O que se propőe aqui, é realizar uma abordagem da realidade com um enfoque sociológico acerca do contexto social brasileiro, traçando um paralelo com o exposto pelo filme Cidade de Deus, apresentando análises das políticas públicas até os movimentos sociais com o fim de se alcançar os objetivos propostos.
Antes de tecer qualquer comentário crítico, faz-se importante ter uma breve noçăo sobre a estória do filme. Ele trata da Cidade de Deus que é uma favela que surgiu nos anos 60, e se tornou um dos lugares mais perigosos do Rio de Janeiro, no começo dos anos 80. Entăo o filme irá narrar a vida de diversos personagens, todos vistos sob o ponto de vista do narrador, Buscapé. Este, um menino pobre, negro, muito sensível e bastante amedrontado com a idéia de se tornar um bandido; mas também, inteligente suficientemente para se resignar com trabalhos quase escravos. Buscapé cresceu num ambiente bastante violento. Apesar de sentir que todas as chances estavam contra ele, descobre que pode ver a vida com outros olhos: os de um artista. Acidentalmente, torna-se fotógrafo profissional, o que foi sua libertaçăo. Buscapé năo é o verdadeiro protagonista do filme: năo é o único que faz a estória acontecer; năo é o único que determina os fatos principais. No entanto, năo somente sua vida está ligada com os acontecimentos da estória, mas também, é através da sua perspectiva que entendemos a humanidade existente, em um mundo aparentemente condenado por uma violęncia infinita.
De posse desta breve noçăo do filme, ficará mais fácil identificar a relaçăo entre os temas apresentados no seminário e os aspectos sociológicos presentes no roteiro do filme.O primeiro e mais visível no filme é a questăo da violęncia. A sua suprema violęncia se traduz na frieza dos assassinatos. Na verdade, Cidade de Deus mostra a guerra entre grupos rivais do tráfico de droga e uma conseqüente banalizaçăo da violęncia. Aliás, essa capacidade do filme de mostrar a violęncia é exemplarmente evidenciada numa cena paradigmática: há alguns problemas de roubos menores entre os lojistas; Zé Pequeno transformado em juiz da zona é alertado para o fato de serem miúdos que fazem isso. Ao proclamar a sentença Zé Pequeno resolve matá-los. Mas, quando ficam apenas dois, ele dá a arma a um dos seus irmăos mais novos para matar o que escolheu.
Cidade de Deus é um filme que trata também sobre a busca do poder e a forma como ele, sem qualquer forma democrática ou social de configuraçăo, é capaz de subverter a própria vida, que năo tem qualquer significado especial no contexto da favela. De certa forma, toda a violęncia produzida no desenrolar do filme năo săo mais que extensőes da procura do poder. E nesta perda da importância da vida, isto é, perda da importância da pessoa, podemos identificar o fetiche (as coisas sendo mais valorizadas que o próprio ser humano).
Outros aspectos que podem ser observados săo as conseqüęncias que o capitalismo juntamente com o processo de globalizaçăo causaram: ambos, possuindo características excludentes e concentradoras, se constituíram em alguns dos principais fatores responsáveis pela marginalizaçăo em que comunidades desse tipo se encontravam e se encontram até hoje. O Estado, ou melhor, os governantes nunca deram a atençăo devida a essas comunidades que acabaram se desenvolvendo na periferia do mundo civilizado, vivendo uma “realidade paralela”. Daí se tira aquela questăo que muitos gostam de mencionar: o “poder paralelo” do tráfico de drogas no Rio de Janeiro que teima em desafiar o poder do Estado. E que até faz alianças com um dos aparelhos do próprio Estado. Aparece aí a figura da polícia e da corrupçăo que a assola.
De um lado, os moradores da favela que enfrentam preconceito e violaçăo de direitos fundamentais (cidadania) tanto pelo Estado como pela sociedade. De outro, há quem lhes assegure sobrevida em troca de subordinaçăo ou participaçăo criminosa. Parece que a questăo năo é apenas ligada ŕ pobreza ou ŕ criminalidade. É conexa ŕ ausęncia de suporte estatal para a satisfaçăo de direitos fundamentais. Circunda o problema a ausęncia de perspectivas da juventude em geral e insatisfaçăo quanto ŕs alternativas de vida (“se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”).
