posição de confiança para servir os seus interesses, ou que abandonasse propositadamente o cumprimento de seus deveres, que pudessem salvar a sua responsabilidade restituindo o objeto, segundo a hipótese, ou pagar os danos e prejuízos.
Exigiam ainda que o culpado fôsse punido, primeiramente como satisfação pessoal, e depois como meio de intimidação.
Entre as penas mais em uso estava a infâmia, pena gravíssima, porque acarretava não só a perda dos direitos do cidadão, como também a morte política.
Aplicava-se principalmente quando a lesão revestia o caráter de uma deslealdade especial. Também havia a pena pecuniária, da qual se fazia um uso muito mais freqüente.
Havia-se estabelecido um completo arsenal de tais meios de intimidação para aquele que intentasse um processo ou uma causa injusta.
Estas penas consistiam a princípio em frações do objeto em litígio, 1/10, 1/5, 1/3, 1/2, elevan­do-se logo até muitas vezes abranger o seu valor, e se perdiam, em certos casos, ao infinito, não sendo possível formar um juízo da obstinação do adversário; isto é — o que perdia, devia pagar tudo o que o adversário exigisse, sob juramento, como satisfação suficiente.
Havia em particular duas formas de processo: — “Os interditos proibitórios do pretor e as ações arbitrárias” — que tinham por fim colocar o acusado na necessidade de desistir ou aguardar até a ser reconhecido como culpado de ter violado a lei, com deliberado propósito e, como tal, ser tratado.
Obrigavam-no, quando persistia em sua resistência, ou em seu ataque, a não limitar a sua ação contra a pessoa do acusador, mas também a agir contra a autoridade, daí resultando que não era do direito do demandista que se tratava, mas da própria lei, que, por seus representantes, se achava em questão.
O fim que se propunha, aplicando tais penas, não era outro senão a que se queria alcançar em matéria criminal: — por um lado, o fim pura­mente prático de colocar os interesses da vida privada ao abrigo desses atentados não compreendidos sob o nome de crimes; por outro lado o fim ideal de fazer solidárias a honra e a autoridade da lei, dando satisfação ao sentimento do direito que tinha sido lesado, não só na pessoa que foi direta­mente atacada, como também nas de todos que dele tivessem conhecimento.
O dinheiro não era, pois, o fim que se tinha em vista, mas um meio para atingi-lo. 33
Este modo de encarar a questão, que o direito romano intermediário tinha, é, a nosso ver, mara­vilhoso.
Afastando-se por igual dos dois extremos, do velho direito que colocava a injustiça objetiva no mesmo plano que a subjetiva, e do nosso direito atual que, avançando em direção contrária, rebaixara esta ao nível daquela, satisfazia por completo as legítimas pretenções que pudesse ter o sentimento do direito mais justo, porque não se contentava em separar as duas espécies de injustiças, mas sabia discernir e reproduzir, com minuciosidade e inteligência, a forma, a maneira, a gravidade e todos os diversos aspectos da injustiça subjetiva.
Ao chegar ao terceiro período ou grau do desenvolvimento do direito romano, tal qual foi fixado nos Institutos de Justiniano, não podemos deixar de recordar e admirar a influência e impor­tância do direito de sucessão na vida dos povos, como na dos indivíduos.
Qual seria, realmente, o direito nesta época se ela devesse estabelecê-lo por suas próprias forças?
Do mesmo modo que certos herdeiros, que são incapazes de procurar-se o que lhes é estritamente necessário, vivem à custa das riquezas acumuladas pelo testador, assim também uma geração decrépita e débil encontra no capital intelectual acumulado pela idade vigorosa, que a precedera, com que subsistir por largo lapso de tempo.
Não pretendemos dizer que goza tal geração, sem esforço algum, do trabalho das outras, mas fazemos notar que está na natureza das obras, das instituições do passado, influir durante certo tempo e fazer reinar na vida o espírito que presidira ao seu nascimento; contêm, em uma palavra, certa força latente que o contrato e a familiaridade muda em força ativa.
É neste sentido que o direito privado da República onde se havia refletido este sentimento enérgico e vigoroso que, para o direito, havia possuído o antigo povo de Roma, pode servir ao Império, durante algum tempo, de fonte vivifica­dora; e nesse grande deserto da última época era o único oásis por onde corria, entretanto, um regato de água fresca e cristalina.
Mas o despotismo assemelha-se a essa rajada ardente que não permite a planta alguma desenvolver-se; e o direito privado, não podendo por si só fazer prevalecer e manter um espírito, que por todos era desprezado, também devia ceder, do mesmo modo que todos os demais ramos do direito, ao novo espírito do tempo.
E este espírito da nova época ostenta-se com traços verdadeiramente estranhos!
Não se revelam nele os verdadeiros sinais do despotismo, a severidade e a dureza; pelo contrário, oferece outros caracteres que exprimem a doçura e a humanidade.
