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terça-feira, novembro 19, 2024

EVOLUÇÃO DA DEMOCRACIA NA GRÉCIA

Autor: Ramon Fernandes Ensá Neto

1 – ETIMOLOGIA

Em sua etimologia, “democracia” deriva-se do grego demokrateia (governo do povo, poder popular, pelo francês démocratie). De acordo com a etimologia e o consenso tradicional, a democracia é o governo no qual o povo, titular da soberania, ou a exerce diretamente ou por meio de seus representantes. Geralmente define-se a democracia como o governo do povo, pelo povo e para o povo, querendo com isso dizer-se que, na democracia, o povo, além de titular da soberania, a exerce por si mesmo, ou por delegação expressa, em benefício do próprio povo.

2.1 – A DEMOCRACIA NA GRÉCIA

Na introdução de sua Filosofia da história, Hegel escreve, a propósito dos diferentes graus da consciência de liberdade que, para os orientais, somente um homem é livre, para os gregos e romanos apenas alguns são livres, ao passo que, para as nações germânico e cristãs, todos os homens são livres, o homem enquanto homem é livre.

2.2 – A IDÉIA DE DEMOCRACIA

A idéia de democracia surge na Grécia, no séc. VI a.C. Na Grécia arcaica, tal como se reflete nas obras de Homero e de Hesíodo, a classe trabalhadora, servil, desempenha o papel de figurante mudo da cena histórica. O mundo que a Ilíada e a Odisséia descrevem é o mundo aristocrático e guerreiro, cujo pressuposto econômico é o trabalho camponês. Na Ilíada, por exemplo, nas assembléias que se realizam na ágora, apenas os reis e os gerontles, chefes de tribos, têm o direito de participar das discussões e das deliberações. No poema de Hesíodo, Os trabalhos e os dias, é o mesmo mundo que ainda se descreve. A minoria dos proprietários de terras, que se chamam a si mesmos de “homens de bem”, se contrapõe á massa numerosa de escravos, assalariados e pequenos lavradores que entregavam aos donos das terras cinco sextos do que colhiam, conservando apenas uma sexta parte do fruto do seu trabalho. Nesse mundo homérico e hesiódico, o poder e a liberdade são privilégio dos proprietários e senhores da terra, cuja vontade se confunde com a lei.

3.1 – OS PROCESSOS DA DEMOCRACIA

Incorreríamos em grave erro se imaginássemos que, devido à preeminência intelectual e artística de Atenas, na época de Péricles, a democracia domina o mundo grego, a partir do século V a.C. Os regimes oligárquicos continuam numerosos e fortes: têm preponderância pelo menos na Grécia continental. Mas, se a derrota de Atenas na Guerra do Peloponeso e a simpatia ativa de Esparta após sua vitória lhe valem alguns anos de triunfo generalizado, este é de muito curta duração. A restauração da democracia em Atenas não tarda, e os primeiros embaraços de Esparta, que se choca com o desejo de independência dos governos, mesmo dos oligárquicos, bastam para que as democracias ergam a cabeça por toda parte.

Seus progressos são constantes no século IV a.C., que é o século da derrocada de Esparta vencida em Leuctras em 371 a.C., e, ao mesmo tempo, aquele em que a democracia penetra e se alastra pela Grécia continental. Mais do que Atenas, o impulso, agora, parte de Tebas que, libertando-se da ocupação lacedônica em 378 a.C., adota e difunde por toda a Beócia as instituições democráticas. Depois de Leuctras, seus exércitos as introduzem no coração do Peloponeso, nos cantões montanhosos até então, menos evoluídos.

A intervenção macedônica, que poderíamos, sem razão, considerar favorável sistematicamente aos oligarcas, torna, entretanto, mais lenta sem dúvida nenhuma esta evolução. Na luta conta às cidades gregas, na maioria das vezes dirigidas por democratas, é inevitável que Filipe procure a simpatia de seus adversários, e que estes, como tantos gregos, respondam em geral às suas ofertas, de tal modo que o triunfo de Filipe se transforme também em seu próprio triunfo. Mas, mesmo então, o resultado do conflito que, há séculos opõe as duas ideologias, já não oferece dúvidas no fim do período clássico. São democráticos os regimes estabelecidos por Alexandre nas cidades gregas da Ásia por ele libertadas, e alguns dos competidores que disputam sua herança rivalizam em gentilezas para com os democratas da própria Grécia. Não restara aos oligarcas outra alternativa senão conformar-se com o inevitável e imaginar sistemas mais ou menos engenhosos que lhes permitissem manter, por trás de uma fachada democrática, uma realidade diferente.

