CONTRA A DESUMANIZAÇÃO DA MEDICINA
RESUMO
O artigo apresenta todo sistema terapêutico que pode ser compreendido como uma forma de articulação entre uma intervenção biológica e uma intervenção sociologia. Partindo do pressuposto de que cada tipo de intervenção deve restabelecer uma boa aliança, equilibrada, entre os elementos próprios ao plano biológico, de uma parte, e os elementos psíquicos e simbólicos, de outra.
No paradigma da dádiva, o dom aparece como um operador por excelência da aliança. É ele que transforma os rivais e inimigos em parentes e aliados. O médico é aquele que se situa entre os dois campos opostos para favorecer suas alianças e pacificações.
PALAVRAS-CHAVE: Medicina Desumanização. Humanização. Sociologia.
INTRODUÇÃO
A figura do médico moderno é uma das melhores análises tipológicas, sociológicas do assunto, era estruturada por uma imagem de sábio, daquele tipo que possui uma competência propriamente técnica, sancionada pelos diplomas, mas também uma competência humanista: a capacidade de fazer do seu tempo e de sua pessoa um dom aos pacientes.
O estudo das relações entre medicina e sociedade, não é ainda muito freqüente pelo Brasil, mas a sociologia médica apresenta no seu histórico alguns ilustres colaboradores, como os sociólogos norte-americanos Talcott Parson, Erving Goffman e Howard Becker, dentre vários outros sendo os anos 50 e 60 decisivos para a afirmação desse subcampo da sociologia.
Entre os franceses não podemos deixar de registrar a contribuição de Marcel Mauss que, nos anos vinte, produziu originais reflexões sobre as relações entre técnica e magia, que são bastante sugestivas para a compreensão do simbólico na doença e na cura.
A partir dos anos oitenta do século XX, com a generalização do utilitarismo econômico dentro da medicina oficial, o equilíbrio precário entre utilitarismo e humanismo se rompeu. Buscou a lógica econômica pôr a seu serviço tanto a razão científico-instrumental como a razão burocrático-legal, o que trouxe problemas importantes dos pontos de vista ético e político.
Criou-se uma medicina de órgãos, pela qual as patologias são classificadas a partir de um sistema de cálculos que leva em conta o custo por unidade de cada doente, sistema que é próprio à lógica do mercado.
Por outro lado, a generalização do utilitarismo material dentro do campo médico provocou um redirecionamento da pesquisa tecnológica: as pesquisas sobre endemias passam para segundo plano, sendo os financiamentos direcionados, para aquelas atividades de pesquisa de maior rentabilidade econômica, como as cirurgias de correção estéticas.
No momento em que a tecnização e a parcelização do método anatomoclinico radicalizaram o distanciamento entre curador e doente em favor de procedimentos fundados no cálculo, observou-se um esvaziamento paralelo das bases sociais da medicina dominante.
1 DESUMANIZAÇÃO DA MEDICINA MODERNA
A Medicina teve em sua história processos diversos de desumanização. As origens médicas estão nos magos e shamans das sociedades pré-literatas e, posteriormente com os sacerdotes egípcios, persas e da Mesopotâmia. Suas curas visavam a vida interior, psicológica e a vida exterior, social, visavam curas do corpo e da alma através de magias ou orações e invocações milagrosas.
O grande processo de desumanização deu-se paradoxalmente com o seu progresso científico. Cresceu aos poucos um pensamento reducionista em relação a fatos meramente objetivos.
A ciência desvendou, pouco a pouco, o organismo humano enquanto a religião continuava “dona” das atividades psicológicas e psiquiátricas. O ser humano, aos poucos era reduzido à sua dimensão biológica aos olhos da Medicina. Mesmo Freud, o “libertador” da psique, procurava explicações neurológicas para os fenômenos mentais. (NUNES, 1999, p. 293)
Os grandes responsáveis pela nova tendência menos reducionista e mais holística (mesmo que essa palavra esteja desvalorizada por usos incompletos e incorretos) da Medicina são os físicos e correlatos.
As novas teorias desenvolvidas trouxeram novas visões ao mundo material e cartesiano e começam a influir positivamente na Medicina: o estudo do eletromagnetismo com Michael Faraday, a teoria dos quanta de Max Planck, a teoria da relatividade de Albert Einstein, a teoria da incompletude de Kurt Gödel, a teoria da complementaridade de Niels Bohr, a teoria da incerteza de Werner Heisenberg e principalmente a teoria geral dos sistemas de Ludwig von Bertalanffy.