Entretanto essa própria doçura é despótica, isto é — o que ela dá a um, tira-o de outro: -é a doçura do arbítrio e do capricho e não a da humanidade, — é a desordem da crueldade.
Não exibiremos aqui as provas sobre as quais poderíamos apoiar esta opinião; 34 é suficiente fazer sobressair um traço muito particular e significativo desse caráter e que encerra um opulento manancial histórico: tal é o esforço feito para me­lhorar a posição do devedor à custa do credor. 35
Podemos avançar esta opinião como geral.
Simpatizar com o devedor é o sinal mais patente pelo qual se pode reconhecer que uma época está abatida; e ela entretanto chama a essa simpatia — humanidade.
Em uma idade de pleno vigor, trata-se, antes de tudo, de que seja feita justiça ao credor.
O direito de hipoteca privilegiada que Justiniano concedeu à esposa, vem igualmente dessa humanidade de seu coração, de que ele não podia prescindir e que o enchia às vezes de um assom­bro indescritível sempre que decretava uma nova disposição; mas essa humanidade era semelhante à de S. Chrispim furtando o couro dos ricos para fazer calçado para os pobres.
Voltemos agora ao nosso direito romano atual.
E, após tudo o que temos dito, somos obrigados a formar um juízo sem poder fundá-lo aqui como desejaríamos, mas ao menos apresentaremos o que pensamos
acerca da questão. Em poucas palavras resumiremos o nosso pensamento dizendo que encontramos, no conjunto da história e em toda a aplicação do direito romano moderno, uma notável preponderância, por mais que as circunstâncias a tenham tornado até certo ponto necessária, de erudição pura sobre o sentimento legal do nacional, e sobre a prática e a legislação que contribuem ordinariamente de um modo exclusivo a formar e a desenvolver o direito.
É semelhante erudição, um direito estrangeiro, escrito na língua estranha, introduzido pelos sábios, que são os únicos que podem perfeitamente compreendê-lo, e exposto sempre à influência contrária dos dois interesses opostos que lutam freqüentemente: o interesse da ciência pura e simplesmente histórica, e o da aplicação prática, junto ao desenvolvimento do direito.
A prática, por outro lado, não tem força suficiente para dominar completamente o espírito do assunto; ela está, portanto, condenada a uma dependência perpétua, a uma eterna tutela da teoria, dai se originando o fato de vencer o particularismo tanto na legislação como na administração da justiça, tornando débeis os ensaios que se faziam para se chegar à centralização.
Deveríamos admirar-nos de que semelhante direito estivesse em profundo desacordo com o sentimento da Nação e que o direito não estivesse mais ao alcance do povo nem o povo ao alcance do direito?
Detestamos as instituições e os princípios que os habitantes de Roma explicavam perfeitamente, porque não têm eles entre nós a mesma razão de ser,
e jamais haverá no mundo um modo de distribuir justiça que tenha mais poder do que este, para diminuir no povo toda a confiança no direito e toda a crença em sua existência.
Com efeito, que deve pensar o homem do povo cujo juízo é simples e reto, se o juiz diante do qual se apresenta com um título, provando que seu adversário reconhece dever-lhe cem talheres, declara que o signatário não está obrigado, porque nisso há uma cautio indiscreta?
Que pode ainda pensar, quando um título no qual se estabelece textualmente que a dívida teve por origem um empréstimo anterior, não possui força probante senão depois de dois anos?
Não terminaríamos, se quiséssemos citar fatos isolados.
Preferimos concretizar, assinalando o que não podemos chamar de outro modo senão desvarios da nossa jurisprudência no direito civil, tão fundamentais que são um verdadeiro manancial de injustiças.
O primeiro consiste em que a nossa moderna jurisprudência jamais admitiu o pensamento tão simples que temos desenvolvido e que se resume dizendo:
— não se trata em uma lesão do direito de um valor material, mas de uma satisfação ao sentimento legal do que foi lesado.
O nosso direito não conhece outra medida que a do materialismo mais baixo e grosseiro, não encara a questão senão no ponto de vista do interesse pecuniário.
Lembramo-nos de ter ouvido falar de um juiz que, para desembaraçar-se das chicanas do juízo sobre coisa de pouca importância, ofereceu-se para pagar do seu bolso ao demandista a importância do litígio e se irritara bastante quando não fora aceita a sua proposta.
Este sábio magistrado não podia compreender como o litigante não tinha em vista uma quantia em dinheiro, mas o seu direito.
Entretanto ele não era, em realidade, muito culpado, porque poderia lançar sobre a ciência a censura que se lhe houvesse dirigido.
