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sexta-feira, novembro 8, 2024

Morte

Autoria: Eduardo Giorgi

INTRODUÇÃO

Desde os primórdios da Civilização, a morte é considerada um aspecto que fascina e, ao mesmo tempo, aterroriza a Humanidade. A morte e os supostos eventos que a sucedem são, historicamente, fonte de inspiração para doutrinas filosóficas e religiosas, bem como uma inesgotável fonte de temores, angústias e ansiedades para os seres humanos.

O interesse pelo tema da morte teve início com a leitura de algumas reportagens do LELU (Laboratório de Estudos e Intervenção sobre o Luto). O contato com estas reportagens, e a análise da morte como fenômeno psíquico, foram o ponto de partida deste trabalho. As matérias vieram de encontro aos anseios naturais sobre a morte e mostraram que, apesar da dimensão etérea que a morte toma em nível psíquico, existem profissionais e entidades empenhadas em estudá-la de forma científica, usando uma metodologia essencialmente psicológica.

Em função do contato inicial com o material do LELU e do interesse por ele despertado, a busca de outras pesquisas já realizados no mesmo campo foi um impulso natural, e acabou formando a base teórica que sustenta este trabalho.

A morte como fenômeno físico já foi exaustivamente estudada e continua sendo objeto de pesquisas, porém permanece um mistério impenetrável quando nos aventuramos no terreno do psiquismo.

Falar sobre morte, ao mesmo tempo que ajuda a elaborar a idéia da finitude humana, provoca um certo desconforto, pois damos de cara com essa mesma finitude, o inevitável, a certeza de que um dia a vida chega ao fim.

A certeza humana da morte aciona uma série de mecanismos psicológicos. E são esses mecanismos que instigam a nossa curiosidade científica. Em outras palavras, o foco de interesse seria como o homem lida com a morte; seus medos, suas angústias, suas defesas, suas atitudes diante da morte.

O objetivo da presente pesquisa é o aprofundamento teórico da questão da morte, enfocando a maneira pela qual o homem lida com este fenômeno humano inevitável, percebendo os mecanismos psicológicos que entram em ação quando o homem se encontra diante da morte.

O tema da morte não é de forma alguma uma discussão atual. Foram muitos os filósofos, historiadores, sociólogos, biólogos, antropólogos e psicólogos a discutir o assunto no decorrer da História. Isto porque a morte não faz parte de uma categoria específica; é uma questão que atravessa a história, é sobretudo uma questão essencialmente humana.

Dentro dos vários enfoques teóricos que possibilitam a reflexão sobre a morte, um deles nos interessa em especial: o enfoque psicanalítico. Foi esse enfoque que deu corpo às nossas indagações sobre a morte, seja através da análise pessoal, seja através da teoria propriamente dita.

A concepção que se tem sobre a morte e a atitude do homem diante dela, tende a se alterar de acordo com o contexto histórico e cultural. Sem dúvida o advento do capitalismo e seus tempos de crise, fez surgir uma nova visão sobre a morte, que segundo Torres, (1983), tem a ver com o surgimento do capital como força principal de produção. Neste sentido, o vivo pode tudo e o morto não pode nada, já que teve sua vida produtiva interrompida.

Diante desta crise, na qual os homens encontram-se completamente abandonados e despreparados, vemos este aprofundamento teórico como uma forma de dimensionar a morte, contribuindo para sua melhor compreensão e elaboração, instrumentalizando sobretudo, os profissionais da área de saúde, que trabalham lado a lado com este tema.

Este trabalho encontra-se estruturado em três partes principais. A primeira busca analisar o impacto da morte na sociedade através do tempo, mostrando como diferentes povos em diferentes épocas, lidavam com essa questão. A segunda parte fala sobre os sentimentos ambíguos gerados em nós, seres humanos, quando somos obrigados a encarar a nossa própria morte, bem como a morte do outro. A terceira e última parte fala do luto, em seus diversos contextos.

DADOS HISTÓRICOS

Possuímos uma herança cultural sobre a morte que define nossa visão de morte nos dias atuais. Segundo Kastenbaum e Aisenberg (1983), as interpretações atuais sobre a morte constituem parte da herança que as gerações anteriores, as antigas culturas nos legaram.

Faremos então, um pequeno passeio pela história para que possamos entender como foi construída a idéia da morte encontrada nos dias de hoje.

