Currículo e Desenvolvimento Humano
Seres humanos vão à escola com vários objetivos. Mas a existência da escola cumpre um objetivo antropológico muito importante: garantir a continuidade
da espécie, socializando para as novas gerações as aquisições e invenções resultantes do desenvolvimento cultural da humanidade.
Em nossa espécie, o adulto detém um papel importante, culturalmente determinado, de garantir esta continuidade. A espécie humana subsiste, exatamente, pela transmissão que seus membros mais velhos fazem aos bebês, às crianças pequenas e aos jovens das ações humanas, dos conhecimentos, dos valores, da cultura. Na escola, esta ação do adulto se revela como a função pedagógica que o professor tem de possibilitar a apropriação do conhecimento sistematizado (que comumente chamamos de conhecimento formal), que caracteriza as ciências e as artes.
Em um dado momento da evolução cultural da humanidade, marcado pela invenção de sistemas simbólicos registrados, foi necessário introduzir novas formas de atividade humana para garantir a transmissão das novas formas de saberes que estavam sendo criadas. Percebeu-se a necessidade de criar um espaço e um tempo separado da vida cotidiana para que as gerações se encontrassem com este objetivo.
A escola foi criada, assim, há cerca de 4.500 anos, no momento histórico da invenção da escrita e da matemática, do desenvolvimento da geometria e da
expansão de certas práticas artísticas.
Podemos dizer que ambas – a escrita e a escola – são criações recentes da humanidade, principalmente se considerarmos que a fala surgiu há cerca de 200 mil anos e que os primeiros registros de imagens em suportes como parede das cavernas datam de 25 mil anos no continente europeu. Antes mesmo disto, há 32 mil anos, na África surgiram registros, hoje chamados de protolinguagem.
A escrita é, assim, bem mais recente, tendo surgido há aproximadamente cinco milênios. Depois da criação da escrita, o desenvolvimento cultural da humanidade se acelera chegando à invenção da imprensa no século XV.
Daí para frente, há uma aceleração acentuada no desenvolvimento das ciências e das técnicas artísticas, na invenção de equipamentos, na produção literária e desenvolvimento tecnológico.
A aceleração é tal que hoje testemunhamos em uma mesma geração mudanças enormes nas formas de comunicação dos seres humanos, no fluxo de informação entre países e na inovação instrumental e tecnológica. Isto reflete na escola: educar crianças hoje exige dos professores saberes muito distintos do que se exigia dos professores que os ensinaram, há 20 ou 30 anos.
Testemunhamos nas últimas duas décadas mudanças extraordinárias no desenvolvimento cultural da espécie humana. Como resultado, os processos de desenvolvimento das novas gerações apresentam peculiaridades absolutamente novas, mesmo para educadores jovens.
Considerando que o desenvolvimento humano é resultante, como veremos mais adiante, da dialética entre biologia e cultura, mudanças na cultura levarão certamente a novas formas de pensamento e de comportamento.
A relação da criança com o adulto na escola é uma relação específica, porque o professor não é, simplesmente, mais um adulto com quem a criança interage – ele é um adulto com a tarefa específica de utilizar o tempo de interação com o aluno para promover seu processo de humanização.
O que é processo de humanização?
Na antropologia, humanizar é o processo pelo qual todo ser humano passa para se apropriar das formas humanas de comunicação, para adquirir e desenvolver
os sistemas simbólicos, para aprender a utilizar os instrumentos culturais necessários para as práticas mais comuns da vida cotidiana até para a invenção de novos instrumentos, para se apropriar do conhecimento historicamente constituído e das técnicas para a criação nas artes e criação nas ciências. Processo de humanização implica, igualmente, em desenvolver os movimentos do corpo para a realização de ações complexas como as necessárias para a preservação da saúde, para as práticas culturais, para realizar os vários sistemas de registro, como o desenho e a escrita.
A humanização se refere, assim, ao desenvolvimento cultural da espécie. O desenvolvimento cultural é função do momento histórico pelo qual passa a humanidade e do quanto cada país participa do acervo de cultura, tecnologia, ciências e bens disponíveis a um momento dado. Dentro de um mesmo país, a participação é definida também em termos de classes sociais, etnias, gênero e diversidade biológica.
Um currículo que se pretende democrático deve visar à humanização de todos e ser desenhado a partir do que não está acessível às pessoas. Por exemplo, no caso brasileiro, é clara a exclusão do acesso a bens culturais mais básicos como a literatura, os livros, os livros técnicos, atualização científica, os
conhecimentos teóricos, a produção artística. Além disso, existe a exclusão do acesso aos equipamentos tais como o computador, aos instrumentos básicos
das ciências (como da biologia, física e química), aos instrumentos e materiais das artes.
É função da escola prover e facilitar este acesso. A vinda da criança para a instituição tem, entre outros, um objetivo claro e preciso: aprender determinados conhecimentos e dominar instrumentos específicos que lhe possibilitem a aprendizagem. E aprender, sobretudo, a utilizar estas aquisições não só para o seu desenvolvimento pessoal, como para o do coletivo. Ou seja, o conhecimento colocado a serviço do bem comum.
A relação da criança com o adulto, na escola, é mediada, então, pelo conhecimento formal. O professor já se apropriou do conhecimento formal que o educando deverá adquirir e a interação entre ambos deve ser tal que permita e promova a aprendizagem deste conhecimento.
A ação pedagógica implica, portanto, numa relação especial em que o conhecimento é apropriado. Para tanto, o educador necessita adequar sua prática pedagógica às possibilidades de desenvolvimento e de aprendizagem de seus educandos. O aluno, por sua vez, depende, também, de formar atividades que levem à formulação do conhecimento. Chamamos estas atividades de Atividades de Estudo, que serão discutidas no item IV.
A instituição escolar, como vimos, foi constituída na história da humanidade como o espaço de socialização do conhecimento formal historicamente construído. O processo de educação formal possibilita novas formas de pensamento e de comportamento: por meio das artes e das ciências o ser humano transforma sua vida e de seus descendentes.
A escola é um espaço de ampliação da experiência humana, devendo, para tanto, não se limitar às experiências cotidianas da criança e trazendo, cessariamente, conhecimentos novos, metodologias e as áreas de conhecimento contemporâneas. O currículo se torna, assim, um instrumento de formação humana.
Trecho do Livro ” INDAGAÇÕES SOBRE CURRÍCULO “ que você encontra no site da autora em: http://elvirasouzalima.blogspot.com
Elvira Souza Lima é pesquisadora em desenvolvimento humano, com formação em neurociências, psicologia, antropologia e música. Trabalha com pesquisa aplicada às áreas de educação, mídia e cultura. Tem várias publicações, entre elas “A criança pequena e suas linguagens”, “Quando a criança não aprende a ler e a escrever”, “Práticas culturais e aprendizagem”, “Brincar para quê?” e “Conhecendo o adolescente”.
Email: [email protected]
Site: http://www.elvirasouzalima.net