A condenação pecuniária, que foi para o magistrado romano o meio mais poderoso de administrar justiça ao sentimento ideal que havia sido lesado, 36 sob a influência da nossa teoria das provas, tornou-se um dos expedientes e recursos mais tristes de que a autoridade tem podido servir-se para tentar e prevenir a injustiça.
Exige-se que o acusador prove até ao último cêntimo o interesse pecuniário que o processo tem para si.
Julguem, pois, no que se converte a prática do direito quando um interesse desta natureza não está em jogo.
Um locador recusa a um locatário a entrada de um jardim que este reservou por contrato para seu gozo; perguntamos agora: — como conseguirá dizer o primeiro o valor em dinheiro de algumas haras passadas pelo segundo tomando fresco dentro desse jardim?
Um proprietário arrenda a uma autra pessoa um alojamento que já havia alugado, mas que não havia sido ainda ocupado, e o primeiro arrendatário deve-se contentar durante seis meses com um aposento miserável, antes de achar outro conveniente; que se avalie esse dano em dinheiro, ou melhor, que se atenda à indenização que o tribunal concede.
Em França seriam exigidos mil francos; na Alemanha, absolutamente nada, porque o juiz alemão responderá que os incômodos, por mais graves que sejam, não podem ser apreciados em monetário.
Suponhamos ainda um professor que está em­pregado em um colégio particular, porém que encontra mais tarde melhor colocação, quebra o contrato, sem que se lhe possa achar de momento um sucessor; — como se podera avaliar em dinheiro o dano causado aos discípulos, por haverem sido privados durante algumas semanas, ou mesmo meses, das lições de francês ou de desenho?
E ainda mais: — como se compensaria a perda material que o diretor do estabelecimento sofrera?
Suponhamos enfim um cozinheiro que deixa sem razão o seu serviço e que pela impossibilidade de o substituir põe seus patrões em grandes dificuldades; como avaliar este prejuízo em dinheiro?
O nosso direito não concede em todos estes casos proteção alguma, porque o que ele dá tem tanto valor como uma noz para quem já não tem dentes.
Este é, pois, o reinado da ilegalidade; e, o que há em todo ele de mais penoso é vexatório não é a imperfeição em que se encontra, mas o sentimento amargo de que o bom direito pode ser calcado aos pés sem que haja meios de remediá-lo.
Não se deve acusar desta falta de coação o direito romano, porque, por mais que tenha reconhecido, como constante princípio, que o juízo definitivo contivesse somente uma pena pecuniária, tem sabido aplicá-la de modo que satisfaça muito especialmente não só os interesses materiais, como também todos os mais interesses legítimos.
A condenação a pagar uma importância em dinheiro era o meio coercitivo que o juiz empregava nos negócios civis para assegurar a execução de suas prescrições.
O réu que recusava fazer o que o juiz lhe impunha, não se libertava satisfazendo o valor pecuniário da obrigação a que estava sujeito, mas essa obrigação convertia-se para ele em uma pena, e é precisamente este resultado do processo o que assegurava àquele que tinha sido lesado uma satisfação, a qual ele estimava muito mais que a soma em dinheiro.
O nosso direito jamais concede esta satisfação e não a compreende, porque não vê além do interesse material.
Na prática também existem as penas que em Roma se aplicavam em matéria de direito privado, originando-se isto da insensibilidade da nossa legislação atual pelo interesse ideal que é atingido em uma lesão do direito.
Hoje a infâmia já não está ligada à infidelidade do mandatário ou do depositário. O maior tratante vive em nossos dias completamente livre e impune,
com tanto que seja bastante sagaz para evitar tudo o que poderia fazê-lo cair sobre a sanção do código criminal.
Verdade é que, em compensação, encontra-se ainda nos nossos livros de direito que a mentira frívola pode ser castigada, mas isto na prática é raramente aplicado.
O que é isto, em uma palavra, senão que a injustiça subjetiva está colocada entre nós no mesmo nível da injustiça objetiva?
O nosso direito não estabelece diferença alguma entre o devedor que nega de má fé uma dívida e o herdeiro que de boa fé a nega, entre o mandatário que nos enganou e o que faltou não voluntariamente, enfim, entre a lesão premeditada do meu direito e a ignorância ou incapacidade. O processo move-se sempre na esfera do interesse material.
Os nossos legistas atuais acham-se tão longe de crer que a balança de Themis deve, no direito privado como no direito penal, pesar a injustiça e não somente o interesse pecuniário, que fazendo esta advertência devemos contar com a objeção daqueles que afirmam que está aí precisamente a diferença que existe entre o direito penal e o direito privado.
Desgraçadamente será isto uma verdade para o direito atual. Mas será também uma verdade para o direito em si? — é o que negamos.
Antes de tudo, seria preciso provar que há uma parte do direito na qual a idéia da justiça não deve realisar-se em toda a sua extensão; ora, quem diz justiça, diz realização da idéia de culpabilidade.
