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quarta-feira, novembro 20, 2024

Novelas Nada Exemplares – Dalton Trevisan

Novelas Nada Exemplares – Dalton Trevisan

Publicado em 1959, Novelas Nada Exemplares foi considerado como o verdadeiro marco inicial da trajetória de contista de Dalton Trevisan. Um dos contos, Pensão Nápoles, escrito na terceira pessoa, narra a trajetória de Chico por Curitiba. É descrita toda sua jornada pelas pensões que margeiam o rio Belém.

Chico: “Escriturário, noivo, bigodinho, morou em todas as pensões: Primavera, Floriano, Bagdá.”

Na infância também morou às margens do rio. Hoje esperançoso sonhava fugir para outra idade “— ah, Nápoles!” Chico sonhava se mudar para Nápoles, Itália.

Chico frustrava-se e nunca conseguia mudar-se. Mudava de emprego, mudava de noiva e de pensão, mas continuava na mesma vidinha, presa às margens do rio Belém.

Já tinha trinta anos, magrinho, Chico era um moço triste e achava que a solução era casar. Queria fugir do rio, mas acabou que “Naufragou com seus trastes na pensão Nápoles, não a escolheu pelo nome.”

Estava condenado as pensões baratas que margeiam o rio. Contraiu o tifo preto que lhe deixou sem dinheiro e sem emprego.

Chico amargava na tristeza e só tinha o abrigo da pensão, a única réstia de luz em sua vida. “Depois do tifo preto a pneumonia.” Chico lembrava-se de seu pai em meio às tardes queimando de febre. Seu pai nunca o esqueceu e sua mãe sempre conservou o seu prato sobre a mesa. Sentia saudades da família. “Chico, Chico, você voltou?”, dizia seu pai antes de morrer, sem ver seu filho que nunca visitou a família.

“Se ao pai matou, às noivas mal não fez.” Chico amava a todas, mas elas o abandonavam e ele ficava a ronda de suas casas, adormecendo na garoa da noite fria. Estava doente e abandonado numa enfermaria coletiva.
A narrativa acaba o conto numa elipse temporal, deixando em aberto o final triste de Chico.

Texto escolhido:

Tio Galileu

A pobre mãe deu Betinho àquele homem: agradasse ao tio Galileu, com os dias contados, podia ser o herdeiro.

Depois de partir lenha, puxar água do poço, limpar o poleiro do papagaio, o menino enxugava a louça para a cozinheira. Toda noite, Betinho subia a escada, para levar o urinol e tomar a bênção ao tio Galileu. Batia na porta: Entre, meu filho, O rapaz beijava a mão — branca, mole e úmida mãe-d’água. No domingo recebia a menor moeda, que o padrinho catava entre os nós do lenço xadrez.

Tio Galileu raramente saía e, ao tirar o paletó, exibia duas rodelas de suor na camisa. Arrastava o pé, bufando, sempre a mão no peito. Afagava o papagaio, que sacudia o pescoço e eriçava a penugem: Piolhinho… piolhinho… Subindo a escada, dedos crispados no corrimão, isolava-se no quarto. O assobio através da porta: alegria de contar o dinheiro?

Fechava a porta e conduzia a chave. Diante dele era feita a limpeza, pelo rapaz ou pela negra, nunca por Mercedes. Sentado na cama, coçando eterno pozinho na perna, vigiava. E não assobiava com alguém no quarto. Instalado na cama que, essa, ele mesmo arrumava, sem permitir que virassem o colchão de palha.

Mercedes fazia compras, perfumada e de sombrinha azul. O homem discutia com ela, que o arruinava, por sua culpa sofria de angina.

Domingo, a negra de folga, Betinho preparava o.café para Mercedes. Abria a porta, esperava acomodar-se à penumbra do quarto e, ao pousar a bandeja, sentia entre os lençóis a fragrância de maçã madura guardada na gaveta.

Uma noite Mercedes surgiu no quarto de Betinho. Já deitado, luz apagada. Sentou-se ao pé da cama, casara com tio Galileu por ser velho, a anunciar que morria de uma hora para outra. Mentira, para iludir a pessoa e servir-se dela. Não sofria do coração, nem sabia o que era coração, a esconder mais dinheiro entre a palha. Ao crepitar o colchão lá no quarto o avarento remexia no tesouro.

Um bruto, que a esquecia, dormindo em quarto separado, com medo fosse roubá-lo. Ó diabo, ela o xingou, pesteado como o papagaio louco, que a bicara ali no dedinho. O rapaz inclinou-se para beijar a unha de sangue. Mercedes ergueu-se e jurou que, se o monstro morresse, daria a Betinho o que lhe pedisse.

O rapaz não pôde dormir. Meia hora depois, saltou a janela. Agarrou no poleiro o papagaio, cabeça escondida na asa — os piolhos corriam pelo bico de ponta quebrada. Torceu o pescoço do bicho e o enterrou no quintal.

Dia seguinte o homem buscou a papagaio, a assobiar debaixo de cada árvore. Betinho sugeriu que a ave fugira. Foi colocar o vaso sob a cama e, ao tomar a bênção ao padrinho, o piolho correu de sua mão para a do velho — um dos piolhos vermelhos da peste.

Mercedes voltou ao seu quarto. Reclinada na cadeira, amarrava e desamarrava o cinto. Noite quente, queixou-se do calor, abriu o quimono: inteirinha nua.

— Vá — disse a mulher. — Vá, meu bem. Primeiro o papagaio. Agora o velho.
Betinho ficou de pé. Tremia tanto, ela o amparou até a porta:
— Vá, meu amor. A vez do velho.
Hora de pedir a bênção. Betinho subiu a escada. Aos passos no corredor o avarento, entre a bulha do colchão, perguntava quem era. Aquela noite nada falou. Betinho abriu a porta, avançou lentamente a cabeça. Tio Galileu deitara-se vestido, o saquinho de fumo espalhado no colete de veludo. O último cigarro, sem poder enrolar a palha com os dedos imóveis… Olho arregalado, a boca negra não abençoou Betinho. Fazia-se de morto, nunca mais fingiria.
Tio Galileu não gritou. Nem mesmo fechou o olho, mais fácil que o papagaio. Betinho afogou debaixo do travesseiro a boca arreganhada.
Os pés descalços de Mercedes desciam a escada. Ele ergueu o colchão, rasgou o pano, revolveu a palha: nada. Deteve-se à escuta: os passos perdidos da mulher. Avisá-la que o velho os enganara.
Era tarde, abria a janela aos gritos:
— Ladrão. Assassino! Socorro…

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