Para explicar esta marcha da democracia, as circunstâncias desempenham certo papel, devendo-se mencionar em primeiro plano o declínio de Esparta. Mas um simples relance sobre a evolução revela a importância da Guerra do Peloponeso. Em si mesma, tal guerra já marca época em virtude de sua amplitude e duração. Acima de tudo, prepara o longo rosário de guerras do séc. IV a.C., as quais acabam por devastar todas as regiões do mundo grego, sem exceção. Por toda parte, tais guerras perturbam o equilíbrio anterior. Libertam forças latentes que, num tempo de menor tensão, ignoravam a sua própria existência e que passavam a tomar consciência dos serviços prestados à cidade. Arruínam a classe média rural, cujo número e solidez serviam de apoio às velhas tradições. Provocam ou agravam o antagonismo entre ricos e pobres, que outrora fora apenas um dos aspectos do antagonismo de dois regimes opostos e que se torna, agora, o seu principal aspecto. Uma vez formulado assim o problema, a solução democrática deve triunfar, pois se adapta melhor do que seu rival, pelo menos a certas tendências profundas da civilização grega clássica. A liberdade e o florescimento da personalidade humana postulam a idéia da igualdade; a concepção corrente da cidade, bem como a do cidadão, recomenda logicamente a adoção de instituições políticas que concedam direitos iguais a todos os membros do corpo cívico. Para eficazmente deter a marcha democrática, seria preciso modificar o próprio ideal da polis.

3.2 – LIMITES DA IDÉIA DEMOCRÁTICA GREGA

As democracias gregas não levaram a lógica mais longe. Sua doutrina parece apresentar traços de universalismo. Sua aplicação, porém, permaneceu restrita, não se estendendo sequer aos homens que, instalados permanentemente, por vezes há gerações, no seu território, levavam praticamente a vida cotidiana dos seus cidadãos. Neste ponto, há no humanismo do helenismo clássico, lacuna tão grave, que não basta apenas assinalar sua existência.

É exato que Atenas não pensou um só instante em suprimir a escravatura. Ateve-se a uma das tantas inovações jurídicas que, acrescentadas a certa brandura de costumes, tornaram a sorte dos escravos um pouco menos penosa.

É igualmente exato que Atenas manifestou, com relação aos estrangeiros, um exclusivo sistema jurídico. No início do séc. VI a.C., Sólon previra a concessão de cidadania aos banidos das outras cidades, bem como aos estrangeiros que viessem trabalhar na Ática e aí vivessem com suas famílias. Mais tarde Clístenes, procedendo à reclassificação dos cidadãos aproveitou-se deste fato para inscrever como tais a numerosos “metecos”, ou seja, estrangeiros domiciliados. No decorrer do séc. V a.C., desaparece esse liberalismo. Mesmo recebendo os mesmos direitos sociais dos demais cidadãos, exceto pelo fato de ainda lhes ser recusado o direito de propriedade da terra, não lhes cabe lugar algum na vida política. Não podem ser chamados a participar dela, salvo obtendo a cidadania, favor de que Atenas se mostra bastante relutante. Normalmente, só se concede aos indivíduos como recompensa por serviços excepcionais de toda ordem.

Mais paradoxal ainda é ver Atenas adotar, tardiamente, uma legislação de caráter nitidamente racista. Durante muito tempo – e isso não foi privilégio de Atenas – o filho de um pai cidadão e mãe estrangeira fora cidadão. Ora, uma lei de 451/450 a.C., proposta por Péricles, restringe a cidadania aos filhos nascidos do casamento legítimo de cônjuges atenienses. Os outros só têm acesso á cidadania por meio de uma decisão individual, pois a lei os transformou em bastardos e estrangeiros.