Arqueólogos e antropólogos, através de seus estudos, descobriram que o homem de Neanderthal já se preocupava com seus mortos:

Não somente o homem de Neanderthal enterra seus mortos, mas às vezes os reúne (gruta das crianças, perto de Menton).&rdquo Morin (1997)

Ainda segundo Morin (1997) na pré-história, os mortos dos povos musterenses eram cobertos por pedras, principalmente sobre o rosto e a cabeça, tanto para proteger o cadáver dos animais, quanto para evitar que retornassem ao mundo dos vivos. Mais tarde, eram depositados alimentos e as armas do morto sobre a sepultura de pedras e o esqueleto era pintado com uma substância vermelha.

O não abandono dos mortos implica a sobrevivência deles. Não existe relato de praticamente nenhum grupo arcaico que abandone seus mortos ou que os abandone sem ritos. Morin (1997)

Ainda hoje, nos planaltos de Madagáscar, durante toda a vida, os kiboris constróem uma casa de alvenaria, lugar onde seu corpo permanecerá após a morte.

Segundo Kastenbaum e Aisenberg (1983), os egípcios da antigüidade, em sua sociedade bastante desenvolvida do ponto de vista intelectual e tecnológico, consideravam a morte como uma ocorrência dentro da esfera de ação. Eles possuíam um sistema que tinha como objetivo, ensinar cada indivíduo a pensar, sentir e agir em relação à morte.

Os autores seguem dizendo que os malaios, por viverem em um sistema comunitário intenso, apreciavam a morte de um componente, como uma perda do próprio grupo. Desta feita, um trabalho de lamentação coletiva diante da morte era necessário aos sobreviventes. Ademais, a morte era tida não como um evento súbito, mas sim como um processo a ser vivido por toda a comunidade.

Segundo Ariès (1977), na Vulgata, o livro da Sabedoria, após a morte, o justo irá para o Paraíso. As versões nórdicas do livro da Sabedoria rejeitaram a idéia de Paraíso descritas no livro original pois, segundo os tradutores, os nórdicos não esperam as mesmas delícias que os orientais, após a morte. Isso porque os orientais descrevem que o Paraíso tem &ldquoa frescura da sombra&rdquo, enquanto os nórdicos preferem &ldquoo calor do sol&rdquo. Estas curiosidades nos mostram como o ser humano deseja, ao menos após a morte, obter o conforto que não conseguiu em vida.

Já o budismo, através da sua mitologia, busca afirmar a inevitabilidade da morte. A doutrina budista nos conta a Parábola do Grão de Mostarda: uma mulher com o filho morto nos braços, procura Buda e suplica que o faça reviver. Buda pede à mulher que consiga alguns grãos de mostarda para fazê-lo reviver. No entanto, a mulher deveria conseguir estes grãos em uma casa onde nunca houvesse ocorrido a morte de alguém. Obviamente esta casa não foi encontrada e a mulher compreendeu que teria que contar sempre com a morte.

Na mitologia hindu, a morte é encarada como uma válvula de escape para o controle demográfico. Quando a &ldquoMãe-Terra&rdquo, torna-se sobrecarregada de pessoas vivas, ela apela ao deus Brahma que envia, então, a &ldquomulher de vermelho&rdquo (que representa a morte na mitologia ocidental) para levar pessoas, aliviando assim, os recursos naturais e a sobrecarga populacional da &ldquoMãe-Terra&rdquo.

Segundo Mircea Elíade (1987) os fino-úgricos (povos da região da Península de Kola e da Sibéria Ocidental), têm sua religiosidade profundamente vinculada ao xamanismo. Os mortos destes povos eram enterrados em covas familiares, onde os que morreram há mais tempo, recebiam os &ldquorecém mortos&rdquo. Assim, as famílias eram constituídas tanto pelos vivos quanto pelos mortos.

Esses exemplos nos trazem uma idéia de continuidade em relação à morte, não sendo a mesma, considerada como um fim em si. Havia uma certa tentativa de controle mágico sobre a morte, o que facilitava sua integração psicológica, não havendo portanto, uma cisão abrupta entre vida e morte. Isso sem dúvida aproximava o homem da morte com menos terror.

Apesar da familiaridade com a morte, os Antigos de Constantinopla mantinham os cemitérios afastados das cidades e das vilas. Os cultos e honrarias que prestavam aos mortos, tinham como objetivo mante-los afastados, de modo que não &ldquovoltassem&rdquo para perturbar os vivos.

Por outro lado, na Idade Média, os cemitérios cristãos localizavam-se no interior e ao redor das igrejas e a palavra cemiterium significava também &ldquolugar onde se deixa de enterrar. Daí, eram tão comuns as valas cheias de ossadas sobrepostas e expostas ao redor das igrejas.