O segundo desses erros, verdadeiramente funestos em nossa moderna jurisprudência, consiste na teoria da prova que ela tem estabelecido.
Estamos inclinados a crer que não foi descoberta senão para aniquilar o direito. Se todos os devedores do mundo se tivessem conjurado para eliminar e frustrar o direito dos credores, não haveriam deparado melhor meio que esse sistema de provas; debalde se procuraria uma matemática que oferecesse outra mais exata.
É especialmente nas demandas de perdas e danos que se chega ao supremo grau do incompreensível.
Recentemente tem-se pintado em alguns escritos e de um modo tão surpreendente a desordem odiosa, que para empregar a expressão de um legista romano diremos, 37 — “reina aqui no direito, sob o nome de direito,” — e o contraste que oferece o modo inteligente de obrar dos tribunais franceses, que não temos necessidade de acrescentar uma palavra; entretanto, não podemos deixar de exclamar: — desgraça para a acusador e coragem no acusado!
Resumindo, pode afirmar-se que esta exclamação é a palavra de ordem da nossa jurisprudência teórica e prática.
Tem-se avançado muito neste caminho que iniciara Justiniano.
Não é o credor, mas o devedor quem excita a sua simpatia e prefere sacrificar o direito de cem credores a expor-se a tratar com demasiada severidade um devedor.
Quem não for versado no direito, apenas poderá crer que tenha sido possível todavia aumentar esta parcial ilegalidade que nos oferece a falsa teoria dos legistas, que se ocupam do direito civil e do processo.
Entretanto os criminalistas anteriores são os que se têm extraviado até o ponto de cometer o que se pode chamar um atentado contra a idéia do direito, e a culpa mais grosseira de que a ciência se tem tornado capaz contra o sentimento legal.
Queremos falar desta vergonhosa paralisação do direito de defesa legítima, desse direito primordial do homem que é, como disse Cícero, uma lei que a própria natureza lhe impôs e que os legisladores romanos julgavam não poder ser desconhecida por legislação alguma (Vim vi repellere omnes leges omniaque jura permittunt).
Como poderiam nos últimos séculos e em nossos dias os jurisconsultos persuadir-se do contrário!
Verdade é que os novos sábios reconhecem esse direito em princípio, mas cheios dessa simpatia pelo criminoso que os legistas do direito civil e do processo tinham pelo devedor, procuram limitá-lo e enfraquecê-lo na prática e de tal arte que o criminoso é, na maior parte dos casos, protegido com detrimento do atacado que fica sem defesa.
Em que abismo profundo não vai perder-se o sentimento da personalidade, quando se desce na literatura a esta doutrina! Que esquecimento da dignidade humana!
Que desprezo, que perturbação do sentimento simples e justo do direito!
O homem que é ameaçado em sua pessoa ou em sua honra, deve, pois, retirar-se e fugir; 38 o direito deve dar lugar a injustiça; esses sábios só estão em desacordo quanto à questão de saber -se os militares, os nobres e outras pessoas de alta condição devem também retirar-se e fugir.
Um pobre soldado que para obedecer a esta ordem se havia retirado duas vezes, mas que, perseguido pelo seu adversário, havia feito resistência e o havia morto, — “era, para dar-lhe uma lição eficaz e para oferecer aos outros um salutar exemplo” — simplesmente condenado à morte.
Concede-se, entretanto, às pessoas de uma posição elevada ou de alto nascimento, o direito que se dava aos militares de empregar para sua defesa uma resistência legítima; mas, acrescenta um destes autores, não deveriam chegar até o ponto de matar o seu adversário, se apenas se tratasse de uma injúria verbal.
A outras pessoas, como aos funcionários do Estado e da justiça civil, contenta-se apenas em dizer-lhes : — “que não são, apesar de tudo, e a despeito das suas pretensões, mais que os homens da lei, não tendo outro direito que as leis comuns do país.”
Ainda consideram pior os comerciantes.
“Os comerciantes, dizem, os mais ricos, não fazem exceção à regra, a sua honra consiste no seu crédito; podem, pois, perfeitamente, sem perder a sua honra ou a sua reputação, sofrer que se lhes dirija algumas injúrias, e, se pertencem à última classe, que se lhes aplique uma bofetada…”
Se o transgressor da lei for um camponês ou um judeu, deve-se-lhes impor a pena que existe contra os que recorrem à defesa pessoal, contanto que os outros devam ser castigados do modo “mais ligeiro que possível fôr.”
O modo que se considera adequado para excluir o direito de defesa, quando se trata de uma questão de propriedade, é ainda mais edificante.
A perda da propriedade, dizem uns, é exatamente como a da honra, — uma perda reparável, ora pela reivindicação, ora pela ação — injuriarum.
Mas, se o ladrão fugiu e é tão conhecido como o seu domicílio? — Que importa, respon­dem os sábios, se há sempre a reivindicação e é somente devido a circunstâncias “fortuitas e inteiramente independentes da natureza do direito de propriedade que a acusação não chega sempre até o fim que se propõe.”