3.3 – DEMOCRACIA E IMPERIALISMO

Péricles foi o principal criador do império ateniense do séc. V a.C., que foi destruído pela Guerra do Peloponeso e que os atenienses do séc. IV a.C., nostálgicos, quiseram reconstruir. Seria muito longo querer traçar um esboço do imperialismo ateniense. Sua dureza implacável, seus avanços constantes em detrimento das liberdades elementares daqueles que, mesmo adornados com o nome de “aliados”, sempre foram tratados como “súditos”. Alguns se apegam quase desesperadamente a Demóstenes que, de fato, em alguns discursos, encontra modulações admiráveis para esboçar um programa de livre federação de Estados gregos, tendo em vista a defesa comum de sua independência. Mas outros discursos do mesmo orador exprimem a saudade do antigo predomínio, o que nos leva a julgar como simples expedientes de última hora, ditados pela crescente ameaça de Filipe, os projetos que procuravam preservar a igualdade dos participantes no esforço comum. Mais numerosos são os historiadores que são levados a invocar, em favor de Atenas, os magníficos modelos, intelectuais e artísticos, por ela fornecidos à civilização helênica: Atenas “escola da Grécia”, já dizia Péricles, a acreditarmos em Tucídides. Certamente, mas acontece que o mestre cobrava muito de seus alunos, e de todas as maneiras. Impõe-se a evidência: se uma cidade grega, devido à sua força, ao seu prestígio, aos próprios princípios que aplicava em sua organização interna, esteve em condições de romper as barreiras que retalhavam em múltiplas cidades o mundo grego, de elevar este último a uma unidade política superior, tal cidade foi Atenas. Um homem de hoje será sempre irresistivelmente levado a pensar que se tratava para Atenas de um dever, visto que possuía, pelo menos, o poder de fazer esta tentativa. Somos forçados a reconhecer que Atenas faltou a este dever. Desejaríamos poder apontar um gesto, um incentivo, por mais modesto que fosse, de alargamento e abertura da cidade ateniense; nada encontramos digno de ser levado em conta, nada que contrabalance a manutenção dos metecos em seu estatuto inferior, nem na lei de 451/450 a.C.

4 – ELEMENTOS DEMOCRÁTICOS

A partir do séc. VII, em conseqüência do processo de urbanização, do crescimento do artesanato e do comércio, surgem camadas sociais ligadas às atividades especificamente urbanas, mais conscientes do que a classe dos trabalhadores rurais e capazes de lutar na defesa de seus interesses e direitos. A rhëtrë de Quio, que é o texto constitucional mais antigo de que se tem notícia no Ocidente, assinala essa passagem do mundo homérico, rural, aristocrático e guerreiro, para o mundo urbano, potencialmente democrático. O texto constitucional de Quio consagra, de modo inequívoco os princípios fundamentais da democracia, a soberania do povo e a liberdade do indivíduo.

A vida do cidadão grego é essencialmente política – Aristóteles define o homem como zoon politikon, “animal político” – desconhecendo a cisão que só ocorrerá mais tarde entre a vida privada e pública. Para o grego há só uma vida, que se realiza nas polis, nas assembléias, nas reuniões da ágora, no exercício da função pública. A assembléia detém a soberania, elege os magistrados ou os designa por sorteio. Decide a paz e a guerra, a vida e a morte dos cidadãos e dos inimigos. Além da assembléia, a democracia grega incluía um conselho, composto de quinhentos membros sorteados, com a idade mínima de quarenta anos. O conselho de dividia em dez secções, que se revezavam no exercício da presidência da assembléia, para qual preparavam os projetos de lei. Os magistrados estavam obrigados a severa prestação de contas e as funções militares se achavam sujeitas a condições rigorosas, exigindo dos estrategos que fossem proprietários e pais de filhos legítimos. As tarefas administrativas e as funções consideradas subalternas, como as de polícia, eram exercidas pelos escravos.

