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quarta-feira, dezembro 25, 2024

Nove Noites – Bernardo Carvalho

Nove Noites – Bernardo Carvalho

Em fins da década de 1930 um grupo de antropólogos veio dos Estados Unidos para estudar grupos indígenas brasileiros. Jovens, estes antropólogos vieram graças a uma parceria entre o governo brasileiro e a Universidade de Columbia. Nove Noites narra uma investigação sobre a misteriosa morte de um antropólogo americano, Buell Quain, que se suicida após uma estada com os índios krahô, no Brasil, quando subitamente regressava à civilização. No meio da floresta, Quain, sem motivos aparentes, retalhou-se e enforcou-se na frente de dois índios horrorizados que o acompanhavam na volta para a cidade de Carolina.

Este é o ponto de partida da narrativa de Bernardo Carvalho: um caso trágico, senão mórbido, perdido nos anos e na memória. Bernardo decidiu, a partir de tão poucas informações, tecer um romance utilizando a história fatídica de Buell Quain como base, entrelaçando história e ficção, texto jornalístico e um estranho narrador que entrecorta todo o livro.

O narrador / confessor do antropólogo responde pela parte ficcional de Nove Noites, ao passo que o próprio Bernardo Carvalho encarna e responde pelo lado jornalístico, do levantamento de dados que indiquem os reais motivos que levaram Buell Quain a dar cabo de sua existência. Não se sabe quem investiga, até porque ninguém nunca lhe perguntou a razão da sua curiosidade. Há a desculpa de querer escrever um livro, que vai adiantando para não levantar suspeitas. A mistura que o autor tenta levar a termo é extremamente interessante como recurso literário: insere fotos e personagens da década de 1930 na história, como pessoas reais ou imaginárias, o leitor nunca sabe exatamente onde está pisando. Pela sua mão somos guiados por entrevistas com pessoas que privaram com Quain, arquivos públicos, e memórias deixadas em cartas, escritas pelo suicida antes de morrer, e por um seu amigo, com quem partilhou nove noites de conversas e revelações.

São vários mistérios que se interligam, e adensam a narrativa, em que o leitor partilha a claustrofobia e evasão de identidade das personagens.

Da mesma forma, Bernardo Carvalho abre um campo de especulação na mente do leitor, não somente sobre os motivos que ocasionaram a morte de Buell Quain, mas principalmente sobre o significado e as conseqüências da transferência de um jovem norte-americano para o interior das florestas brasileiras. O autor junta habilmente a realidade e a ficção, o romance e a investigação que desenvolveu sobre os índios e sobre o antropólogo. Como nos diz o próprio autor nos agradecimentos “é uma combinação de memória e imaginação, – como todo o romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta”.

Em outras palavras, Nove Noites é um excelente exemplo do nem sempre salutar choque cultural.

Trecho escolhido: Páginas 114 a 117

Isto é para quando você vier. Ele voltou a Carolina sem sapatos. Queria passar o aniversário na cidade. Naquela noite, me falou de outra ilha. Me disse que eu não podia imaginar. Eu já não tinha imaginado antes, quando me falara da ilha onde havia passado dez meses entre os nativos do Pacífico, já fazia quatro anos, do outro lado do mundo. Agora, já não falava da mesma. Não era a ilha em que adormecera sob as estrelas, embalado pelas histórias que um nativo lhe contava do crepúsculo à aurora, ao longo de semanas ininterruptas.

Me lembro de vê-lo rindo pela primeira vez da própria história, quando chegou a Carolina, quando me falou da ilha no Pacífico, ainda na primeira noite em que bebemos juntos, fazia mais de dois meses, comentando as cutucadas que o nativo lhe dava em vão, para mantê-lo acordado, e de como fiquei sem graça quando ele de repente parou de rir para assumir uma expressão grave e prosseguir o relato, dizendo que o nativo, diante da inutilidade das tentativas de mantê-lo desperto, terminava por se deitar ao seu lado também. Fiquei constrangido com a idéia de que pudesse pensar que eu estava cansado de suas histórias e de que, sem perceber, ele insinuasse alguma coisa ao me contar aquela.