A biomedicina cartesiana afirmou-se, inicialmente, por essa mesma operação realizada no plano institucional, visando substituir a Igreja pela Ciência na produção do discurso secular sobre a verdade. A preocupação metafísica de Descartes era com a presença de um espírito capaz de penetrar, pela observação, o corpo sensível, fazendo enfim a experiência do conhecimento. (MARTINS, 2003, p. 110)
Todas essas teorias trazem novas luzes ao pensamento linear de causa-efeito, ao reducionismo materialista e à consideração puramente orgânica das doenças em suas causas, evoluções e tratamentos.
O modelo do capitalismo biotécnico funciona bem para os produtores de bens e serviços médicos, mas é desfavorável para os consumidores e pacientes. A imposição da lógica individualista e utilitarista no campo médico repercute negativamente sobre os cidadãos por meio de problemas como:
a) existências e psicológicos (uma experiência partilhada coletivamente de medo, abandono e solidão);
b) técnicos (perda de eficácia dos tratamentos e medicamentos e inutilidade prática de muitas inovações tecnocientíficas);
c) econômicos (aumento dos custos médicos para se pagarem os altos investimentos tecnológicos e de maquinas e os lucros das empresas que, em grande parte, dependem da lógica das bolsas de valores;
d) políticos (ameaça direta à experiência da democracia e cidadania plural nas áreas da saúde);
e) culturais (desaparecimento dos referenciais morais e normativos estruturantes das representações simbólicas da vida e da morte);
f) sociais (esgarçamento da significação da medicina como expressão de uma ecologia social complexa e igualitária).
Os efeitos negativos dessa subordinação da práticas médicas à lógica econômica e utilitária atingem tanto os doentes como os quadros profissionais que atuam nas instituições de saúde. (NUNES, 1999, p. 310)
O seguinte depoimento de uma enfermeira no setor de saúde Francês sobre a precarização da situação do doente é marcante:
A doença é intimada a si etiquetar, a si controlar, a si perfilar uma rubrica, as melhores sendo aquelas que geram mais orçamentos em um mínimo de tempo. Tal intimação não tardou a produzir seu efeito: alguns doentes ficam sem cuidados por serem portadores de doenças prolongadas, de patologias muito caras para o orçamento ou muito pesadas para as equipes de profissionais que conhecem perpétuo déficit de efeitos. (MARTINS, 2003, p. 165)
As solidariedades no interior dos hospitais e clínicas médicas são desfeitas em nome de uma responsabilização individual de grande risco, aumentando o estresse dos profissionais.
A atividade médica na esfera privada traz embutida uma maior possibilidade de conflitos éticos. Capitalismo está perdendo sua possibilidade de sobrevivência assim como comunismo perdeu a sua. São, duas doutrinas que feneceram por não terem saído de seu “dogmatismo” inicial. Ambas, belas teorias que não resistiram ou não resistem à prova prática.
Assim, ao falarmos de medicina podemos nos referir unicamente a certas significações instituídas, como, por exemplo, o conjunto de elementos implicados na formulação dos modelos de saúde vigentes (organizações públicas e privadas envolvidas, regulamentações jurídicas e profissionais, crenças teóricas etc.). Essas significações instituídas são bem conhecidas: o Ministério da Saúde, os hospitais públicos e privados, os médicos famosos de cada cidade, os medicamentos de laboratórios mais difundidos pelos meios de comunicações, etc. (MARTINS, 2003, p. 87)
A moral do cálculo econômico favorece a expansão de uma medicina fundada na comercialização de tudo que pode ser objeto de mercantilização, inclusive os órgãos, desconhecendo o fato de que por meio desses órgãos existe um sujeito que olha, sente e atribui significações positivas e negativas a tudo que resulta de criação humana, inclusive a fundação da medicina mercantil como obra histórica e social. Por conseguinte, a presença do capital médico dentro do campo da saúde redefina prioridades que vão no sentido oposto à aqueles da sociedade medicalizada instituído pelo Estado do bem-estar social, na Europa. (MARTINS, 2003, p. 87)
Ao invés de corrigir seus conceitos à medida que a experiência se desenrolava preferem reforça-los às custas das evidências alargando assim o fosso entre o ideal e o real, entre teoria e realidade. Mas, a médio ou longo prazo, ganha sempre a realidade.
