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quarta-feira, novembro 20, 2024

HERÁCLITO DE ÉFESO

“Para Deus tudo é belo e bom e justo; os homens, contudo, julgam umas coisas injustas e outras justas.”

As palavras de Heráclito vêm provocando debates acirrados há vinte e seis séculos. Muito se discutiu sobre ele entre já entre os gregos e romanos, mais tarde foi tema de debates entre cristãos e muçulmanos e na filosofia moderna e contemporânea ressurge sempre de tempos em tempos com renovado interesse. De sua Obra só conhecemos pouco mais de uma centena de frases, os aforismo sempre citados em pelos mais diversos autores a partir de uma das muitas coletâneas que se fizeram.

Aqueles fragmentos de Heráclito são aforismos, frases definitivas, cortantes, frente às quais ninguém passa impunemente. Não provém de um texto único. Já nasceram na forma de aforismos que, por causa de sua natureza oracular, sibilina, granjearam a seu Autor a fama de “obscuro”.

O pensamento aforismático não oculta nem revela a plenitude do saber do pensador. Limita-se a indicá-lo e cabe a quem interpreta buscar-lhe a compreensão.

Como sinais, os aforismos de Heráclito não revelam nem ocultam seu pensar, mas o indica por sinais fulgurantes. Obscuro ou luminoso, de acordo com a perspectiva que se adote, trazem uma reflexão nova a partir de uma nova perspectiva, a do fogo.

O que equivale, guardadas as devidas proporções, à nossa Tabela Periódica de Elementos Químicos, entre os gregos reduz-se a quatro grandes princípios originais: fogo, água, ar, terra. Para os mais conservadores, a terra, é o primeiro princípio. Para aqueles que se adaptam às circunstâncias, é a água. Para os suaves é o ar. Para Heráclito e todos os revolucionários é o fogo.

Tudo é feito pelo fogo e tudo se dissipa no fogo. Tudo está submetido ao destino. O movimento – o devenir perpétuo – determina toda a harmonia do mundo.

O fogo eternamente vivo

“Este mundo, que é o mesmo para todos, nenhum dos deuses ou dos homens o fez; mas foi sempre, é e será um fogo eternamente vivo, que se acende com medida e se apaga com medida” – nessa frase muitos vêem uma das chaves para a decifração do pensamento de Heráclito de Éfeso, que já na Antiguidade tornou-se conhecido como “o Obscuro”.

De sua vida muito pouco se sabe com certeza. Nascido em Éfeso, colônia grega da Ásia Menor, teria atingido o auge de sua produtividade por ocasião da 69ª Olimpíada (504 – 501 a.C.). Pertencia à família real de sua cidade e conta-se que teria renunciado à dignidade de se tornar rei em favor de seu irmão. A obra que deixou está constituída por uma série de frases isoladas, durante muito tempo consideradas como fragmentos de um suposto texto original; posteriormente, a crítica filosófica reconheceu que se tratava, na verdade, de aforismos. Modernamente, a seqüência desses aforismos é apresentada segundo duas numerações: a inglesa, devida a Bywater, ou a alemã, de Diels.

A apresentação aforismática de seu pensamento e o estilo intencionalmente sibilino fazem de Heráclito um dos pensadores pré-socráticos de mais difícil interpretação. Natural, portanto, que a história da filosofia apresente uma sucessão de versões de seu pensamento, dependentes sempre da perspectiva assumida pelo próprio intérprete.

Para a solução do “problema heraclítico” dois pontos parecem oferecer bases mais seguras: a) o confronto das proposições de Heráclito com seu contexto cultural (o que o próprio filósofo parece indicar, na medida em que se apresenta como crítico implacável de idéias e personagens de sua época ou da tradição cultural grega); b) o estilo de Heráclito, que revela um uso peculiar da linguagem.

