A independência de Kosovo se baseia mais na força de quem a apóia do que nos códigos
Há casos em que a política tem o “direito” de atuar contra o direito? Kosovo é um deles? Direito e sanção são irmãos siameses. Os jurisconsultos da antiga Roma já tinham o conceito muito claro, não duvidavam de que um direito, sem força suficiente para aplicá-lo e protegê-lo, não pode ir muito longe.
Naturalmente, o conceito continua vigente e aparece com freqüência em sua crua dureza no tabuleiro internacional, onde a aplicação do direito está totalmente condicionada a que seja defendido por algumas potências. A legalidade só pode se afirmar onde sua irmã sanção -a força incontestável- esteja disposta a acompanhá-la. Assim, os Estados nascem ou não dependendo de se obter uma massa crítica de poder a favor ou não. O direito internacional pode acompanhar. Ou não.
A recente declaração de independência de Kosovo, e seu rápido reconhecimento por parte dos EUA e das principais potências européias, põe outra vez sobre a mesa, segundo muitos juristas e analistas, o cadáver da legalidade internacional atropelada pela vontade dos países com músculo e que não temem as sanções -porque eles mesmos são os únicos em grau de ameaçar com uma sanção. Mas o caso de Kosovo é verdadeiramente uma violação? E, se assim fosse, é ruim em si que a política atue contra o direito? Ou há casos nos quais, diante da impotência do ordenamento, é moralmente legítimo violar o direito?
Kosovo é, em muitos aspectos, um caso de livro. “Na minha opinião, trata-se do péssimo epílogo de um assunto -como o balcânico- pessimamente administrado pelas potências ocidentais”, responde Giovanni Sartori, cientista político e professor emérito da Universidade Columbia em Nova York. “Podemos começar dizendo que a base legal da independência é no mínimo frágil. Mas não me preocupa tanto que a política atropele o direito: sempre foi assim. A força do direito nas relações internacionais é próxima de nula. Também não me preocupa a falta de coerência dos mandatários: o que me preocupa é a falta de inteligência”, diz Sartori, prêmio Príncipe de Astúrias.
Enquanto ele falava de Roma, em Belgrado ardia a embaixada americana e se congelava a relação com Bruxelas. Na véspera, Felipe González havia assumido publicamente uma posição parecida: o caso Kosovo é uma “semente terrível e ilegal”. O sentido é claro: “cada minoria que seja maioria em um pequeno pedaço do território vai querer ser independente da maioria”.
Anthony Clark Arend, diretor do Instituto de Direito Internacional da Universidade de Georgetown, em Washington, também considera que a independência de Kosovo não está amparada pelo direito. “Não creio que no caso kosovar se possa justificar a secessão com base no direito de autodeterminação dos povos”, conclui, depois de uma elaborada argumentação jurídica. “Inclusive aceitando a idéia de que são um povo, em seu caso creio que a autodeterminação legítima é interna, só pode se traduzir em uma justa representação e certo grau de autonomia dentro do Estado sérvio”, que atualmente é democrático e não-violento. “Mais além dos princípios”, prossegue Arend, “a resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU é muito clara quando diz que a solução política para a crise de Kosovo deve ser buscada respeitando os princípios de soberania e integridade territorial. Então, sinceramente, me parece que neste caso os argumentos jurídicos estão em segundo plano.” Mais uma vez.
Mas isso é ruim em si? Ou os argumentos não-jurídicos, por exemplo morais, podem autorizar a política a ir além ou até contra o direito? “Política e direito estão muitas vezes em antítese no cenário internacional”, reflete Ignacio Molina, principal pesquisador de Europa no Real Instituto Elcano de estudos estratégicos. “Mas eu rejeito a equação política = mal / direito = bem. É plana demais, é preciso matizá-la. O direito internacional é, por natureza, um sistema limitado, imperfeito. A política pode e deve chegar aonde esse direito não chega.” “A supremacia da política pode causar atropelos”, prossegue, “porque não tem como fundamento necessário a justiça, mas também pode consertar situações, como ocorreu em 1999, quando a Otan interveio em ajuda dos kosovares golpeados sem o amparo de uma resolução do Conselho de Segurança. Estou de acordo que em Kosovo se agiu contra o direito, mas em vez de levantar só um grito ao céu creio que é preciso analisar a substância do ato além de sua legalidade.” Sartori recorre ao mais cru realismo: “No fundo, o que mais importa é a inteligência do ato”. Em todo caso, o direito, mesmo que atropelado, nunca morre de tudo. No caso de Kosovo pode ressuscitar em forma de precedente. “Por mais que se saliente que é um caso único, não deixa de ser um caso”, aponta Arend.
Muitos Estados nasceram nos últimos 20 anos. A dissolução da URSS em 1991 deu vida a cerca de 15 novos países. Mas o desmembramento foi praticamente consensual, e além disso a Constituição da União Soviética previa a possibilidade de separação das repúblicas federadas. A divisão da Checoslováquia também foi consensual. A iugoslava não foi, mas os territórios que foram se separando eram repúblicas federadas. Kosovo, em troca, era -é?- uma província da Sérvia. Isso faz dele um precedente explosivo -ou semente terrível.