A Idade Média foi um momento de crise social intensa, que acabou por marcar uma mudança radical na maneira do homem lidar com a morte. Kastenbaum e Aisenberg (1983) nos relatam que a sociedade do século catorze foi assolada pela peste, pela fome, pelas cruzadas, pela inquisição; uma série de eventos provocadores da morte em massa. A total falta de controle sobre os eventos sociais, teve seu reflexo também na morte, que não podia mais ser controlada magicamente como em tempos anteriores. Ao contrário, a morte passou a viver lado a lado com o homem como uma constante ameaça a perseguir e pegar a todos de surpresa.

Esse descontrole, traz à consciência do homem desta época, o temor da morte. A partir daí, uma série de conteúdos negativos começam a ser associados à morte: conteúdos perversos, macabros, bem como torturas e flagelos passam a se relacionar com a morte, provocando um total estranhamento do homem diante deste evento tão perturbador. A morte se personifica como forma do homem tentar entender com quem está lidando, e uma série de imagens artísticas se consagram como verdadeiros símbolos da morte, atravessando o tempo até os dias de hoje.

Kübler-Ross (1997) descreve que são cada vez mais intensas e velozes as mudanças sociais, expressas pelos avanços tecnológicos. O homem tem se tornado cada vez mais individualista, preocupando-se menos com os problemas da comunidade. Essas mudanças tem seu impacto na maneira com a qual o homem lida com a morte nos dias atuais.

O homem da atualidade convive com a idéia de que uma bomba pode cair do céu a qualquer momento. Não é de se surpreender portanto que o homem, diante de tanto descontrole sobre a vida, tente se defender psiquicamente, de forma cada vez mais intensa contra a morte. “Diminuindo a cada dia sua capacidade de defesa física, atuam de várias maneiras suas defesas psicológicas” Kübler-Ross (1997)

Ao mesmo tempo, essas atrocidades seriam, segundo ponto de vista de Mannoni, (1995), verdadeiras pulsões de destruição; a dimensão visível da pulsão de morte.

Mannoni (1995), citando Ariès, conta que a morte revelou sua correlação com a vida em diversos momentos históricos. As pessoas podiam escolher onde iriam morrer; longe ou perto de tais pessoas, em seu lugar de origem; deixando mensagens a seus descendentes.

A possibilidade de escolha deu lugar a uma crescente perda da dignidade ao morrer, como nos afirma Kübler-Ross (1997): “…já vão longe os dias em que era permitido a um homem morrer em paz e dignamente em seu próprio lar.”

Para Mannoni, nos dias atuais, 70% dos pacientes morrem nos hospitais, enquanto no século passado, 90% morriam em casa, perto de seus familiares. Isto ocorre porque, nas sociedades ocidentais o moribundo é, geralmente, afastado de seu círculo familiar.

&ldquoO médico não aceita que seu paciente morra e, se entrar no campo em que se confessa a impotência médica, a tentação de chamar a ambulância (para se livrar do caso) virá antes da idéia de acompanhar o paciente em sua casa, até o fim da vida.&rdquo Mannoni (1995)

A morte natural deu lugar à morte monitorada e às tentativas de reanimação. Muitas vezes, o paciente nem é consultado quanto ao que deseja que se tente para aliviá-lo. A medicalização da morte e os cuidados paliativos, não raro, servem apenas para prolongar o sofrimento do paciente e de sua família. É muito importante que as equipes médicas aprendam a distinguir cuidados paliativos e conforto ao paciente que está morrendo, de um simples prolongamento da vida.

Outro aspecto comportamental do ser humano em relação à morte é que antigamente, preferia-se morrer lentamente, perto da família, onde o moribundo tinha a oportunidade de se despedir. Atualmente, não é raro se ouvir dizer que é preferível uma morte instantânea, que o longo sofrimento causado por uma doença.

Entretanto, segundo Kovács (1997) contrariando o senso comum, o tempo da doença, justamente ajuda a assimilar a idéia de morte, e a conseguir tomar decisões concretas, como a adoção dos filhos ou a resolução de desentendimentos.

Segundo Bromberg (1994) nossa cultura não incorpora a morte como parte da vida, mas sim como castigo ou punição.