Se há aforismos de Heráclito que não manifestam obscuridade são justamente os de cunho crítico. Aristocrata, Heráclito não afirma apenas que “um só é dez mil para mim, se é o melhor”, como também faz acerbas acusações à mentalidade vulgar desses homens que “não sabem o que fazem quando estão despertos, do mesmo modo que esquecem o que fazem durante o sono”. A religiosidade popular é também por ele vergastada: “Os mistérios praticados entre os homens são mistérios profanos”. E explica: “É em vão que eles se purificam sujando-se de sangue, como um homem que tivesse andado na lama e quisesse lavar os pés na lama…” Nem mesmo alguns dos nomes mais reverenciados na época são poupados: “O fato de aprender muitas coisas não instrui a inteligência; do contrário teria instruído Hesíodo e Pitágoras, do mesmo modo que Xenófanes e Hecateu”. Noutro aforismo Pitágoras é acusado de possuir uma polimatia (conhecimento de muitas coisas) que não passava de uma “arte de maldade”, enquanto Hesíodo, “o mestre da maioria dos homens, os homens pensam que ele sabia muitas coisas, ele que não conhecia o dia ou a noite”. Nem Homero escapa: “Homero errou em dizer: ‘Possa a discórdia se extinguir entre os deuses e os homens!’ Ele não via que suplicava pela destruição do universo; porque, se sua prece fosse atendida, todas as coisas pereceriam…”.

Em meio a tantas críticas, Heráclito abre, entretanto, uma exceção: para a Sibila, “que com seus lábios delirantes diz coisas sem alegria, sem ornatos e sem perfume”, mas que atinge com sua voz para além de mil anos, graças ao deus que está nela. Percebe-se, dessa maneira, que a adoção do estilo oracular é intencional em Heráclito, que nele encontra a via adequada – indireta, sugestiva – para comunicar seu pensamento: “O mestre a que pertence o oráculo de Delfos não exprime nem oculta seu pensamento, mas o faz ver através de um sinal”. O exemplo do deus de Delfos e da Sibila parece mostrar a Heráclito a diferença que separa as palavras do pensamento (logos), a mesma que distancia a inteligência privada – o “sono” em que está imersa a mentalidade vulgar – da inteligência comum, a “vigília” daquele que se eleva acima dos muitos conhecimentos e reconhece “que todas as coisas são Um”.

A unidade dos opostos

O que diz o Logos, do qual Heráclito se faz o anunciador e em nome do qual condena o torpor da multidão ou a polimatia dos supostos sábios, é isto: a unidade fundamental de todas as coisas. Essa é “a natureza que gosta de se ocultar”. Mas a noção de unidade fundamental, subjacente à multiplicidade aparente, já estava expressa pelo menos desde Anaximandro de Mileto. A novidade trazida por Heráclito – e que lhe permite julgar tão duramente seus antecessores e contemporâneos – está, na verdade, em considerar aquela unidade como uma unidade de tensões opostas. Esta teria sido sua grande descoberta: existe uma harmonia oculta das forças opostas, “como a do arco e da lira”. A Razão (Logos) consistiria precisamente na unidade profunda que as oposições aparentes ocultam e sugerem: os contrários, em todos os níveis da realidade, seriam aspectos inerentes a essa unidade. Não se trata, pois, de opor o Um ao Múltiplo, como Xenófanes e o eleatismo: o Um penetra o Múltiplo e a multiplicidade é apenas uma forma da unidade, ou melhor, a própria unidade. Daí a insuficiência do uso corrente das palavras: somente o logos (razão-discurso) do filósofo consegue apreender e formular – não ao ouvido mas ao espírito, não diretamente mas por via de sugestões sibilinas – aquela simultaneidade do múltiplo (mostrado pelos sentidos) e da unidade fundamental (descortinada pela inteligência desperta, em “vigília”).