“É indiscutível que, juridicamente, Kosovo era uma província. Mas por que o era? Porque os kosovares eram cidadãos de segunda na Iugoslávia”, raciocina Molina, do Instituto Elcano. “Por coesão étnica, religiosa, cultural e territorial, tinham provavelmente tanto direito ou mais que as outras de ser uma república. Mas, por uma afronta política, não lhes outorgaram o estatuto e inclusive Milosevic retirou a autonomia limitada que Kosovo tinha nos anos 1980. Por isso hoje são juridicamente um caso diferente dos demais. Eu não desprezo o valor do direito da antiga Iugoslávia ou da antiga URSS, mas também não posso magnificá-lo.”
Mais uma vez a dicotomia política-direito. A distância hierárquica estabelecida na ex-URSS entre repúblicas e províncias também desembocou em um abismo cheio de conflitos e mortes. Enquanto as repúblicas se separaram sem violência, províncias e outras entidades territoriais ficaram como estavam, às vezes nadando em sangue. Ali estão as tensões da Chechênia, Abcázia, Ossétia do Sul, Nagorno-Karabak, Transdniester. Mas não só é discutível o direito dos Estados totalitários. Alguns juristas observam que o direito internacional tampouco é uma ferramenta perfeitamente eficaz e imparcial em questões de independência, porque é basicamente um direito de Estados soberanos, aplicado fundamentalmente em uma assembléia de Estados soberanos. Não é estranho que seus princípios sejam restritivos em matéria de secessões. Isso não impede que possam saltar indignados quando convém, observam os cínicos. “É interessante notar como tanto no caso de Kosovo como no do Iraque as potências políticas tentaram revestir de uma aura de legalidade as evidentes violações cometidas”, comenta Antonio Remiro, catedrático de direito internacional na Universidade Autônoma de Madri. “As declarações da UE na última segunda-feira são juridicamente grotescas, com suas referências ao respeito de princípios na realidade violados ativa e passivamente. Mas nota-se a vontade de se proteger.” A política nua talvez seja uma visão forte demais para os estômagos da opinião pública.
“A violação não sai totalmente grátis, não só em termos midiáticos como também jurídicos”, prossegue Remiro. “Não o vão fazer, mas ‘sic stantibus rebus’ (do jeito que estão as coisas), uma ação militar sérvia em Kosovo não seria uma agressão ilegítima. Como não o é a ação russa na Chechênia. Ali o que ocorre é que houve tremendos crimes de guerra, mas a ação militar em si não é ilegítima.”
O duplo critério da política naturalmente gera raiva, tensões. “É difícil aceitar que Kosovo possa e, por exemplo, o Saara Ocidental não, quando este tem uma base legal praticamente impecável para ser independente, muito mais sólida que a de Kosovo”, reflete Molina. Difícil de aceitar, mas é assim: os Estados nascem, ou não, dependendo de quem o quer. O direito, se puder, que acompanhe.
Assim nasceu a Namíbia em 1990, separando-se da África do Sul. A Eritréia conseguiu seu reconhecimento em 1993. Antes, em 1971, Bangladesh proclamou sua independência do Paquistão, e também acabou sendo reconhecido. Israel surgiu, sobre a base moral do Holocausto sofrido, depois da Segunda Guerra Mundial em uma terra em que seu povo não residia havia quase 20 séculos. Em troca, Taiwan fica em seu limbo: a China é um contrapeso enorme. Outros atestam esse limbo de territórios independentes de fato: a república da Somalilândia, a república turca de Chipre Norte, só reconhecida pela Turquia.
Mas Kosovo ameaça “abrir a caixa de Pandora”, como salientou o presidente russo, Vladimir Putin. Por exemplo, segundo um argumento que se repete muito nestes dias, se a minoria kosovar pode se separar da Sérvia, por que não pode também a minoria sérvia de Kosovo? Em quantos recantos do mundo existem as mesmas condições? Ninguém deixa de notar a relevância que o caso tem nos assuntos internos espanhóis.
“A partida em Kosovo acabou política 1, direito 0. O problema é que tem todo o jeito de ser uma partida que se sabe como começou, mas não como acabará. Poderíamos nos encontrar em breve com política 3, direito 0. Ou mais”, argumenta Romualdo Bermejo, professor de direito internacional na Universidade de León e autor de um estudo sobre o caso Kosovo. Sim, os kosovares sofreram violências e humilhações, o que os diferencia de muitos outros casos. Mas quantos povos sofreram violências no passado? Como exercer a interpretação?
Bermejo considera, por outro lado, que no estado atual das coisas a missão militar da Otan em Kosovo, a Kfor, é uma força de ocupação. A Aliança e seus Estados membros não o vêem assim, porém, ao considerar a resolução 1244 da ONU plenamente vigente. Incluindo a Espanha. Aqui também, qual é a interpretação aplicável? Naturalmente, a dos que tiverem a força para aplicá-la. Talvez, como diz Sartori, o único que cabe esperar é que pelo menos seja inteligente, a interpretação.