Os azares do Capitalismo estão mostrando suas entranhas, sua crueza, sua perversidade e começam a unir as mentes, não apenas de teóricos e ideólogos, mas a mente de grande parcela da população mundial. Caiu, não a União Soviética, mas o pensamento teórico que ela supunha abrigar. Acredito que logo veremos mudanças semelhantes no Capitalismo Total e nos seus defensores se esses não se conscientizarem logo da realidade mundial. (MARTINS, 2003, p. 149)
Do ponto de vista sociológico, a mera mudança de paradigmas observada dentro do campo científico constitui uma condição necessária, mas insuficiente, para que mudanças políticas mais profundas ocorram nos planos dos ensinamentos científicos, das prioridades acadêmicas e dos usos sociais dessas inovações.
As mudanças de paradigmas na modernidade médica, no século XX, têm expressões diferentes, que extrapolam o universo restrito da Ciência com implicações sociais e políticas importantes.
As medicinas paralelas, já foi dito, fundam-se num novo paradigma, o da dádiva de cura. Por esse novo paradigma, o nascimento de novas disciplinas não responde a uma necessidade de especializar o conhecimento para melhor repartir os organismos do corpo humano, visto como uma máquina manipulável. Essas novas disciplinas nascem pela busca de singularização da cura, a partir de um processo que tem implicações diretas nas experiências pessoais do terapeuta e do paciente no resgate de uma troca circular de dons de cura que se realiza nos planos simbólico (das fantasias, das emoções, dos sentimentos, das representações) e do material (das trocas de cuidados, de medicamentos, de favores, de experiências). (MARTINS, 2003, p.283)O caráter especulativo das pesquisas e inovações tecnológicas sob controle do capital médico associado à valorização de uma moral utilitarista e pragmática, teria necessariamente que gerar reações sociais contrarias, levando a medicina oficial a conhecer importante ruptura epistemológica e institucional.
Do ponto de vista epistemológico, a medicina sofisticada aparece como um ganho histórico inegável da medicina moderna, ela constitui, um pensamento simplificado quando se trata de uso social.
2 A HUMANIZAÇÃO EM SAÚDE
O processo de humanização da Saúde tem suas origens nos movimentos de reformas sanitárias, nas Conferências de Saúde e nos grupos militantes voltados à ações em prol do desenvolvimento de uma consciência cidadã e cujas atuações se tornaram, a partir da década de 1980, gradativamente influentes, estruturadas e articuladas. Na realidade, a reordenação do conceito de saúde, pedra de toque do movimento de reforma sanitária, incorpora, entre seus determinantes, as condições de vida e desloca no sentido da comunidade
a assistência médico-hospitalar como diretriz da atenção à saúde.
A institucionalização desse processo, com a Constituição de 1988 e a estruturação do SUS, inaugurou o reordenamento teórico, paradigmático e operacional da Saúde que a levou a ser compreendida no âmbito da Segurança Social. Nesse contexto, a idéia de Humanização passou a ser entendida como “a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de Saúde”. (NUNES, 1999, p. 321)Destaca-se, na definição, que o esforço de humanização é concebido como um aporte de valor positivo alocado ao sujeito implicado na produção da Saúde, embora, no entendimento comum, não seja raro que designe o usuário ou cliente externo como principal, quando não único, alvo da humanização.
Quaisquer que sejam as antropologias que sejam consideradas na sustentação da noção de sujeito, tem se que no âmbito da humanização em saúde, ela se plasma em uma dimensão que transcende a idéia de pessoa, funcionário, servidor ou usuário, aproximando-se da noção de instância ou de lugares institucionais.
Isso, por outro lado, não significa que ela venha ignorar a dimensão particular dos sujeitos. Ao contrário, pelo fato da humanização em saúde definir-se pelo valor atribuído ao esforço dos sujeitos na produção da saúde, quando se contemplam a autonomia, o protagonismo, a co-responsabilidade e a vinculação das instâncias, põe em evidência (dada a noção de valor) a dimensão da subjetividade e da singularidade. Categorias como vínculo, responsabilidade, autonomia destacam a ênfase na subjetividade, posto que não são categorias do mundo inerte, mas próprias do sujeito.
No plano de sua realização político-institucional, a humanização recebeu acolhimento, na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, com a implantação do Programa Nacional de Humanização, e continuidade e incremento, no Governo do Presidente Lula, quando o Programa foi alçado a uma dimensão de Política Nacional de Humanização. Esse passo não foi sem importância, como se refere explicitamente o Ministro Humbert Costa: “para isto estamos construindo uma política que nomeamos Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no Sistema Único de Saúde Humaniza – SUS”. (NUNES, 1999, p. 347)Contudo, a despeito de sua maior visibilidade de esforço voltado a sua implementação bem como do grau de realidade envolvido em suas propostas e do compromisso oficial traduzido em empenho de organização e formalização, a política de humanização encontra-se longe de constituir-se em realidade. Em seus esforços de implementação não raro observamse desequilíbrios, que ocorrem até como conseqüência da falta de assistência endêmica instalada no setor Saúde.