O HOMEM DIANTE DA PRÓPRIA MORTE / O HOMEM DIANTE DA MORTE DO OUTRO

Desde muito cedo, ainda bebês, quando passamos a distinguir nosso próprio corpo do corpo da mãe, somos obrigados a aprender a nos separar de quem ou daquilo que amamos. A princípio, convivemos com separações temporárias, como por exemplo, a mudança de escola. Mas chega uma hora, que acontece a nossa primeira perda definitiva: alguém que nos é muito querido, um dia, se vai para sempre. É justamente esse &ldquopara sempre&rdquo que mais nos incomoda.

Porém, quanto mais conscientes estivermos de nossas mortes diárias, mais nos preparamos para o momento da grande perda de tudo que colecionamos e nutrimos durante a vida: desde toda a bagagem intelectual, todos os relacionamentos afetivos, até o corpo físico.

Com o distanciamento cada vez maior do homem em relação à morte, cria-se um tabu, como se fosse desaconselhável ou até mesmo proibido falar sobre este tema.

Segundo Bromberg (1994) &ldquocomo aprendemos em nossa cultura, evitamos a dor, evitamos a perda e fugimos da morte, ou pensamos fugir dela…

Esse quadro atual nos revela a dimensão da cisão que o homem tem feito entre vida e morte, tentando se afastar ao máximo da idéia da morte, considerando sempre que é o outro que vai morrer e não ele. Nos lançamos então à questão da angústia e do medo em relação à morte.

Uma das limitações básicas do homem é a limitação do tempo. Segundo Torres (1983): “…o tempo gera angústia, pois do ponto de vista temporal, o grande limitador chama-se morte…”

A Psicanálise Existencial, apontada por Torres (1983) revela a dimensão da angústia da morte: “A angústia mesma nos revela que a morte e o nada se opõe à tendência mais profunda e mais inevitável do nosso ser”, que seria a afirmação do si mesmo.

Mannoni (1995) busca em Freud, palavras que falem da angústia do homem diante da morte: “… Freud a situa ou na reação a uma ameaça exterior, ou como na melancolia, ao desenrolar de um processo interno. Trata-se sempre, porém, de um processo que se passa entre o eu e a severidade do supereu.”

Segundo Kastenbaum e Aisenberg (1983) o ser humano lida com duas concepções em relação à morte: a morte do outro, da qual todos nós temos consciência, embora esteja relacionada ao medo do abandono; e a concepção da própria morte, a consciência da finitude, na qual evitamos pensar pois, para isto, temos que encarar o desconhecido.

É a angústia gerada ao entrar em contato com a fatalidade da morte, que faz com que o ser humano mobilize-se a vencê-la, acionando para este fim, diversos mecanismos de defesa, expressos através de fantasias inconscientes sobre a morte. Muito comum é a fantasia de existir vida após a morte; de existir um mundo paradisíaco, regado pelo princípio do prazer e onde não existe sofrimento; de existir a possibilidade de volta ao útero materno, uma espécie de parto ao contrário, onde não existem desejos e necessidades. Ao contrário dessas fantasias prazerosas, existem aquelas que provocam temor. O indivíduo pode relacionar a morte com o inferno. São fantasias persecutórias que têm a ver com sentimentos de culpa e remorso. Além disso, existem identificações projetivas com figuras diabólicas, relacionando a morte com um ser aterrorizante, com face de caveira, interligado a pavores de aniquilamento, desintegração e dissolução.

O homem é o único animal que tem consciência de sua própria morte. Segundo Kovács (1998): “O medo é a resposta mais comum diante da morte. O medo de morrer é universal e atinge todos os seres humanos, independente da idade, sexo, nível sócio-econômico e credo religioso.”

Para a Psicanálise Existencial enunciada por Torres, (1983): “… o medo da morte é o medo básico e ao mesmo tempo fonte de todas as nossas realizações: tudo aquilo que fazemos é para transcender a morte.”

Complementa esse pensamento afirmando que “todas as etapas do desenvolvimento são na verdade formas de protesto universal contra o acidente da morte.”

Segundo Freud (1917) ninguém crê em sua própria morte. Inconscientemente, estamos convencidos de nossa própria imortalidade. &ldquoNosso hábito é dar ênfase à causação fortuita da morte &ndash acidente, doença, idade avançada; desta forma, traímos um esforço para reduzir a morte de uma necessidade para um fato fortuito.

Como dito anteriormente, o homem encontra-se num processo contínuo de cisão ente vida e morte, tentando afastar-se ao máximo da idéia da morte, considerando sempre que é o outro que vai morrer e não ele. Configura-se então, uma situação na qual o homem se defende pela segregação.

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