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sexta-feira, novembro 22, 2024

EROTIZAÇÃO DA INFÂNCIA

EROTIZAÇÃO DA INFÂNCIA

Há quase um século, Sigmund Freud ousou relacionar dois temas que pareciam muito distantes entre si: sexualidade e infância. Em 1905, ele publicou Os três ensaios sobre a sexualidade, num dos quais abordava especificamente a sexualidade infantil – conceito fundamental para a Psicanálise, até os dias atuais.

Para Freud, a sexualidade da criança possui duas características principais: é perversa e polimorfa. Isto significa dizer que ela é auto-erótica e satisfeita através da estimulação de zonas erógenas no próprio corpo da criança. As fases do desenvolvimento infantil, segundo a teoria freudiana, estão ligadas ao deslocamento da libido (energia sexual) a cada uma dessas zonas.

Assim, a criança deve passar pela fase oral (obtendo prazer pela sucção do seio materno, da chupeta, do dedo, ou levando os objetos à boca), pela fase anal (quando aprende a controlar a atividade esfincteriana), e por outras, até chegar à puberdade. A auto-estimulação de zonas erógenas não se configura propriamente como uma masturbação – atividade característica da puberdade – e sim como um tipo de sexualidade especialmente infantil, diferente da adolescente e da adulta.

É fácil imaginar o escândalo provocado por essas idéias na sociedade vienense do início do século XX. Neste momento histórico, predominava uma concepção de infância associada a uma aura de pureza, inocência e ingenuidade. A criança deveria ser protegida dos ditos “segredos adultos”, como aqueles relativos à violência e ao sexo. E se definia, justamente, pelo não conhecimento desses “segredos”.

Em outras palavras, as crianças eram consideradas crianças uma vez que não sabiam de coisas que só os adultos sabiam, pela experiência ou pela leitura de livros escritos por outros adultos. Em oposição, os adultos, detentores deste saber proibido às crianças, seriam aqueles com a função de orientá-las e discipliná-las.

Mas não foi sempre assim.

Na Idade Média, os adultos tinham outras formas de se relacionar com as crianças. Sabe-se que o trabalho infantil (sobretudo a partir dos sete anos de idade) era encarado com naturalidade. Não havia preocupação em proteger a criança dos “segredos adultos”: falava-se de sexo, e quiçá fazia-se sexo, na presença de crianças – como sugere Ticiano no quadro Bacanal de las Andrians (1518-1519), onde o pintor retrata uma criança, aparentando dois anos de idade, no meio de adultos nus se tocando com luxúria.


The Bacchanal of the Andrians

A arquitetura medieval, inclusive dos palácios e castelos aristocráticos, revela um ambiente onde não há lugar para a privacidade: os cômodos eram interligados entre si, e as famílias, compostas por muitos membros – avós, tios, primos, agregados…

Adultos e crianças medievais compartilhavam não só dos mesmos ambientes sociais, mas também de um mesmo ambiente informacional, de um mesmo não saber: eram ambos analfabetos, já que a leitura era um privilégio restrito ao clero. Escolas eram raras ou inexistentes. Numa cultura da oralidade, não havia espaço para uma divisão nítida entre infância e idade adulta. Os valores e costumes sociais eram apreendidos pelos pequenos diretamente, a partir do contato com os adultos, que não demonstravam grandes preocupações acerca da educação infantil.

A criação moderna da prensa tipográfica, associada à alfabetização socializada, veio mudar este quadro. Passou-se a imprimir e publicar diversos livros, contendo saberes que se colocavam à disposição de quem soubesse ler.

Desta forma, surgiu um parâmetro claro e objetivo para diferenciar adultos e crianças: os primeiros seriam aqueles que sabem ler e escrever; as últimas, aquelas que deveriam passar por um processo gradual e lento, até adquirirem este saber. A função da escola, neste momento, ganhou uma fundamental importância: à escolarização se atribuiu a tarefa de ensinar às crianças a via de acesso aos saberes que circulavam no mundo adulto (a alfabetização) e, simultaneamente, prepará-las para este mundo através da disciplinarização.

Essa revisão histórica da civilização ocidental nos obriga a concluir que as formas de se conceber a infância variam, de tempo em tempo, de sociedade a sociedade. Muito além do fator biológico, que aponta para características anatômicas e fisiológicas específicas às crianças, cada contexto cultural é capaz de criar uma maneira particular de concepção de criança, no sentido que as formas de se relacionar com ela, e o próprio papel dela na sociedade, resultam de uma complexa rede de valores e regras predominantes nesta sociedade.