Proclama Heráclito: “É sábio escutar não a mim, mas a meu discurso (logos), e confessar que todas as coisas são Um”. O Logos seria a unidade nas mudanças e nas tensões, a reger todos os planos da realidade: o físico, o biológico, o psicológico, o político, o moral. É a unidade nas transformações: “Deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, superabundância-fome; mas ele assume formas variadas, do mesmo modo que o fogo, quando misturado a arômatas, é denominado segundo os perfumes de cada um deles”. Por isso Homero errara em pedir que cessasse a discórdia entre os deuses e os homens: “O que varia está de acordo consigo mesmo”. A harmonia não é aquela que Pitágoras propunha, de supremacia do Um, nem a verdadeira justiça é a que Anaximandro havia concebido, ou seja, a extinção dos conflitos e das tensões através da compensação dos excessos de cada qualidade-substância em relação a seu oposto. A justiça não significa apaziguamento; pelo contrário, “o conflito é o pai de todas as coisas: de alguns faz homens; de alguns, escravos; de alguns, homens livres”. Mas ver a realidade como fundamentalmente uma tensão de opostos não significa necessariamente optar pela guerra, no plano político; “guerra”, neste último sentido, é apenas um dos pólos de uma tensão permanente (“Deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz…”). E essa tensão, que constitui a verdadeira harmonia, necessita, para perdurar, de ambos os opostos.

Numa série de aforismos, Heráclito enfatiza o caráter mutável da realidade, repetindo uma tese que já surgira nos mitos arcaicos e, com dimensão filosófica, desde os milesianos. Mas em Heráclito a noção de fluxo universal torna-se um mote insistentemente glosado: “Tu não podes descer duas vezes no mesmo rio, porque novas águas correm sempre sobre ti”. O império do Logos em sua feição física aparece então como as transformações do fogo, que são “em primeiro lugar, mar; e a metade do mar é terra e a outra metade vento turbilhonante”. O Logos-Fogo exerce uma função de racionalização nas trocas substanciais análoga à que a moeda vinha desempenhando na Grécia, desde o século VII: “Todas as coisas são trocadas em fogo e o fogo se troca em todas as coisas, como as mercadorias se trocam por ouro e o ouro é trocado por mercadorias”. Todavia, as transformações que integram o fluxo universal não significam desgoverno e desordem; elo contrário, o Logos-Fogo é também Razão universal e, por isso, impõe medida ao fluxo: “Este mundo (…) foi sempre, é e será sempre um fogo eternamente vivo, que se acende com medida e se apaga com medida”. A regularidade e a medida são garantidas pela simultaneidade dos dois caminhos de transformação que compõem o fluxo universal: é ao mesmo tempo que ocorre a troca do fogo em todas as coisas e de todas as coisas em fogo, pois “o caminho para o alto e o caminho para baixo são um e o mesmo”. Isso permite então afirmar: “…e a, metade do mar é terra, a metade vento turbilhonante”. Assim, o que garante a tensão intrínseca às coisas é aquilo mesmo que as sustenta: a medida imposta pelo Logos, essa “harmonia oculta” que “vale mais que harmonia aberta”.

A consciência da fugacidade das coisas gera uma nota de pessimismo que atravessa o pensamento de Heráclito: “O homem é acendido e apagado como uma luz no meio da noite”. Mas o pessimismo advém, sobretudo, de reconhecer o torpor em que vive a maioria dos homens, ignorantes da lei universal que tudo rege. Por isso, o discurso (logos) do filosofo, embora pretendendo ser a manifestação da Razão universal (Logos), exprime-se como um solitário mono-logos, acima dos homens comuns, “esses loucos que quando ouvem são como surdos”.

“Pré”-socráticos?

Desgraçadamente a filosofia ocidental fez consagrar esta denominação absurda, como se todo o pensamento anterior tendesse a Sócrates, Platão e Aristóteles – de resto, gigantes da sabedoria universal – o que não é fato. Dentre os considerados pejorativamente “pré”-socráticos há muitos que, como Heráclito, seguem caminho totalmente diversos e até mesmo contemporâneos de Sócrates, evidenciando a ilogicidade do epíteto a eles apodado injustamente.

Maquiavel informa que, em todos os nossos empreendimentos, dependemos em 50% da “virtù” e, em 50% da fortuna, ou seja, da pura sorte. Sócrates encontrou em Platão um digno seguidor que encontrou em Aristóteles um seguidor e aperfeiçoador. O mesmo não se pode dizer de outros pensadores como Heráclito, cujo pensamento fica obscuro, mal interpretado e vilipendiado até praticamente ser redescoberto no século XIX por dois gigantes do pensamento ocidental: Hegel e Nietzsche.