O homem que deve entregar sem resistência toda a sua fortuna, que leva em papel, pode, pois, consolar-se; tem sempre a propriedade e o direito de reivindicação; o ladrão não goza senão da posse real!
Outros permitem, quando se trata de uma soma considerável, empregar a força, mas somente como coisa extrema e não dizem que o atacado deve também neste caso, apesar de sua dor vivíssima, calcular escrupulosamente a força que deve empregar para repelir a agressão.
Se inutilmente chegasse a quebrar o crânio ao seu adversário, enquanto, se houvesse estudado a dureza do osso, teria aplicado ao ladrão um golpe menos violento, mas suficiente para atemorisá-lo, seria responsável por isso.
Se um homem, ao contrário, não está exposto a perder senão objetos de pequeno valor, um relógio de ouro, por exemplo, ou uma bolsa que só contém alguns tálers, deve de todo abster-se de fazer o menor dano ao que o ataca.
Com efeito, o que é um relógio em comparação ao corpo, à vida e os membros sagrados de um homem?
Um é um bem que se pode facilmente substituir; do outro é inteiramente irreparável a sua perda.
Verdade essa que ninguém negará, entretanto esquecem-se de que o relógio é meu e que os membros pertencem ao ladrão. Estes bens têm, sem dúvida, para ele um valor inestimável, mas para mim absolutamente nenhum, restando-me sempre o direito de pedir que me restituam o meu relógio.
Eis aqui vários desvarios e extravagâncias da ciência!
Que profunda humilhação não devemos sentir vendo que esse sentimento simples, tão conforme e justo com o verdadeiro sentimento do direito, que vê em todo ataque (não fôsse o seu objeto mais que um relógio) um atentado a todo o direito da personalidade e a própria personalidade, tenha desaparecido de tal modo da ciência que pôde consentir o sacrifício do direito, levantando a injustiça à altura de um dever!
Admirar-nos-á que a covardia e o sofrimento da injustiça fôssem o caráter da nossa história nacional, em uma época em que a ciência ousava emitir semelhantes doutrinas?
Rejubilêmo-nos por viver em uma época bem diferente.
Tais teorias são hoje impossíveis; não podem medrar mais, senão nos charcos em que se arrasta uma Nação que esteja igualmente apodrecida, quer sob o ponto de vista político, quer sob o ponto de vista do direito.
Esta doutrina da covardia, da obrigação de sacrificar o ouro que se nos quer arrancar, é o ponto da ciência mais oposto à teoria que temos defendido e que faz, ao contrário, da ardente luta pelo direito, um estrito dever.
Um filósofo de nossos dias, Herbart, emitiu acerca da base do direito uma opinião que não é tão falsa, mas que se encontra bem longe dessa altura ideal a que se eleva o homem, cujo sentimento do direito é completamente são.
Herbart descobre o fundamento do direito nesta causa estética: — o desprazer da luta.
Temos demonstrado aqui quanto é insustentável esta tese, e felicitâmos-nos por nos podermos referir aos escritos de um dos nossos mais apreciados amigos. 39
Mas, se nos fôsse dado apreciar o direito sobre este ponto de vista, não sabemos na verdade se em vez de fazer consistir o que o direito nos oferece de estético na exclusão da luta o colocaríamos precisamente em sua existência.
Tenhamos a coragem de emitir uma opinião completamente oposta aos princípios desse filósofo, reconhecendo-nos francamente culpado de amar a luta.
Certamente que não admitimos uma luta sem motivo, mas sim esse nobre combate no qual o indivíduo se sacrifica, com todas as suas forças, pela defesa do seu direito ou da Nação.
Aqueles que criticam neste sentido o amor à luta, têm que romper com toda a nossa nobre literatura e toda a história das artes, desde a Ilíada de Homero e as famosas esculturas dos Gregos até os nossos dias.
Não haverá talvez matéria que tenha atraido mais a literatura e as belas artes de que a luta e a guerra; não será preciso investigar agora onde o sentimento estético está mais satisfeito, vendo esse desenvolvimento supremo da humana potência que a escultura e a poesia têm glorificado numa e noutra.
Nem sempre é a estética, mas a moral que nos deve dizer o que seja a natureza do direito; e longe de repelir a luta pelo direito, a moral proclama-a como um dever.
Este elemento de luta e de combate que Herbart quer eliminar da sua idéia, é, pois, uma parte integrante e inseparável da sua natureza.
A luta é o trabalho eterno do direito.
Se é uma verdade dizer: — Comerás o teu pão com o suor da tua fronte, — não o é menos acrescentar também: — É somente lutando que obterás o teu direito.
Desde o momento em que o direito não está disposto a lutar sacrifica-se, e assim podemos aplicar-lhe a sentença do poeta:
É a última palavra da sabedoria
Que só merece a liberdade e vida
Aquele que cada dia sabe ganhá-las.