Na modernidade, a ascensão sócio-econômica da burguesia trouxe valores diferentes dos medievais, e um novo modelo de organização familiar. Modelo este que costuma ser chamado de família burguesa ou família nuclear – restrito ao núcleo pai-mãe-filho(s). Nesta família, mãe e pai ganharam funções muito bem definidas. A ela, caberia o cuidado com a casa, o marido e os filhos (atuando no espaço privado do lar); a ele, caberia o sustento da família através do trabalho remunerado (atuando no espaço público). Aos dois, caberia a obrigação de amar e educar seus filhos, investindo neles uma perspectiva de futuro, de progresso, condizente à conjuntura histórica da época.

Este modelo familiar, hoje, parece estar em crise. É crescente o número de casais separados ou divorciados, madrastas e padrastos, ou mães e pais que criam seus filhos sem a ajuda de um cônjuge. A mulher, não mais confinada às atividades domésticas, conquista um espaço cada vez maior no mercado de trabalho – e, não raro, culpa-se por não dedicar aos filhos a atenção que julga dever dedicar.

Nas últimas décadas, as transformações tecnológicas têm engendrado mudanças sociais e psicológicas, configurando-se como um dos principais vetores de subjetivação da contemporaneidade. Os meios de comunicação ensinam às pessoas novas formas de agir e pensar. E as crianças, obviamente, não se excluem deste processo.

Há quem diga que a infância – revestida desta aura de pureza, inocência e ingenuidade – consiste numa invenção moderna, que está fadada a desaparecer. (Werneck, 2001.) Há ainda quem vá mais longe. Alguns pensadores localizam o surgimento e a crise deste conceito em dois marcos históricos específicos: em 1850 e 1950, respectivamente. (Steinberg & Kincheloe, 2001.) Em 1850, o trabalho infantil foi abolido das fábricas inglesas, no auge da Revolução Industrial – movimento crucial para a concretização dos interesses sociais burgueses. Quanto a 1950, é um ano que simboliza a criação e difusão de um aparato tecnológico que tem modificado a humanidade desde então: a televisão.

Na Idade Média, adultos e crianças dividiam o mesmo ambiente informacional – o da oralidade, para a qual todos estamos biologicamente aptos. Na Pós-Modernidade, a televisão é capaz de simular um ambiente informacional semelhante ao medieval. Melhor dizendo: para assistir à TV, basta ver e ouvir, habilidades a que adultos e crianças estão biologicamente aptos.

O processo de leitura, ao contrário, exige um esforço de aprendizagem que costuma durar anos, e está longe de ser instintivo. Antes de mais nada, deve-se desenvolver um autocontrole corporal que permita um exercício introspectivo de atenção e concentração. Deve-se memorizar as letras, seus respectivos sons, e depois compreender a estrutura das sílabas, das palavras, das frases… Mais tarde, deve-se entender o sentido geral de um parágrafo, de um texto, de um livro… E, enfim, aprender a ler criticamente – uma capacidade que, às vezes, não se adquire nem mesmo depois da adolescência. Portanto, a divisão das crianças por idade, nas séries escolares, atende às etapas deste processo.

Para assistir à televisão, é bastante diferente. Uma criança de dois anos – como aquela retratada por Ticiano em meio a um bacanal –pode apertar um simples botão e deparar-se com cenas de sexo explícito na telinha. Conseqüentemente, a televisão inviabiliza a proteção da criança (tão valorizada pelos modernos) do acesso aos “segredos adultos”, que antes se desvendavam apenas nos livros, ou pela experiência. Para certos autores, a televisão impossibilita que exista a infância como a fase do não saber, da pureza, inocência e ingenuidade.

O escritor norte-americano Neil Postman (1999), por exemplo, afirma que a criação da infância só foi possível pelo advento da prensa tipográfica, e proclama o desaparecimento da infância devido ao advento da televisão.

Entretanto, convém nos questionarmos: estaríamos diante do fim da infância ou de novas formas de ser criança? Como adultos, tendemos a pensar na criança de acordo com critérios coerentes à criança que nós fomos um dia. Contudo, a velocidade das transformações sociais e psicológicas, impulsionadas pelas transformações tecnológicas que testemunhamos, faz com que ser criança hoje seja diferente de ser criança poucas décadas atrás.

De alguns anos para cá, a programação televisiva, pelo menos no Brasil, tem exibido com maior freqüência os tais “segredos adultos”, em horários que teoricamente obedecem a uma censura imposta pelo Ministério da Justiça. Apenas teoricamente. Na prática, o sexo aparece na TV a qualquer hora do dia – ainda que implícito e sutil: nas dançarinas de biquíni que rebolam no cenário dos programas de auditório.

Crianças assistem a novelas e telejornais. Adultos assistem a programas infantis. Ao perceberem este fato, as emissoras televisivas passaram a veicular propagandas de produtos “para adultos” nos intervalos de programas infantis. Propagandas de cerveja com mulheres sensuais e seminuas. Chamadas de novelas, num trailler de cenas picantes. (Sampaio, 2000.)

