O Caso dos Exploradores de Cavernas
Suprema Corte de Newgarth — Ano de 4300
1. Relato dos fatos:
Uma organização amadora de estudos de cavernas, denominada Sociedade Espeleológica, representada por quatro pessoas, as quais foram acusadas de cometer um crime. Em maio do ano de 4299, entraram eles, no interior de uma caverna, já bem distantes da entrada dela ocorreu um desmoronamento que bloqueou completamente a sua única abertura. Ao percebem a situação difícil em que se achavam, ficaram próximo à entrada obstruída, na esperança de que uma equipe de socorro os salvasse. Não voltando os acusados as suas casas, as famílias deles encontraram indicações da localização da caverna que iriam visitar. A equipe de socorro foi enviada ao local.
A dificuldade de realizar essa tarefa mobilizou um enorme campo temporário de trabalhadores, engenheiros, geólogos, entre outros técnicos com atividades relacionadas. O trabalho de desobstrução foi muitas vezes frustrado por novos deslizamentos de terra sendo que em um destes, dez operários morreram.
Sabiam que não tinham levado nenhuma reserva de alimentos e que não havia nada na caverna que lhes permitisse subsistir, temeu-se que eles morressem de fome antes que o acesso até o ponto em que se achavam se tornasse possível. No 20º dia descobriu-se que os exploradores tinham levado consigo para a caverna um rádio amador. Instalou-se um aparelho semelhante, estabelecendo-se a comunicação com os acusados. Eles pediram que informassem quanto tempo seria necessário para liberá-los. Os engenheiros responderam que precisavam de pelo menos dez dias, à condição que não ocorressem novos deslizamentos.
Os exploradores perguntaram então se havia algum médico no local, tendo sido postos em comunicação com a comissão destes, à qual descreveram sua condição e as rações de que dispunham, solicitando uma opinião acerca da probabilidade de subsistirem sem alimento por mais dez dias. O presidente da comissão respondeu-lhes que havia escassa possibilidade de sobrevivência por tal tempo. Whetmore, falando em seu próprio nome e em representação dos demais, indagou se eles seriam capazes de sobreviver se alimentando da carne de um deles. O presidente da comissão respondeu, a contragosto, em sentido afirmativo.
Whetmore quastionou se seria aconselhável que tirassem a sorte para determinar qual dentre eles deveria ser sacrificado. Nenhum dos médicos se atreveu a enfrentar a questão. Whetmore quis saber então se havia um juiz que se dispusesse a responder à pergunta. Nenhuma das pessoas integrantes da missão de salvamento mostrou-se disposta a assumir o papel de conselheiro. Whetmore insistiu se algum sacerdote poderia responder àquela interrogação, mas não se encontrou nenhum que quisesse fazê-lo. Depois disto não se receberam mais mensagens de dentro da caverna, supondo-se que as pilhas do rádio dos exploradores tinham-se descarregado. Quando os homens foram finalmente libertados soube-se que Whetmore tinha sido morto e servido de alimento a seus companheiros.
Evidencia-se que Whetmore foi o primeiro a propor que buscassem alimento na carne de um deles, sem o que a sobrevivência seria impossível e também ele quem primeiro propôs a forma de tirar a sorte. Os acusados hesitaram em adotar um comportamento tão desatinado, mas, após o diálogo acima relatado, concordaram com o plano proposto. E depois de muita discussão chegaram por fim a um acordo sobre o método a ser empregado para a solução do problema: os dados.
Entretanto, antes que estes fossem lançados, Whetmore declarou que desistia do acordo, pois havia refletido e decidido esperar outra semana antes de adotar um expediente tão terrível e odioso. Os outros o acusaram de violação do acordo e procederam ao lançamento dos dados. Quando chegou a vez de Whetmore um dos acusados atirou-os em seu lugar, ao mesmo tempo em que se lhe pediu para levantar quaisquer objeções quanto à correção do lanço. Ele declarou que não tinha objeções a fazer. Tendo-lhe sido adversa a sorte, foi então morto.
Após o resgate dos acusados e depois de terem permanecido algum tempo em um hospital onde foram submetidos a um tratamento para desnutrição e choque emocional, foram denunciados pelo homicídio de Roger Whetmore. Em conseqüência sentenciou-os à forca, não lhe permitindo a lei nenhum discrição com respeito à pena a ser imposta. Dissolvido o júri, seus membros enviaram uma petição conjunta ao chefe do Poder Executivo pedindo que a sentença fosse comutada em prisão de seis meses. O juiz de primeira instância endereçou uma petição similar à mesma autoridade. Até o momento, porém, nada resolveu o executivo, aparentemente esperando pela nossa decisão no presente recurso.
2. Conclusão:
Com relação ao caso acima descrito, concluí-se que o Tribunal de Primeira Instância aplicou a pena nos réus baseada apenas no principio do Direito Positivo, desconsiderando a situação na qual eles se encontravam e quaisquer questões sociais, as quais eles foram submetidos enquanto estavam presos naquela caverna. Diante do exposto, o júri achou por bem encaminhar ao chefe do Poder Executivo o pedido de comutação da pena imposta, em seis meses de prisão. O Poder Executivo procurou não pronunciar-se a respeito do assunto, enquanto o caso não fosse julgado pelo Tribunal.