Platão ministrava suas prédicas nos jardins de Academo, vindo daí o nome “academia”. Aristóteles passeava com seus discípulos por um terreno próximo ao templo de Apolo Lyceo, o “bosque dos lobos”. Daí a denominação “Liceu”. Que o ocidente esteja polvilhado de academias e liceus é claro índice de uma vitória histórica de uma certa vertente da filosofia. Apenas para comparararmos, o “Jardim”, proposta revolucionária de Epicuro, está hoje reduzido (e se reduzindo cada vez mais) à educação infantil…

Ao contrário de se constituir em mera denominação cronológica, a expressão “pré”-socrático traz consigo pesada gama de preconceito e valoração. Como se todo o pensamento multifacético da Grécia clássica anterior – e mesmo contemporâneo! – a Sócrates e Platão teriam sido pensadores menores, míseros precursores de um pensamento mais sofisticado…

Não é uma denominação ingênua. É um problema político da maior gravidade empacotar no mesmo balaio expoentes das mais diversas áreas, gente de brilho ímpar como Parmênides, Zenão, Empédocles, Anaxágoras e mesmo gênios como Demócrito e os sofistas que eram contemporâneos de Sócrates! Não! Estes filósofos só mesmo por elevada má-fé calculada poderia ser considerados “pré”-socráticos.

Com tal estratégia política, por quase vinte séculos se obscureceu quase a ponto da perda total, conceitos fundamentais do período inaugural da filosofia grega que, ou foram solenemente sepultados ou mal digeridos por Sócrates e seus seguidores… Conceitos como “Dialética”, “Physis”, “Logos”, “Aletheia”… Perderam-se muitos caminhos recém-inaugurados e constitui árdua tarefa da filosofia moderna resgatar aqueles valores em busca até mesmo da superação deste mundo unidimensional em que nos enfiou, em última análise, o escolasticismo.

Deformando o pensamento de Heráclito

As teses dos primeiros pensadores que não foram aceitas por Platão ou foram descartadas por Aristóteles caíram no esquecimento ou sofreram contínuas perseguições. Os atomistas, desprezados por Platão, que contra eles moveu uma campanha de silêncio, só foram resgatados pelos Renascentistas. Os sofistas, contra os quais Platão moveu cerrada luta, passaram à posteridade – mesmo os de estatura de Górgias e Protágoras – como mestres falaciosos, criadores de raciocínios falsos com aparência de verdadeiros (sofismas). Desta má fama, somente o século XX começou a libertá-los…

Com relação a Heráclito a situação é a inda mais grave! Platão pensa conhecer-lhe o pensamento e chega mesmo a adotar o que julga serem algumas de suas teses. Desde jovem, teve como tutor um mestre chamado Crátilo, que se auto-proclamava heracliteano. Esse mau discípulo transmitiu a Platão um Heráclito distorcido e amputado de seu centro: as sentenças sobre o Logos, que falam sobre o pensamento, a palavra, o conhecimento, a sabedoria, a linguagem…

Crátilo ensinou a Platão que, segundo Heráclito, todos os objetos sensíveis estão em constante fluxo, em devenir perpétuo, transformando-se continuamente (o que confere com o pensamento original) mas que não é possível haver conhecimento de tais entes (o que é um absurdo!). Crátilo aceita de Heráclito o mobilismo mas, diante da sentença “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”, com que Heráclito aponta o constante fluir de todos os entes, Crátilo deduz ser impossível entrar no rio sequer uma única vez! E ainda acrescentava que, devido à rapidez com que tudo se transforma, o conhecimento era impossível, nada se podia saber, nada se podia afirmar… Se Crátilo fosse pouca coisa mais honesto intelectualmente e coerente com a sua concepção, teria permanecido calado e, com isso, proporcionado um grande bem à história da filosofia…

Resgatando Heráclito de Éfeso!