Por outro lado, tem proliferado também, em diferentes horários, a quantidade de propagandas que falam diretamente à criança. Isso se explica por um fenômeno recente de incorporação da criança à sociedade de consumo: de filha do cliente, ela ascendeu ao status de cliente. (VEIGA, 2001.) E já pode desejar e consumir produtos como a sandalinha da Carla Perez, ou as roupas da grife lançada por ela, CP Girls, nos moldes da grife de Xuxa, O bicho comeu.

Na TV, a criança assiste ao Festival de Desenhos da Rede Globo. Na rua, depara-se com a foto da apresentadora, Deborah Secco, nua e numa pose sexy, no outdoor que anuncia a revista Playboy. (Aliás, Carla Perez e Xuxa também já posaram nuas para a foto de capa da mesma revista…)

Portanto, os universos simbólicos de adultos e crianças estão expostos, na televisão e em outras mídias, para ambos. E o controle do que é visto pelas crianças, que tradicionalmente caberia aos pais, é extremamente frágil: a TV, muitas vezes, transforma-se numa conveniente “babá eletrônica”, que mantém os filhos quietos enquanto os pais trabalham ou se ocupam com os afazeres domésticos. Além disso, é grande o número de crianças que assistem a programas em horários não recomendáveis para sua faixa etária.

As conseqüências desta situação se evidenciam na própria mídia. No programa do Gugu, crianças imitam o grupo É o tchan, em coreografias insinuantes e dublagens de letras de música do tipo: “Tá de olho no biquinho do peitinho dela…”. (Valladares, 1997.) Na vida, meninas escolhem para fantasias de carnaval o figurino sensual de Carla Perez, Tiazinha, ou outros símbolos sexuais televisivos.

Porém, estas não são as manifestações mais preocupantes da erotização infantil. Até aqui, constatamos apenas que estas crianças contrariam o ideal de infância concebido a partir da modernidade. Mais preocupante é saber que, atualmente, no Brasil, já é significativo o número de meninas que, mal ficam menstruadas, iniciam-se na vida sexual propriamente dita: no Censo de 2000, o IBGE inclui, pela primeira vez, a faixa etária de 10 a 14 anos nas suas estatísticas de maternidade.

Assim, torna-se claro que muitas crianças (considerando-se que, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, uma pessoa de até 12 anos ainda é uma criança) estão exercendo hoje uma sexualidade que, há um século, foi descrita por Freud como adulta. Em vez de se limitarem ao prazer perverso e polimorfo – seguido pela masturbação na puberdade para que, somente depois, venham a praticar o sexo com um parceiro – crianças transam com crianças, e dão à luz outras crianças.

Diante destes dados, cabe destacar dois pontos fundamentais no que se refere à Educação, seja ela escolar ou parental: 1) O hábito de se qualificarem as manifestações sexuais infantis como algo “terrível” e “cruel” – e a televisão como um “bicho papão” – não contribui, em si, à compreensão destas novas formas de ser criança. Pelo contrário: apenas afastam o educador de uma possibilidade de entender melhor esta questão e, por conseguinte, de lidar melhor com ela. E 2) a mobilização do educador, ou de qualquer pessoa preocupada com o processo de erotização da infância, deve resultar em ações voltadas antes para os resultados mais graves deste processo: a gravidez precoce, a disseminação de doenças sexualmente transmissíveis etc.

Se for considerado “impróprio para menores” um bate-papo aberto sobre sexo, nas escolas ou em casa, os pequenos dificilmente receberão a orientação adequada sobre como proceder ao iniciar sua vida sexual.

BIBLIOGRAFIA:

ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
CASTRO, L. R. (org.) Infância e adolescência na cultura do consumo. Rio de Janeiro: Nau, 1998.
FREUD, S. Os três ensaios sobre a sexualidade. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira. v. VII, Rio de Janeiro: Imago, 1989.
POSTMAN, N. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.
SAMPAIO, I. S. V. Televisão, publicidade e infância. São Paulo: Annablume, 2000.
STEINBERG, S. R., KINCHELOE, J. L. (org.) Cultura infantil: a construção corporativa da infância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
VALLADARES, R. O tchan infantil. Veja, 13 ago. 1997, p. 122-123.
VEIGA, A. Criança pensando como gente grande. Veja, 16 mai. 2001, p.70-72.
WERNECK, A. O fim da inocência. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2 set. 2001, Caderno B, p. 1.

Fernanda Passarelli Hamann* é Jornalista e membro do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa da Subjetividade (GIPS), coordenado pela professora Solange Jobim e Souza, no Departamento de Psicologia da PUC-RJ
Erotização da infância: a história de uma nova forma de ser criança – Fernanda Passarelli Hamann Fonte: site MULTIRIO

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