O fato é que a ênfase dada ao empenho de humanização na saúde pende, amiúde, para o lado das necessidades imediatas do usuário ou cliente externo, de acordo com uma lógica dicotômica de confrontação alimentada por uma tradição paternalista, cujo efeito mais direto se traduz na opacidade dos serviços. (NUNES, 1999, p. 403)Nesse caso, é a própria essência da política de humanização que se vê comprometida nessa má ponderação, uma vez que se alteram os preceitos de co-responsabilidade, vinculação solidária e participação coletiva no processo de gestão. A integralidade, numa acepção mais ampla e livre, implica mais do que uma lógica definidora do objeto saúde entendido como entidade bio-psicosocial, mas uma compreensão do próprio processo de produção de saúde e de seus sujeitos.
O próprio Ministério da Saúde enfatiza essa concepção integral das instâncias presente na política de humanização quando salienta que parte importante do encaminhamento do processo de humanização apóia-se “no estilo de gestão e na estrutura de poder das instituições de saúde”, uma vez que estilo e estrutura “determinam e condicionam posturas e comportamentos relativos aos vínculos profissionais de saúde e usuário, bem como entre os profissionais de saúde entre si”. (NUNES, 1999, p. 452)
CONCLUSÃO
Percebemos que a desumanização da Medicina é a falta de noção de que o paciente seja um ser humano em toda a sua complexidade biopsicossocial. Existe uma tendência a se encarar o diálogo médico-paciente como algo lógico e completo quando na verdade a lógica apresentada está colorida por simbolismos e outros sentimentos.
De se encarar a realidade biológica como a única a ser abordada, diagnosticada e tratada pela Medicina. O preparo do médico e, principalmente, do estudante ainda é tímido nessas áreas. Existe uma tendência para se estender a necessária objetivação do paciente para além dos tempos necessários para exames diagnósticos e procedimentos terapêuticos.
A chave para a humanização passa principalmente pela anamnese bem feita por médicos preparados para apreender e desenvolver a psicodinâmica do encontro clínico e o real significado da ligação entre médico e paciente. E, sem dúvidas, conscientes do que seja uma missão médica.
A tecnologia é simplesmente o braço armado das ciências médicas: geralmente olhos e ouvidos nos diagnósticos, braços e mãos nos tratamentos. O paciente ganha com o uso da tecnologia e perde, e muito, com seu abuso. O abuso da tecnologia ou o seu uso em substituição à clínica encarecem e são causas de iatropatogenias, ou seja, males causados pelos usos impróprios ou errados da atividade médica. A Medicina é uma atividade de relação interpessoal; e o cérebro humano é a “tecnologia” soberana e insubstituível nessa atividade. Portanto, ganha o paciente cujo médico com ele souber se relacionar e que usa prioritariamente sua capacidade de raciocínio e sua sabedoria para compreender e encaminhar os seus males nas esferas física, psíquica e social.
Assim, compreender os rumos atuais da medicina moderna constitui um importante desafio para a imaginação sociológica. Afinal de contas, os preços dos medicamentos e serviços médicos, os usos e manipulações das novas tecnologias ou, então, a transformação do sofrimento e da doença em mercadorias e objetos de lucro incessante, aparecem como temas que tiram o sono diário do brasileiro. Os noticiários dos jornais o testemunham.
SUMMARY
The article provides all therapeutic system that can be understood as a relationship between an intervention and an organic intervention sociology. Assuming that each type of intervention must restore a good alliance, balanced, and the elements themselves to the biological plan, in part, and the psychic and symbolic elements of another.
In the paradigm of the donation, the gift appears as an operator of the alliance par excellence. It is he who transforms the rivals and enemies in relatives and allies. The doctor is one that lies between the two opposing camps to encourage their alliances and pacificações.
KEY-WORDS: Medicine Desumanização. Humanização. Sociology.
REFERÊNCIAS
MARTINS, Paulo Henrique. Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas. Petrópolis:Vozes, 2003. P. 85-206.
NUNES, E. D. Sobre a Sociologia da Saúde. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 293-467.