FIM

NOTAS

[1] São notáveis, neste assunto, as observações que o nosso autor aponta em seu Espírito do Direito Romano, t. III, § 42 e t. IV, § 69. Ali se explica a deficiência com que aqueles que, sendo filósofos e não jurisconsultos, tratam dos problemas jurídicos, a razão de suas abstrações nos princípios e pobreza de seus detalhes quando chegam à parte especial das diferentes instituições jurídicas.
O próprio Kant, sem exceção, abraça com ardente fé, neste ponto, as pegadas do Direito romano, e todo o seu trabalho, acrescenta Ihering, se reduz a invocar as razões filosóficas para explicar em princípio as institui­ções do Direito, relações e classificações que assim foram tidas por motivos históricos.
Em relação ao vicioso estudo da filosofia do direito, partindo de princípios metafísicos já conhecidos, fora da filosofia do próprio direito, eram luminosas as explicações do ilustre Giner de los Rios na sua cadeira da Central.
Atualmente o governo espanhol sancionou o tradicional erro que tornou impossível uma filosofia do direito digna de um jurisconsulto, decretando que para cursar esse programa necessita-se ter sido aprovado nos cursos de Metafísica na faculdade de Filosofia e Letras.

[2] Todos o são. A finalidade jurídica nega-se para os demais, segundo a natureza.
O próprio Ihering restringe o direito ao que existe entre os homens, mas como este assunto, pela sua impor­tância, é indiferente na questão presente, deixo de defendê-lo agora.

[3] O Direito antigo, cap. III.

[4] No referido livro de Sumner Maine se demonstra que, por meio do que se chama — “ficção do direito” — também a jurisprudência inglesa se vê obrigada a uma atividade jurídica que debalde pretende ocultar suas positivas reformas. Vide cap. II.

[5] Não se tem atualmente por exata a característica que se dava para distinguir os sabinianos dos proculeianos. Em ambos os lados houve espíritos reformistas, sendo o direito pretório em rigor obra dos jurisconsultos.
Sobre o assunto, vide Mayas, Curso de Direito Romano, 4a ed., t. I. — Introdução histórica.
Estranhará aquele que se deixar levar por lugares comuns, aceitos sem reflexão, que se atribua ao jurisconsulto romano o caráter de reformista. Entretanto toda a história do estrito direito e sua transformação demonstram o que acabo de afirmar.
O romano era sabiamente reformista.

[6] Sumner Maine, ob. cit., cap. I.

[7] Deve-se recordar que no conceito explicado, o direito é aqui o preceito do próprio direito.

[8] Esp. del Dir. Rom., t. II, § 26 e t. xv, § 60.

[9] Diz-se que um rei constitucional pode pouco; o fato de ser incompatível com uma democracia real de­monstra o contrário. A iniciativa que tem na escolha de ministros responsáveis, é um poder muito lato, manejado por hábil mão e vontade poderosa; — a inviolabilidade é a sanção desse poder de iniciativa.

[10] Obr. cit., t. II, § 27.

[11] Pois há muito mais direito político do que aquele que assim é considerado e julgado como tal.

[12] Obra cit., loc. cit. em uma nota.

[13] Sirva um exemplo vulgar, quase cômico, e não obstante de grande ensinamento.
Não só quando o governo se encarrega de nomear alcaides para os povos, mas quando estes os elegem, acontece recair o cargo em pessoas que o devem a uma influência estranha aos interesses jurídicos de que se trata. Os abusos da autoridade logo se ostentam; ninguém se escandaliza e nem se lembra que a eleição não fora realizada com a previsão necessária para evitar estes abusos. E, não obstante, um alcaide pode ser um tirano; medidas draconianas de que não se tem memória nos anais do império as repetem todavia muitos senhores alcaides.

[14] Observemos o que somente sucede com o nosso célebre projeto do Código Civil.
Há uma comissão de muitos poucos senhores advogados, todos residentes em Madri, ou quase todos, para não afirmar o que não sei ao certo, a qual apresentará em algum dia um projeto de legislação geral em matéria de direito civil, conforme um sistema preferido por esses poucos senhores de Madri.
As Cortes discutirão esse projeto, como se discutem os orçamentos, a lei hipotecária, até o Código Penal, e mesmo a Constituição de 1878, isto é — sem discussão; aprovar-se-á o projeto com umas pequenas modificações, oriundas de lutas de interesses, e por fim a Espanha terá seu Código de Napoleão correspondente.
Ninguém se queixará, nem mesmo os advogados mais liberais. Esta é a vocação pelo direito em nossa época.

[15] Vejam-se, entre muitos outros autores, Foustel de Coulange, — La cité antique; Pepere, Storia del diritto; Azcarate: Historia del derecho de propriedad.

[16] Espírito do Dirt. Romano, t. I, § 24

[17] Tradução espanhola da obra de Proudhon sobre o Princípio federativo, notas.

[18] Certo jovem escritor espanhol segue este desastroso caminho de ver antinomias, onde se depara apenas com união; o que é preciso é dar autoridade à liberdade.

[19] Estas outras pessoas do direito são tão reais como o indivíduo e tão necessárias como ele e não está menos realmente com elas do que consigo mesmo.
Sempre se ouve dizer que o estado dessas outras pessoas é o que domina. Mas quantas vezes o indivíduo está tão fora de si que não age, como próprio dono de suas ações sobre as relações jurídicas!
Enquanto o número e os limites materiais dessas pessoas superiores do direito dependem da variável determinação histórica.
O município, com este ou outro nome, se determina com mais constante igualdade, por fáceis razões de com­preensão.

[20] Este predomínio da autonomia nacional supõe, entretanto, que no poder da Nação intervém o legítimo poder do Estado; no caso contrário, existe a absorção, a centralização, mas não é a autonomia nacional.

[21] Entre outros. É o que muitos não compreendem.

[22] Como se vê, no que expus, não pode haver alusão à Espanha; aqui a soberania nacional nem sequer tem voto.

[23] Não se cuida de defender a teoria mais sentimental que outra coisa, da variedade pitoresca, estética dos — direitos naturais; quando esta variedade
for natural produto da história, respeita-se; mas não se tem que procurá-la, contrariando, por vontade de artista, a tendência do direito a ser semelhante em todos os países civilizados.
O que se sustenta é que esse direito, semelhante ou diferente, deva ser obra própria de cada povo e criado ao lado de sua própria história. Roma fez todo direito para si, nasceu todo ele da medula de sua vida e de sua ener­gia e reflexiva vontade e consciência; e, não obstante, o direito romano chegou a ser o direito comum, quase o único, por muito tempo, na Europa.