O filme levanta também o aspecto da estratificaçăo social. No ponto de vista macro, temos basicamente os moradores da favela, a classe media e a classe alta. Já no ponto de vista micro, podemos dizer que de certo modo existia uma cadeia de hierarquizaçăo dentro da própria Cidade de Deus. Com o desenvolvimento do tráfico, nasceu a necessidade de organizaçăo, entăo o mesmo se hierarquizou: tinha o fornecedor que só entregava a droga, o aviăozinho que era o garoto de recados e favores pelos quais recebia dinheiro na maioria crianças, os olheiros que avisavam quando a policia entrava na favela, o vapor era o cara que vendia a droga na esquina e quando a policia aparecia ele tinha que virar “vapor” o mais rápido possível, o soldado que cuidava da proteçăo das bocas, o gerente da boca um braço direito do patrăo e todos aqueles que desejavam um dia serem patrőes. Esse era o plano de carreira no tráfico.
Entrando no mérito das políticas públicas, torna-se bem notável a total ineficięncia das mesmas na Cidade de Deus, seja elas de qual tipo for: saneamento básico, energia, água, segurança, saúde etc; confirmando mais uma vez o grau de omissăo do Estado. Mas o tipo de políticas públicas que mais tem relaçăo com o filme é a política habitacional. O bairro de Cidade de Deus, na zona oeste do Rio de Janeiro, surgiu no final da década de 60. O entăo governador fluminense Carlos Lacerda construiu um conjunto de casas populares para receber os desabrigados de uma das piores enchentes que o Estado já enfrentara. Moradores de outras 60 favelas foram deslocados para lá e, com o passar do tempo, a omissăo do governo, o crescimento desordenado e a violęncia acabaram transformando Cidade de Deus no que é hoje: uma favela de 120 mil habitantes.
A construçăo de Cidade de Deus obedeceu a esta lógica: o lugar escolhido – Jacarepaguá – era bairro rural distante e pouco habitado e, portanto com terras fartas e baratas. A soluçăo habitacional proposta naquela ocasiăo – a reproduçăo em série de casinhas longe da cidade, dos mercados de trabalho, do comércio, dos serviços, da vida urbana, da urbanidade enfim, atravessou quase incólumes décadas e décadas de política habitacional para encontrar, em pleno ano 2000, a reproduçăo do mesmo modelo, quarenta anos depois.
Aqui apontamos para a triste ironia do filme: a Cidade de Deus năo é favela, é conjunto habitacional produzido pelo governo do Estado da entăo Guanabara, idęntico a milhares de outros produzidos por companhias e agęncias governamentais Brasil afora, e que, ao longo dos anos, sofreu processos de adensamento e favelizaçăo.
Como extirpar o que era considerado desde o início do século XX como uma espécie de “chaga urbana”? A dualidade cidade/favela começa aí: em 1900 a favela estava para a cidade assim como o sertăo de Canudos estava para o litoral: bárbaro, ameaçador, agreste e miserável. Mas é só a partir dos anos 40, que a política para a favela entra na prática e no discurso das políticas públicas do país.
Este é um dos maiores desafios a serem enfrentados pelo Ministério das Cidades e a política urbana e habitacional proposta pelo governo federal. A questăo năo se resume apenas ao número de casas a serem produzidas, mas ŕ inclusăo, na agenda do planejamento urbano, do lugar destinado aos mais pobres na cidade. Neste sentido, programas como urbanizaçăo e regularizaçăo fundiária e de reabilitaçăo de áreas centrais que sofreram processo de despovoamento e esvaziamento săo questőes a se pensar.
Com base em tudo o que foi exposto acima, os aspectos sociológicos do filme que foram apontados, as problemáticas de uma realidade năo muito distante de nós, exalta a grande importância do estudo dos movimentos sociais para a formaçăo e exercício da funçăo do profissional voltado para as questőes sociológicas, tendo em vista que o mesmo é uma das figuras que mais próximo está deste contexto social. O fato de ser possuidor de um embasamento sociológico facilita, e muito, a leitura da realidade e o entendimento do porquę que comunidades como a Cidade de Deus se configuram daquela maneira. E essa leitura correta da realidade é imprescindível para o desempenhar da funçăo profissional.