A Paidéia (ideal ou modelo de educação) tradicional, da qual Esparta era o paradigma, formava soldados, guerreiros, temerosos dos deuses e respeitosos dos costumes tradicionais. Assentada na disciplina e no respeito à autoridade, a educação tradicional excluía a crítica, o livre debate das idéias. A democracia, porém, reclamava uma pedagogia diferente, destinada não a formar o soldado, mas o cidadão, capaz de falar e defender, pela palavra, seus interesses e direitos, tanto na ágora e nas assembléias, como nos tribunais. Não é por simples coincidência que um dos principais sofistas (mestres na arte de discutir, de argumentar), Protágoras, é também um dos principais teóricos da democracia. Opondo a lei, feita pelos homens, e fruto de acordo e de convenção, à natureza, os sofistas preparam a distinção entre natureza e história, de conseqüências tão importantes no pensamento posterior.

Na famosa oração fúnebre, pronunciada em homenagem aos heróis atenienses mortos no primeiro ano da Guerra do Peloponeso, Péricles salienta, também, esses dois aspectos da democracia: “Nossa constituição chama-se democracia porque interessa à maioria e não a um pequeno grupo de indivíduos. Quanto às leis, todos têm os mesmos direitos; quanto às dignidades, cada um, de acordo com seus méritos, é geralmente preferido para os cargos públicos, não pelo partido a que pertence, mas por suas virtudes, e ninguém é excluído por falta de ilustração em virtude de sua pobreza, na medida em que tem condições de prestar algum serviço ao Estado”.

5 – DEMOCRACIA GREGA EM SUA ÉPOCA

A democracia ateniense, quando confrontada com nossas modernas concepções, surge como uma oligarquia, somente menos estrita que as de direito. Mas as concepções modernas não nos fornecem uma visão adequada. Algumas situações defendidas em sua época como necessidades naturais, como a escravidão, saltam aos olhos dos que convivem com a democracia atual. Além disso, o próprio ideal das cidades-estado interfere nestas considerações. A polis grega não é o território, mas a coletividade dos cidadãos: a integridade de suas fronteiras humanas é muito mais importante que suas fronteiras territoriais. Trata-se, portanto, não de negligência, mas de um certo protecionismo interno, que possa assegurar a integridade dos interesses internos. Longe, portanto, de cair em contradição consigo mesma, a democracia grega, que realizava o ideal clássico, na medida em que estendia a igualdade a todos os cidadãos, conformava-se ainda mais, ao limitar esta igualdade apenas a estes, e ao resistir a todas as infiltrações humanas estrangeiras.

6 – A DEMOCRACIA HOJE E SUAS TEORIAS

Os gregos criaram a democracia política direta, na qual os cidadãos tomavam eles mesmos as decisões a respeito da cidade (polis); mas escravos e metecos não eram considerados cidadãos. Esta mesma democracia direta é praticada ainda em três cantões suíços, através dos Landsgemeinden (assembléias do povo). J. J. Rousseau concedeu à democracia uma tória, conhecida sob o nome de teoria da soberania popular. Em oposição a essa teoria, os revolucionários moderados desenvolveram a teoria dita “da soberania nacional”, conduzindo à democracia representativa: a nação detém o poder, enquanto entidade coletiva, abstrata e indivisível. Em conseqüência, um corpo de representantes eleitos pela nação em seu conjunto encarna verdadeiramente a vontade nacional. A democracia liberal clássica é do mesmo modo essencialmente representativa, não obstante possa apoiar-se em uma parcela e não na totalidade dos cidadãos.

Para os marxistas, a abolição das classes e o desaparecimento do Estado conduzirá à democracia total, à democracia social; a noção mesma de competição pelo poder estará, então, eliminada. Até o momento, as democracias populares têm adotado o sistema unipartidário, apesar de que já se pode notar um movimento favorável ao pluripartidarismo, em alguns desses países.

Por outro lado, a democracia liberal clássica conhece hoje um processo de incorporação de determinados preceitos da democracia social, com o poder estatal intervindo mais e mais na vida dos indivíduos com o objetivo de assegurar, por exemplo, o acesso a instituições de saúde pública.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

AYMARD, A. e AUBOYER, J. História geral das civilizações – O Oriente e a Grécia (II). Difusão editorial S.A.

ENCICLOPÉDIA MIRADOR NTERNACIONAL. Encyclopedia Britannica do Brasil Publicações LTDA. v. VII, p. 3200 – 3201.

ENCICLOPÉDIA LAROUSSE CULTURAL. Nova Cultural LTDA. v. VIII, p. 1812.

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