[24] Encantadoras passagens de profunda verdade Se lêem na obra do ilustre Pi y Margal, Las Nacionalidades, sobre este assunto.
É sobre tudo recomendável toda aquela em que se fala do sentimento e faz ver o amor singular que se professa à pátria real, ao povo, amor que é ideal e material, que não necessita esforços de abstração para sua existência.
Neste livro notável se indicam vários dos fundamentos reais do direito que existem como argumentos em prol do sistema autonômico.

[25] Nestas censuras, leais, francas do oportunismo, não aludo a pessoas determinadas, nem mesmo cuido de molestar a quem por professar sinceramente tais dou­trinas merece maior respeito.

[26] Em a novela de Henrique Kleist, intitulada Miguel Kolhaas e da qual falaremos mais adiante, o autor faz o seu herói dizer: — mais vale ser um cão que um homem e ser calcado aos pés.

[27] Não nos alongaremos aqui acerca da utilidade da primeira parte desta idéia, mas permitimo-nos ao menos fazer algumas ligeiras reflexões.
A indignação que as diversas classes manifestam quando são atacadas em um dos direitos que formam a base da sua existência, reproduz-se também nos Estados quando se atacam as instituições que representam, o princípio especial que as faz viver; o termômetro da sua irritabilidade, e, por conseguinte, a medida do apreço que dão às instituições — é o Código Penal.
O contraste manifesto que existe sobre este ponto entre as diversas legislações explica-se em sua grande parte pela consideração diferente que há entre as condições da existência de cada povo.
Todo o Estado punirá com a máxima severidade os ataques dirigidos ao seu princípio vital, enquanto não aplicará geralmente mais que o mínimo da pena nos outros casos.
Com pena de morte pune um Estado teocrático o blasfemo, o idólatra, ainda que se contente talvez com aplicar a pena de roubo àquele que tiver arrancado os marcos que servem de limite entre as propriedades, en­quanto um Estado agrícola fará o contrário.
A legislação de um país mercantil reservará as maiores penalidades ao moedeiro falso e ao falsário em geral; um país militar à insubordinação e à deserção.
Um governo absoluto punirá o crime de lesa-majestade; um republicano toda a tentativa de restabelecer o poder real; e todos os Estados mostrarão assim um rigor que comparado com o usado nos demais casos produzirá um estranho contraste.
Em uma palavra, quando os povos são atacados em uma das condições especiais de sua existência, o sentimento legal revela-se com mais violência.
Sabemos que estas são as considerações que Montesquieu teve o mérito imortal de ser o primeiro a desenvolver em seu Espírito das Leis.

[28] As nossas pequenas cidades da Alemanha, que são a sede de uma Universidade e que os estudantes fazem viver, por assim dizer, oferecem uma interessante prova, o modo como estes gastam e empregam o dinheiro comunica-se à população.

[29] Vide meu Espírito do Direito Romano, III § 60.

[30] Faremos notar, para aqueles dos nossos leitores que não estudaram o Direito, que as ações populares ofereciam a quem queria a ocasião de se fazer representante da lei, e perseguir o culpado que a violasse.
Estas ações não se limitavam aos casos em que se tratasse do interesse público, mas também se podiam usar todas as vezes que um indivíduo, contra o qual se havia cometido uma injustiça, não fosse capaz de defender-se por si só; assim, por exemplo, no caso em que se houvesse lesado um menor em uma venda ou em que um tutor fosse infiel a seu pupilo, e outros que se podem ver em o meu Espírito do Direito Romano, tomo 2º, 2a. ed., pag. III
Estas ações, como se vê, são um vestígio desse sentimento ideal, que defende o direito pelo próprio direito, sem encarar o interesse pessoal.
Algumas vezes apresenta-se como móvel ordinário a avareza, fazendo esperar o acusador a multa que se impunha ao acusado, sendo isto o que dava vida a essa ocupação mercantil dos denunciadores, que aguardam a recompensa pela denúncia que fazem; mas se afirmarmos que as acusações dessa segunda categoria desapareceram, em boa hora, no Direito romano, e que a primeira quase não existe no Direito atual na maior parte dos povos, o leitor saberá tirar a conclusão disto.