Quando o etnólogo acordava na sua ilha do Pacífico, o sol já estava alto e o contador de histórias tinha ido embora. Quando voltou a Carolina no final de maio, me mostrou orgulhoso a foto e o desenho que fizera de próprio punho, retratos de negros enormes e fortes, para que eu pudesse ter um a idéia do que me dizia. Eu não podia ter imaginado que a aldeia não ficava na praia, mas morro acima, até ele me falar da Floresta Interior, governada por um chefe que mantinha um dente de baleia pendurado no peito como símbolo de poder. Na ilha, os chefes eram sagrados, assim como tudo que eles tocavam. As aldeias na costa foram aculturadas pelos invasores de outras ilhas, que por sua vez foram influenciados pelos europeus.

Só os nativos do interior mantinham intacto aquilo que ele procurava: uma sociedade em que, a despeito da rigidez das leis, os próprios indivíduos decidiam os seus papéis dentro de uma estrutura fixa e de um repertório predeterminado. Havia um leque de opções, embora restrito, e uma mobilidade interna. Foi o que ele me disse. sempre teve fascínio pelas ilhas. São universos isolados. Arrumou o primeiro emprego com apenas quinze anos e foi trabalhar, durante as férias de 1928, como ” controlador do tempo e das horas” – foi nesses termos canhestros que ele tentou me explicar, com o auxílio de gestos, a sua tarefa no canteiro de obras de uma estrada de ferro numa região inexplorada no coração do Canadá, com a poesia involuntária dos que não conhecem a língua em que tentam se exprimir. Aproveitava os dias de folga para explorar as ilhas da região, rascunhando mapas que mandava para casa no lugar de cartas e que mostravam a sua posição no mundo. Avançava por rochedos e florestas de abetos, horas a fio a desbravar regiões desérticas em sua fantasia de pioneiro solitário, a embrenhar-se na natureza até não restar outra fronteira para sua liberdade além dos limites do próprio corpo, até nada além do corpo impedir a fusão com a paisagem em que já se dissolvera em espírito.

Eram territórios que trilhava sozinho no verão ártico, infestado de mosquitos, e cujos mapas eram uma indissociável combinação da sua experiência e da sua imaginação. Assim como o que tento lhe reproduzir agora, e você terá que perdoar a precariedade das imagens de um humilde sertanejo que não conhecendo o mundo e nunca viu a neve e já não pode dissociar a sua própria imaginação do que ouviu. Mas não foi de nenhuma dessas ilhas que ele me falou quando voltou a Carolina descalço e humilhado no final de maio. Foi de uma outra, à qual se chegava de balsa, depois de duas horas de trem, vindo da cidade. Uma ilha que conheceu adulto. Falou de uma casa com vários quartos, todos ocupados por amigos.

Já não se expressava com tristeza nem com alegria. E eu não saberia dizer que sentimentos guardava daquela lembrança. Contou de uma tarde em que, voltando de uma caminhada solitária pela praia, onde abandonara os colegas, deparou com a casa excepcionalmente vazia e um homem sentado na cozinha. E que, antes de poder se apresentar, o estranho, saindo da sombra, sacou de uma máquina fotográfica e registrou para sempre o espanto e o desconforto do antropólogo recém-chegado de um passeio na praia, surpreendido pelo desconhecido. Numa das noites em que veio à minha casa durante a sua passagem por Carolina, no final de maio, o dr. Buell confessou que viera ao Brasil com a missão de contrariar a imagem revelada naquele retrato. Como um desafio e uma aposta que fizera consigo mesmo. Havia sido traído pelo intruso e sua câmera.

Não podia admitir que aquela fosse a sua imagem mais verdadeira: a expressão de espanto diante do desconhecido. Havia sido pego de surpresa pelo fotógrafo, antes de poder dizer qualquer coisa. E embora depois tenham se tornado amigos, por muito tempo o estranho não conseguiria tirar outra foto dele. Até irromper um dia em seu apartamento, sem avisar, decidido a fotografá-lo de qualquer jeito, depois de ter sabido que ele estava de partida para o Brasil. Queria uma lembrança do amigo antes de embarcar para a selva da América do Sul. Eu só sei que esse estranho era você.

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