Ao iniciar-se o julgamento do recurso pelo Tribunal, observa-se claramente, os juízes que optaram em qualificar o ato dentro do direito natural e os que qualificaram sob a égide do direito positivo.
– O Juiz Truepenny, presidiu o Tribunal, cercando-se do direito positivo para manter a sentença, porém como a incerteza lhe batia à porta, foi logo sugerindo ao tribunal que encaminhasse o mesmo pedido da primeira instância ao Poder Executivo, acreditando que este não iria simplesmente ignorar os fatos e de negar o pedido.
Voto do juiz Truepenny: Condenação. Nota que se trata de um magistrado extremamente positivista e que defende este sistema arduamente, pois contraria até sua opinião para defendê-lo.
– O segundo julgador, Juiz J. Foster formulou sua sentença baseada totalmente no direito natural, sugerindo inclusive que os réus não estavam num estado de “sociedade civil”, mas sim submetidos as “leis da natureza”, porquanto não poderiam responder pelo crime uma vez que a lei não lhes era propícia em virtude do momento, sustentando a tese que, a causa natural prevalece a civil “causa naturalis praevalet civili”. Sugere que se aceite a palavra dos autores que não tiveram a intenção de cometer o crime e sim o fizeram por questões de sobrevivência.
Voto do juiz J. Foster: Absolvição. O juiz Foster deu o voto mais forte e mais eficaz de todos. O juiz crítico sempre consegue argumentos satisfatórios para sua opinião.
– O terceiro, Juiz Tatting, não concorda com o seu colega Foster, quando diz “que os réus não estavam num estado de sociedade civil”, questionando o que lhes era facultado para não estarem num estado normal de sociedade e suscetíveis as leis desta. Por outro lado não poderia admitir que aqueles homens fossem condenados, uma vez que já haviam sofrido o bastante. Ao mesmo tempo, que ele não aceitava que a lei não fosse cumprida, lhe causava muita indignação o fato de condenar os réus à morte. O juiz Tatting impressiona a todos com o seu voto, pois aqui, ele, ao analisar a situação dos réus, se colocou no lugar deles e concluiu que faria a mesma coisa que os réus fizeram.
Voto do juiz Tatting: Abstinência. Diante do exposto achou melhor não participar do julgamento e absteve-se de pronunciar sua sentença.
– O quarto, Juiz Keen, foi totalmente positivista, primeiramente separando com muita propriedade as funções do Judiciário e do Executivo. Não cabia ao judiciário convencer o Executivo do que deveria ou não fazer, e sim, julgar o processo conforme as premissas da lei. No seu julgamento aplicou a letra por letra, palavra por palavra, não quis discutir sobre o mérito da causa, ou seja, não lhe interessava o momento que os réus viveram e viviam.
Os mesmos atentaram contra a vida de outrem e teriam que pagar pelo crime a luz da lei, ainda que dura e severa seja a sua aplicação.
Voto do juiz Keen: Condenação. Defende também o positivismo e como tal não vê outra opção para os réus do que a condenação.
– O quinto e último julgador, Juiz Handy, preferiu adotar a opinião pública como norteadora de sua decisão, fazendo alusão ao possível distanciamento do Judiciário da Sociedade, caso a pena fosse confirmada. Baseou-se em uma pesquisa de opinião que dizia que a população estava ao lado dos réus, expressando sua solidariedade quando a maioria dos entrevistados gostariam que os mesmos fossem absolvidos das acusações. Diante desse fato procurou este adotar o seguinte princípio que, nos casos obscuros, devemos adotar sempre a solução mais favorável.
Portanto, analisa o juiz que pode absolver os réus e este fato não causará instabilidade ou comprometimento jurídico.
Voto do juiz Handy: Absolvição. Sendo um juiz com perfil pesquisador, que vai até as últimas conseqüências para atingir seu fim e, por isso, podemos dizer que ele é um jusnaturalista que usa o positivismo em prol de sua doutrina.
Quanto ao Poder Executivo, este silenciou diante do julgamento apresentado pelo tribunal, ficando numa posição cômoda perante a opinião pública, pois diante da sentença de primeira instância e do julgamento do recurso, não podia ignorar as decisões daquelas cortes e simplesmente conceder clemência aos acusados.
A presente ficção mostra-nos como pode ser perigoso e errado o desempenho do direito na prática. Voltarmo-nos apenas para a condição positiva, vendo na lei a única condição e o único valor para promovermos a análise de um determinado caso, pode não ser justo. Por outro lado, também não podemos basear-se somente na condição natural, pois atualmente a maioria dos delitos cometidos, tem como fulcro as questões sociais que enfrentamos no dia-a-dia de nossa vida.
É preciso que haja um equilíbrio entre a lei (direito positivo) e a análise das situações que levaram a prática do delito (direito natural). Após contrabalançar as duas condições, então teremos uma conclusão “justa” a cerca do assunto que está em questão.
3. Referências Bibliográficas:
FULLER, Lon L. O Caso Dos Exploradores De Cavernas. Tradução do original inglês e introdução por Plauto Faraco de Azevedo. Porto Alegre, 1976: Editor Sergio Antonio Fabris.