Por muitos séculos um Heráclito mal interpretado por Crátilo e Platão – além da confusão com a expressão “dialética” – grassou soberano em toda a filosofia ocidental. Foi somente na virada do século XIX para o XX que Hermann Diels, um importante helenista, elaborou intenso e extenso estudo filológico reunindo grande documentação de que resultou a publicação dos “Fragmentos dos Pré-Socráticos”. Graças ao trabalho de Diels, dispomos hoje de muito mais fonte de estudos desta temática, uma vez que os estudos outrora dispersos e não sistematizados, agora são encontrados em sua obra monumental.

Antes de Diels, Friedrich Nietzsche, notável filólogo e filósofo, percebeu ao ler os aforismos de Heráclito, o quanto o predomínio do escolasticismo e da racionalidade platônico-aristotélica haviam traído, durante séculos, a originalidade do pensador de Éfeso.

Já Hegel, em suas preleções sobre a História da Filosofia, afirmava não existir uma única frase de Heráclito que ele não incorporou em sua Lógica.

A seguirmos a linha de raciocínio de Hegel, Crátilo cometeu um erro crasso ao julgar e divulgar que Heráclito considerava impossível o conhecimento.

De fato, se Heráclito houvesse dito que não há conhecimento de um mundo que constantemente se transforma, se não tivesse, pelo contrário, afirmado que as transformações se dão segundo medidas e que está ao alcance do homem captar os modos das transformações, não teria despertado o interesse de Hegel. Conceder à razão a possibilidade de conhecer o que se transforma é conceber uma racionalidade também dinâmica. O que Hegel mais admirou em Heráclito foi ter pensado, antes dele, essa possibilidade…

Os Aforismos

Penetremos um pouco mais no universo de Heráclito. Segue um grupo de fragmentos, oriundo da compilação feita magistralmente por Gerd Bornheim, mas cuja disposição original se perdeu. Podemos dispô-las diversamente, construindo um mosaico cada vez mais variado de pensamentos.

1) Os asnos preferem palha ao ouro.

2) Este Logos, os homens, antes ou depois de o haverem ouvido, jamais o compreendem. Ainda que tudo aconteça conforme este Logos, parece não terem experiência experimentando-se em tais palavras e obras, como eu as exponho, distinguindo-se em tais palavras e obras, como eu as exponho, distinguindo e explicando a natureza de cada coisa. Os outros homens ignoram o que fazem em estado de vigília, assim como esquecem o que fazem durante o sono.

3) Por isso, o comum deve ser seguido. Mas, a despeito de o Logos ser comum a todos, o vulgo vive como se cada um tivesse um entendimento particular.

4) (O Sol tem) a largura de um pé humano.

5) Se a felicidade consistisse nos prazeres do corpo, deveríamos proclamar felizes os bois, quando encontram ervilhas para comer.

6) Em vão procuram purificar-se, manchando-se com novo sangue de vítimas, como se, sujos com lama, quisessem lavar-se com lama. E louco seria considerado se alguém o descobrisse agindo assim. Dirigem também suas orações a estátuas, como se fosse possível conversar com edifícios, ignorando o que sejam os deuses e os heróis.

7) (O Sol é) novo todos os dias.

8) Se todas as coisas se tornassem fumaça, conhecer-se-ia com as narinas.

9) Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia.

10) Correlações: completo e incompleto, concorde e discorde, harmonia e desarmonia, e de todas as coisas, um, e de um, todas as coisas.

11) Tudo o que rasteja é custodiado pelos golpes (divinos).

12) Para os que entram nos mesmos rios, correm outras e novas águas. Mas também almas são exaladas do úmido.

13) (Os porcos) alegram-se na lama (mais do que na água limpa).

14) (A quem profetiza Heráclito?) Aos noctívagos, aos magos, às bacantes, às mênades e aos mistas. (A estes ameaça com o castigo após a morte, a estes profetiza o fogo). Pois o que os homens chamam mistérios (…).

15) Não fossem para Dionísio as pompas organizadas, com cantos fálicos, seriam os atos mais vergonhosos; o mesmo é, contudo, Hades e Dionísio, pelo qual deliram e festejam as Lenéas.

