Em 1992, por ocasião dos 500 anos de viagem de Colombo, ouve intenço e extenso debate nas Américas e na Europa sobre o vocabulário adequado para descrever a chegada dos europeus ao continente. Uma crítica devastadora foi feita então ao uso da palavra ” Descobrimento “, ou “Descoberta”, por representar um insuportável etnocentrismo europeu. De fato, só foi descobrimento para os europeus. Aqui viviam, em 1492, cerca de 50 milhões de habitantes, não muito menos que a população da Europa. A Cidade do México, capital do império asteca, tinha 200 mil habitantes, talvez mais do que qualquer cidade européia. Paris tinha na época cerca de 150 mil.
Falar em “Descobrimento”, argumentou-se, implicava dizer que essas gentes e civilizações só tinham passado a ter existência real após a chegada dos europeus. Implicava ainda dar um tom falsamente neutro a um processo que foi violento e genocida. Os 5 milhões de nativos da Hispaníola, aonde chegou Colombo, desapareceram em um século. Os 25 milhões do planalto mexicano foram reduzidos a 2 milhões no mesmo período. Nos Andes, 10 milhões tinham virado 1,5 milhões ao final do século 16. Um inegável genocídio, ja denunciado na época por Las Casas em seu famoso libelo “A Destruição das Índias Ocidentais”.
Sete anos depois, o Brasil entra na febre dos seus 500 anos. No entanto, nas celebrações oficiais e oficiosas, nas reportagens da mídia, nas exposições, nos seminários acadêmicos, a terminologia empregada para descrever a chegada dos portugueses a uma das nossas praias. Com uma ou outra exeção, em geral vinda de algum chato inconveniente, celebra-se, o descobrimento do Brasil. Os (poucos) que leram a carta de Caminha exibem erudição usando o equivalente arcaico “achamento”. A quase unanimidade vocabular deixa perplexos observadores de outros países. Perguntam-se se os brasileiros não tomaram conhecimento do debate de 1992.
Se tomamos, ou não lhe demos importância, ou achamos que ele não nos dizia respeito, ou as duas coisas – a primeira por causa da segunda. Segundo a última hipótese, para os brasileiros os problemas relacionados à palavra descobrimento só exestira no caso da América espanhola. A acusação do eurocentrismo é descartada, talvez por desprezo pelo menor número e menor complexidade social de nossos nativos.
O genocídio que a palavra encobre seria também fenômeno exclusivamente, fruto da truculência dos conquistadores. Em nosso caso, as relações dos portugueses com os nativos teria sido amigáveis. Nada melhor para exprimir esta visão do que a consagração da carta de Caminha como certidão de nascimento do país. A carta só foi publicada em 1817, mas tem a grande vantagem de apresentar imagem quase idílica do encontro entre portugueses e nativos. Ela permite generalizar essa imagem para toda história das relações entre os dois povos.
Imenso encobrimento. A população nativa da parte portuguesa era sem dúvida muito menor do que a da parte espanhola. Mesmo assim, ela foi calculada entre 3 e 5 milhões à época da chegada de Cabral ( digamos 4 milhões ). Isso equivalia a quatro vezes a população de Portugal. O bandeirante Raposo Tavares diz ter visto em 1653, ao longo das margens do rio Madeira, aldeia de 150 mil almas maior que o Rio de Janeiro em 1822.