[31] O interesse. perfeitamente trágico que nos oferece Shylock está para nós em que se lhe não faz justiça, e esta é sem dúvida a conclusão que mais sobressai para o legista.
Pode o poeta evidentemente fazer uma jurisprudência a seu gosto, e não temos que lamentar que Shakespeare tenha falado de tal modo ou antes — que ele nada haja mudado na velha fábula.
O legista que estuda a questão estará obrigado a dizer que o título era sem valor, porque continha alguma cláusula imoral e que o juiz, apoiado nesta única razão, teria podido negar o pedido pelo querelante.
Se não o fazia, se o — “sábio Daniel” a deixava valer mesmo, era empregar um subterfúgio, uma miserável astúcia, um embuste indigno, autorizar um homem a cortar uma libra de carne, proibindo-se-lhe terminantemente de fazer correr o sangue necessário em tal operação.
Um juiz poderia conceder também ao proprietário de uma servidão o direito de passagem, proibindo-lhe deixar vestígios, porque não fora isto estipulado na concessão.
Acreditar-se-ia talvez que a história de Shylock se passou nos tempos primitivos de Roma, quando os autores das Doze Tábuas julgaram necessário fazer especial menção de que o credor a quem se entregava o corpo do devedor (in partes secare), podia dividi-lo em pedaços do tamanho que bem lhe aprouvesse (Si plus minusve secuerint sine fraude esto!)
[A passagem mencionada por Ihering é de “O Mercador de Veneza” — edição em português da Ridendo Castigat Mores disponível na eBooksBrasil.com — NE]

[32] Assim me exprimia em minha obra intitulada -“Ueber das Schuldmoment im römischen Privatrecht” — (Sobre o momento da culpa no direito privado dos Roma­nos) Giessen, em 1867, pag. 61
Formei a opinião que hoje emito, depois de longos estudos sobre o assunto.

[33] Encontra-se nas actiones vindictam spirantes uma prova muito particular do que acabamos de dizer; elas fazem sobressair esse ponto de vista ideal e mostram do modo mais frisante que não tem por objeto alcançar uma soma de dinheiro ou a restituição de uma coisa, mas a reparação de um atentado feito ao sentimento do direito e da personalidade — (magis vindictae quam pecunia habet rationem).
É por isso que não passavam aos herdeiros e nem podia ser cedido o seu uso a terceiras pessoas.
Os credores não podiam intentá-las em caso de cessão de bens; extinguiam-se, passado certo lapso de tempo relativamente curto, e não tinham lugar se o lesado não demonstrasse o seu ressentimento — “ad aninum suum non revoca­verit— DE INJURIIS, 47, 10.

[34] Nesta época os caracteres estavam tão debilitados que não podiam suportar a justa severidade do antigo direito.
Assim, por exemplo, suprimiram-se essas penas tão rigorosas que no antigo processo haviam sido aplicadas.

[35] É fácil achar numerosas provas nas disposições de Justiniano.
Por um lado, concede aos fiadores o benefício de discussão, por outro, aos co-devedores o de divisão.
Fixa para a venda do penhor o irrisório prazo de dois anos; depois que a propriedade foi adjudicada, concede todavia ao devedor dois anos, como prazo para remi-la; e, passado esse tempo, reconhece-lhe melhor direito que ao credor que vendera o objeto penhorado.
Ainda pode acrescentar-se: a extensão do direito de compensação àqueles que não eram cidadãos; a datio in solutum, a desmedida extensão da defesa usurae supra alterum tantum; a limitação do prêmio de seguro no foenus nauticum restringindo-o a 12 por cento; a posição excepcional e suficiente que dão ao herdeiro, deixando-lhe o benefício de inventário, etc., etc.
Justiniano tornou possível a obtenção dum lapso de tempo para pagamento quando nisso concordassem a maior parte dos credores, não passando de uma imitação das moratórias de Constantino.
A seus predecessores deve-se também a ação non numeratae pecuniae, a cautio indiscreta e a Lei Anastasiana, bem como a glória de ter sido o primeiro em reconhecer, desde o trono, a fealdade do castigo corporal, e de o haver abolido em nome da humanidade pertence a Napoleão III. Este soberano não se vexava mais por ter feito funcionar a guilhotina em Caiena do que se incomodavam os últimos imperadores romanos em fazer de inocentes crianças criminosos de lesa-majestade, uma espécie que eles mesmos caracterizavam, dizendo — Ut his perpetua ejestate sordentibus sit et mors solatium et vita supplicium, — (L. 5, Cod. ad. leg. Jul. maj. q. 8), mas a humanidade para com o devedor não sobressaía mais por esse modo; — que importa o mais! Realmente, não há melhor modo de se acomodar com a humanidade que enriquecer-se à custa alheia!

[36] Podem apresentar-se como provas desta opinião que se afasta da doutrina geralmente admitida: L. 7, de ansa (33.I); L. 9 § 3o; L. II § I, de servo corr. (II.3); L. 16 §I, quod vi (43, 24); L. 6 § I; L. 7, de serv. exp. (18, 7); L. I § 2, de tut. rat. (27, 3); L. 54 pre, Mand. (17, I); L. 71, i. f.
de evict. (21, 2); L. 44 de man. (40, 4). É a aplicação das penas pecuniárias com que tanto se distinguem os tribunais franceses atualmente.

[37] Paulo, na L. 91, § 3o de v. o. (41.1)… in quo genere plerumque sub autoritate juris scientiae perniciose erratur; mas o jurisconsulto neste caso considera outro erro diferente.

[38] Toda esta doutrina se encontra exposta na obra de K. Levita — Das Recht der Nothwehr, — Giersen, 1866, p. 158, etc.

[39] Jules Glaser — Gesammte Kleinere Schriften über Strafrecht, Civil und Straf -process — Viena, 1868.
Glaser é atualmente ministro de Justiça na Áustria.

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