16) Quem se poderá esconder da (luz) que nunca se deita?

17) Muitos não entendem estas coisas, mesmo as encontrando em seu caminho, e não as entendem quando ensinados; mas pensam saber.

18) Se não tiveres esperança, não encontrarás o inesperado, pois não é encontradiço e é inacessível.

19) Homens que não sabem escutar nem falar.

20) (Heráclito parece considerar o nascimento uma infelicidade ao dizer:) Desde que nasceram querem viver e sofrer sua sorte mortal – ou antes descansar –, e deixam filhos para haver outras sortes mortais.

21) Morto é tudo o que nós vemos acordados; sonho, tudo o que nós vemos dormindo.

22) Os que procuram ouro, cavam em muita terra e pouco encontram.

23) Não houvesse isso (a injustiça) ignorariam o próprio nome de justiça.

24) Deuses e homens honram os caídos em combate.

25) Quanto maior for a morte, maiores os destinos.

26) O homem, na noite, acende a si mesmo uma luz, quando a lua dos seus olhos se apaga. Vivo, toca na morte, quando adormecido; acordado, toca os que dormem.

27) O que aguarda os homens após a morte, não é nem o que esperam nem o que imaginam.

28) Apenas a probabilidade é o que mais estimado conhece e guarda. Mas a Justiça saberá ocupar-se dos que tramam mentiras e de seus testemunhos.

29) Uma coisa preferem os melhores a tudo: a glória eterna às coisas perecíveis; mas a massa empanturra-se como o gado.

30) Este mundo, igual para todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez; sempre foi, é e será um fogo eternamente vivo, acendendo-se e apagando-se conforme a medida.

31) As transformações do fogo: primeiro o mar; e a metade do mar é a terra, a outra metade o vento quente. A terra dilui-se em mar, e esta recebe a sua medida segundo a mesmo lei, tal como era antes de se tornar terra.

32) O Uno, o único sábio, recusa e aceita ser chamado pelo nome de Zeus.

33) Lei é também obedecer à vontade de um só.

34) Também quando ouvem não compreendem, são como mudos. Justificam o provérbio: presentes, estão ausentes.

35) De muitas coisas devem homens amantes da sabedoria estar avisados.

36) Para as almas, morrer é transformar-se em água; para a água, morrer é transformar-se em terra. Da terra, contudo, forma-se a água, e da água a alma.

37) Porcos banham-se na lama, pássaros no pó e na cinza.

38) (Tales, segundo alguns), foi o primeiro a pesquisar os astros… (Também Heráclito e Demócrito são disto testemunhas).

39) Em Priene viveu Bias, filho de Teutanes, cuja fama é maior que a dos outros.

40) A polimatia não instrui a inteligência. Não fosse assim teria instruído Hesíodo e Pitágoras, Xonófanes e Hecateu.

41) Só uma coisa é sábia: conhecer o pensamento que governa tudo através de tudo.

42) Homero deveria ser expulso dos jogos públicos e ser castigado. Também Arquíloco.

43) Melhor apagar a desmedida que um incêndio.

44) O povo deve lutar por sua lei como pelas muralhas.

45) Mesmo percorrendo todos os caminhos, jamais encontrarás os limites da alma, tão profundo é o seu Logos.

46) (Chamava a) presunção, doença sagrada (e a vista, enganadora).

47) Não devemos julgar apressadamente as grandes coisas.

48) O arco tem por nome a vida, e por obra a morte.

49) Um vale aos meus olhos dez mil, se é o melhor.

49a) Descemos e não descemos nos mesmos rios; somos e não somos.

50) (Heráclito afirma a unidade de todas as coisas: do separado e do não separado, do gerado e do não gerado, do mortal e do imortal, do Logos e do eterno, do pai e do filho, de Deus e da injustiça). É sábio que os que ouviram, não a mim, mas ao Logos, reconheçam que todas as coisas são um.

51) Eles não compreendem como, separando-se podem harmonizar-se: harmonia de forças contrárias, como o arco e a lira.

52) O tempo é uma criança que brinca, movendo as pedras do jogo para lá e para cá; governo de criança.

