Um dos autores representativos dentro dos Estudos Culturais Críticos, Hall (1997), argumenta que presenciamos hoje a uma “centralidade da cultura”. O modo privilegiado como concebemos a cultura está hoje diretamente ligado ao fenômeno denominado de virada cultural. Este fenômeno, por sua vez, segue na esteira de um movimento mais amplo dentro da filosofia: a virada linguística (Rorty, 1967), por meio do qual o estatuto da linguagem é inteiramente revisto (no caso da filosofia, a crítica conduzida pelos autores da virada lingüística referia-se às formas como o empirismo lógico e o idealismo concebiam as relações da linguagem com o mundo).
No que diz respeito à cultura, e graças às influências dos teóricos de Estudos Culturais Críticos ingleses e norte-americanos, o principal impacto desse movimento foi discutir a linguagem ligada “às práticas de representação, sendo dada à linguagem uma posição privilegiada na construção e circulação do significado”. Assim, “toda prática social tem condições culturais ou discursivas de existência” (Rorty, 1967: 27-34), ou seja, a cultura é composta de práticas discursivas. Como conseqüência, ela é descrita como “a soma de diferentes sistemas de classificação e diferentes formações discursivas aos quais a língua recorre a fim de dar significado às coisas (p. 29).
A virada cultural, no âmbito específico dos Estudos Culturais, pressupõe portanto que “todos os processos, sejam estes econômicos, políticos etc., dependem do significado e refletem na forma de viver e agir das pessoas e, conseqüentemente, na construção das suas identidades, sendo também assimilados como processos culturais e discursivos” (Cruz, 2006, pp. 70-71 – grifos do autor). Nesta linha em específico, outro autor importante a mencionar, além de Stuart Hall, é Douglas Kellner (2001; 2002), focado nos estudos de mídia. Sua proposta é investigar a produção da cultura, sua distribuição, seja por meio de meio técnico ou canal, a análise do texto e a recepção deste pelo público, dentro de um determinado lugar de enunciação, e sob influência de aspectos críticos e políticos. A proposta de Kellner contempla os vários momentos de construção de cultura em uma “sociedade do espetáculo” (apud Debord, 1967), fazendo convergir cultura e comunicação. Conforme destaca Kellner (2001, p. 53): “não há comunicação sem cultura e não há cultura sem comunicação”.
Já no âmbito da Economia Política da Cultura e da Comunicação (EPCC), a cultura constitui um campo de investigação interdisciplinar, circunscrito pela Ciência Econômica e pelas Ciências Sociais e Ciências da Comunicação. Adicionalmente, esse (relativo) novo campo se apresenta reconhecendo os limites de cada uma destas ciências em isolado em sua abordagem da cultura em suas condições específicas na atualidade. Em termos teóricos e metodológicos, recebe a influência do marxismo e do velho institucionalismo (Herscovici, 2003).
A cultura emerge no quadro da EPCC a partir da compreensão do modo como se articulam as representações simbólicas, a natureza e as diferentes modalidades de apropriação da informação no funcionamento dos mercados. Busca-se ainda realçar o papel macroeconômico e social que esses mercados estão cumprindo na lógica global da acumulação capitalista. Nessa linha, Herscovici destaca que a EPCC, de cunho crítico, pode servir como contra-ponto importante aos discursos pós-modernos sobre cultura-mercado, como, por exemplo, o de “sociedade em rede”, ou “sociedade da informação”. Para aquele autor, termos como “nova economia” não são capazes de realizar a ampliação dos espaços democráticos nem de instaurar mercados efetivamente concorrenciais, tal como se alardeia na pós-modernidade de verve neo-liberal.
Na medida em que a área de Estudos Culturais atribui importância grande à realidade histórico-social local, todo e qualquer estudo da cultura deve levar em conta o contexto e o local. Nesse sentido, cumpre uma rápida observação sobre esta área no contexto latino-americano, em geral, e no brasileiro, em particular. Este cenário, conforme lembra Cruz (2006), é diferente do ambiente em que tais Estudos foram concebidos – na Inglaterra, principalmente. Somos diferentes política, social, cultural e etnicamente. Conforme diz Escosteguy (2001), na América Latina os Estudos Culturais não têm a mesma valorização que em países como Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo.
Autores “locais” notáveis são Jesús Martin-Barbero (Martin-Barbero, 2003) e García Canclini (Canclini, 1996), no campo dos estudos da recepção – especificamente, dos processos de mediação, “que significam as mais variadas formas culturais através das quais os públicos produtores e receptores apropriam-se das mensagens e constituem sentido” (Cruz, 2006, p. 79). De fato, existe uma profícua literatura em português sobre a industrialização da cultura (e.g. Bolano, 2000; Duarte, 2003; Lopes et al, 2002; Marcondes Filho, 1991; Mascarello, 2004; Ortiz, 1996; Puterman, 1994; Ribeiro, 2000; Silva, 2000; e Souza, 1995).
Especificamente em relação às IC, uma rápida investigação da produção local mostra que a bibliografia, ao menos estritamente no campo acadêmico, ainda é inexistente. Por essa razão, há limites consideráveis na transposição pura e simples desse conceito à realidade local. Em primeiro local, pois as políticas públicas de cultura, o desenvolvimento econômico do setor e a relação de “apropriação/consumo” de cultura de outros países, sobretudo agora, com a facilidade mundial de acesso e circulação de bens simbólicos, é bem distinta do contexto onde foram desenvolvidas. Em segundo lugar, porque as características do mercado local (características macroeconômicas) impõem barreiras importantes ao “consumo da cultura”, como renda, nível de escolaridade e acesso. Em terceiro, a mídia televisiva domina mais de 80% (IBGE, 2003) do mercado brasileiro, com clara tendência à concentração e determinação das regras aos pequenos produtores independentes ou às outras formas de produção cultural. Em quarto lugar, como as IC se apresentam, prioritariamente, em formato de Pequenas e Médias Empresas, é conhecida a longa série de dificuldades institucionais que estas enfrentam no país, a despeito do setor econômico considerado (criativo ou não). E em quinto lugar, à luz de intuições presentes na área de Economia Política da Cultura, é preciso atenção para aspectos como assimetria de informações (contra o discurso da transparência e diversidade cultural presente na raiz do conceito de IC), discurso neo-liberal com vistas à legitimação de cortes de investimento em cultura (privatização, via “criatividade empreendedora”, da cultura), questões de “determinismo tecnológico” e falácias quanto à emergência de um novo regime de regulação econômica (pós-moderno). Daí a necessidade de relativizar e pôr em perspectiva as potencialidades locais desse novo setor econômico.
Por fim, merece destaque que, mesmo na literatura estrangeira há sinais de críticas ao conceito de IC. Particularmente relevante é o número especial da Capital & Class (2004) dedicado a um inventário crítico da “economia criativa” em geral e das IC em particular. Chama a atenção a advertência de Shorthose (2004) de que a cultura, no âmbito das IC, vem sendo eminentemente retratada a partir de uma lógica econômico-comercial, portanto unidimensional e reveladora das novas tramas em que estão engendrados os consumidores, as atividades industrias e as artes criativas no capitalismo contemporâneo. O autor em questão, juntamente com outros que compõem o dossiê, procura explicitar a agenda neoliberal oculta às IC, chamando a atenção para a mudança concomitante – e legitimação – das políticas públicas de fomento à cultura na Inglaterra (onde, como dissemos, o conceito emergiu pela primeira vez).
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