53) A guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei; de uns fez deuses, de outros, homens; de uns, escravos, de outros, homens livres.

54) A harmonia invisível é mais forte que a visível.

55) Prefiro tudo aquilo que se pode ver, ouvir e entender.

56) Os homens se enganam no conhecimento das coisas visíveis, como Homero, o mais sábio dos helenos. Pois também àqueles enganavam os jovens, quando catavam piolhos e diziam: tudo o que vimos e pegamos, nós abandonamos; tudo o que não vimos nem pegamos, levamos conosco.

57) A maioria tem por mestre Hesíodo. Estão convictos ser o que mais sabe – ele, que nem sabia distinguir o dia da noite. Pois é uma e a mesma coisa.

58) (Bem e mal são uma e a mesma coisa). Os médicos cortam, queimam (torturam de todos os modos os doentes, exigem) um salário, ainda que nada mereçam, fazendo(lhes) um bem semelhante (à doença).

59) O caminho da espiral sem fim é reto e curvo, é um e o mesmo.

60) O caminho para baixo e o caminho para cima é um e o mesmo.

61) O mar: a água mais pura e a mais abominável: aos peixes, potável e saudável; aos homens, impotável e prejudicial.

62) Imortais, mortais; mortais, imortais. A vida destes é a morte daqueles e a vida daqueles a morte destes.

63) Diante dele (Deus), levantam-se, e despertam vigias dos vivos e dos mortos.

64) O relâmpago governa o universo.

65) (Fogo:) carência e abundância.

66) Pois tudo o fogo, aproximando-se, julgará (e condenará).

67) Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, abundância e fome. Mas toma formas variadas, assim como o fogo, quando misturado com essências, toma o nome segundo o perfume de cada uma delas.

67a) Assim como a aranha, instalada no centro de sua teia, sente quando uma mosca rompe algum fio (da teia) e por isso acorre rapidamente, quase aflita pelo rompimento do fio, assim a alma do homem, ferida alguma parte do corpo, apressadamente acode, quase indignada pela lesão do corpo, ao qual está ligada firme e harmoniosamente.

70) (Dizia que as opiniões dos homens são) jogos de crianças.

71) (Devemos lembrar-nos também do homem) que esquece para onde leva o caminho.

72) Sobre o Logos, com o qual estão em constante relação (e que governa todas as coisas), estão em desacordo, e as coisas que encontram todos os dias lhes parecem estranhas.

73) Não se deve agir nem falar como os que dormem.

75) Os adormecidos, (chama Heráclito, creio eu,) operários e colaboradores nos acontecimentos do cosmos.

76) O fogo vive a morte da terra e o ar vive a morte do fogo; a água vive a morte do ar e a terra a da água.

77) Tornar-se úmidas, para as almas, é prazer ou morte. (O prazer consiste no início da vida. E em outro lugar diz:) Nós vivemos a morte delas (das almas) e eles vivem a nossa morte.

78) O espírito do homem não tem conhecimentos, mas o divino tem.

79) O homem é infantil frente à divindade, assim como a criança frente ao homem.

80) É necessário saber que a guerra é o comum; é a justiça, discórdia; e que tudo acontece segundo discórdia e necessidade.

81) Pitágoras ancestral dos charlatães.

82) O mais belo símio é feio comparado ao homem.

83) O mais sábio dos homens, comparado a Deus, parecer-se-á um símio, em sabedoria, beleza e todo o resto.

84a) Movendo-se, descansa (o fogo etéreo do corpo humano).

84b) É cansativo servir e obedecer sempre aos mesmos (senhores).

85) Lutar contra os desejos é difícil. Pois o que exige, compra a alma.

86) (Grande parte do divino) subtrai-se ao conhecimento, por falta de confiança.

87) Um homem tolo assusta-se a cada palavra.

88) Em nós, manifesta-se sempre uma e a mesma coisa: vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice. Pois a mudança de um dá o outro e reciprocamente.

89) Para aqueles que estão em estado de vigília, há um mundo único e comum.

90) O fogo se transforma em todas as coisas e todas as coisas se transformam em fogo, assim como se trocam as mercadorias por ouro e o ouro por mercadorias.

91) Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Dispersa-se, reúne-se; avança e se retira.

92) A Sibila, que com boca delirante, pronuncia palavras ásperas, secas e sem artifícios, (fazendo-as ressoar durante mil anos). Pois o Deus a inspira.

93) O senhor, cujo oráculo está em Delfos, não fala nem esconde: ele indica.

94) O Sol não ultrapassará os seus limites; se isto acontecer, as Eríneas, auxiliares da Justiça, saberão descobri-lo.

95) Melhor é dissimular sua ignorância. (Isto é difícil no desenfreio e ao beber).

96) Os cadáveres deveriam ser lançados fora como estrume.

97) Os cães ladram àqueles que não conhecem.

98) As almas aspiram o aroma no Hades.

99) Não houvesse o Sol, seria noite, a despeito das demais estrelas.

100) (…) o tempo próprio, que traz todas as coisas.

101) Eu me procurei a mim próprio.

101a) Os olhos são testemunhos mais agudos que os ouvidos.

102) Para Deus tudo é belo e bom e justo; os homens, contudo, julgam umas coisas injustas e outras justas.

103) Na circunferência, o princípio e o fim se confundem.

104) Qual é o seu espírito ou o seu entendimento? Acreditam nos cantores de rua e seu mestre á a massa, pois isto não sabem: “A maioria é má e poucos são os bons.”

106) (Heráclito censura Hesíodo por considerar uns dias bons e outros maus). Por ignorar que a natureza de cada dia é uma e a mesma.

107) Maus testemunhos para os homens são os olhos e os ouvidos, se suas almas são bárbaras.

108) De quantos ouvi as palavras, nenhum chegou a compreender que a sabedoria é distinta de todas as coisas.

110) Não seria melhor para os homens, se lhes acontecesse tudo o que desejam.

111) A doença torna a saúde agradável; o mal, o bem; a fome, a saciedade; a fadiga, o repouso.

112) O bem pensar é a mais alta virtude; e a sabedoria consiste em dizer a verdade e em agir conforme a natureza, ouvindo a sua voz.

113) O pensamento é comum a todos.

114) Os que falam com inteligência devem apoiar-se sobre o comum a todos, como uma cidade sobre as suas leis, e mesmo muito mais. Pois todas as leis humanas nutrem-se de uma única lei divina. Esta domina, tanto quanto quer; basta a todos (e a tudo) e ainda os ultrapassa.

115) À alma pertence o Logos, que se aumenta a si próprio.

116) A todos os homens é permitido o conhecimento de si mesmos e o pensamento correto.

117) O homem ébrio titubeia e se deixa conduzir por uma criança, sem saber para onde vai; pois úmida está a sua alma.

118) Brilho seco: alma mais sábia e melhor.

119) O caráter é o destino (daimon) de cada homem.

120) Términos da aurora e da noite: a Ursa e, ao lado oposto à Ursa, o Guardião de Zeus, resplandecente.

121) Os efésios deveriam todos enforcar-se, e suas crianças deveriam abandonar a cidade, pois expulsaram a Hermodoro, o mais valoroso dentre eles, dizendo: “Ninguém dentre nós deve ser o mais valoroso; senão, (que viva) em outro lugar e com outros”.

123) A natureza ama esconder-se.

124) A mais bela harmonia cósmica é semelhante a um monte de coisas atiradas.

125) Mesmo uma bebida se decompõe, se não for agitada.

125a) Que vossa riqueza, efésios, jamais se esgote, para que se manifeste a vossa maldade.

126) O frio torna-se quente, o quente frio, o úmido seco e o seco úmido.

Lázaro Curvêlo Chaves – 1º de dezembro de 2004

Bibliografia:

Heráclito, o Pensador do Logos – Orsely Guimarães – Cadernos do ICHF – julho de 1989
Os Filósofos Pré-Socráticos – Gerd Borheim (org.) – Ed. Cultrix
Pré-Socráticos – Coleção “Os Pensadores” – Abril Cultural

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