O Epicurismo já foi definido como a forma inicial do que hoje chamamos de “auto-ajuda”: não há nada a fazer para melhorar o mundo, portanto, tentemos viver o melhor possível….
Painel Histórico
Ao perder sua liberdade política, dominada que fora primeiro pelos macedônios, a seguir pelos romanos, a Grécia antiga sofreu uma alteração profunda nos quadros dentro dos quais vinha desenvolvendo sua experiência cultural e, em particular, sua criação mais arrojada: a especulação filosófica.
Tornando-se parte do império fundado por Filipe da Macedônia e ampliado por seu filho Alexandre, o país passou a integrar um vasto organismo político, verdadeiro mosaico de povos. Tendem a se diluir as distinções entre gregos e orientais, distinções que, então, os primeiros orgulhosamente proclamavam e procuravam preservar.
Heródoto de Halicarnasso, historiador (circa 460 a.C. – 425 a.C.) mostrara que a raiz dessas distinções estava no senso de liberdade política que um grego possuía por pertencer a uma cidade-Estado, cônscia de sua autonomia e de suas tradições, e onde, ao usufruir os direitos de cidadania, ele não estava submetido a nenhum senhor. O abismo entre os gregos do período helênico e os “bárbaros” orientais provinha, segundo Heródoto, da consciência de liberdade que os gregos desenvolveram a partir da peculiaridade de sua organização social e política. Essa consciência de liberdade está ilustrada, pelo historiador, no episódio dos dois espartanos que, por ocasião das Guerras Médicas, se apresentam voluntariamente aos persas para serem sacrificados como expiação pelo assassínio dos embaixadores de Xerxes. Indagados sobre os motivos que levavam Esparta insistia a resistir ao Grande Rei, rejeitando as vantagens da rendição e da submissão, os dois gregos respondem ao persa que os conduzia ao sacrifício: “Tu não podes compreender. Conheces apenas a vida de servidão. Jamais experimentaste a liberdade, para saber se ela é doce ou não. Do contrário, tu nos aconselharias a combater por ela não somente com a lança, mas também com o machado”.
Depois da batalha de Queronéia (338 a.C.), que marca a derrota dos gregos frente à Macedônia, a situação muda completamente. O desaparecimento da autonomia da cidade-estado torna sem sentido qualquer sentimento isolacionista. Mas, pelo fato mesmo de inserir-se no grande organismo político dos macedônios, a cultura grega se difunde, tornando-se patrimônio comum a todos os países mediterrâneos. Começa o chamado período helenístico, no qual, desde a morte de Alexandre até a conquista romana, a cultura grega vai progressivamente se impondo do Egito e da Síria até Roma e Espanha. E se Atenas inicialmente permanece como centro da investigação científica e filosófica, outros focos de atividade intelectual passarão depois a se afirmar, particularmente Alexandria.
No período helenístico as ciências particulares começam a ter desenvolvimento autônomo, despregadas do tronco original da antiga sabedoria filosófica. O século III a.C. é o século de Euclides, de Arquimedes (287-212 a.C.) e de Apolônio de Perga (c. 262 – c.180 a.C.), um esplêndido século, portanto, para as matemáticas e a astronomia. Mas é também o século em que, no museu de Alexandria – cujo bibliotecário é o geógrafo Eratóstenes (275- 194 a.C.) -, ocorre grande desenvolvimento da crítica filosófica e das ciências baseadas na observação. Surge um novo tipo de intelectual, inexistente na fase helênica: o especialista, o erudito. E se isso representa um impulso às especializações científicas, manifesta também o novo rumo que tomara o conhecimento, desde que sua meta deixara de ser o universo político: o da realização subjetiva e pessoal, que acompanha o ideal de ciência pela ciência.
Em busca da serenidade
As novas condições impostas ao mundo grego tornam impossível a participação do indivíduo no governo da polis, que o cidadão helênico conhecera sobretudo na fase democrática. O conhecimento deixa de ser preparação para a atividade política (como fora em Platão), passando a se ocupar do aprimoramento interior do homem. Distanciada das preocupações políticas, a filosofia aspira ao estabelecimento de normas universais para a conduta humana e se propõe a dirigir as consciências: o problema ético torna-se o centro da especulação de diferentes correntes filosóficas.
As éticas helenísticas partem à procura do bem individual, de uma sabedoria que represente a plenitude da realização subjetiva: o alcance da perfeita serenidade interior, independente das circunstâncias. O bem não mais terá o sentido metafísico do Bem de Platão, fundamento das idéias, dos modelos do mundo corpóreo, e, conseqüentemente, sustentação tanto do sujeito do conhecimento e da ação quanto da própria realidade objetiva. O bem das éticas helenísticas terá acepção estritamente existencial: é o bem como sinônimo do que é bom para o indivíduo, para a vida de cada homem.
Para traçar o caminho que conduz à serenidade interior, algumas éticas helenísticas – o epicurismo e o estoicismo – partem de uma concepção do universo fundamentada racionalmente. Ao contrário do que propunha o socratismo, epicuristas e estóicos fazem da ciência sobre a natureza das coisas a base para as suas construções morais. Bem diverso será o itinerário prescrito pelo ceticismo, fundado por Pirro de Êlis (360-270 a.C.): à imperturbabilidade de espírito só se chegaria partindo-se da suspensão de qualquer julgamento, renunciando-se a qualquer explicação científica, abandonando-se toda pretensão de alcançar certezas inatingíveis.
Outra corrente de pensamento que se manifesta no período helenístico é o ecletismo. Procurando um critério para a ação que escapasse às disputas das diferentes escolas, essa filosofa pretenderá estabelecer, para além das divergências, um “sentido comum”, um consenso universal. Tal forma de pensar teve larga aceitação na fase romana e Cícero foi seu mais eminente representante.
O caráter de religiosidade, que se tornará evidente no pensamento ocidental a partir do século I d.C., afirma-se antes em centros orientais da cultura helenística, como Alexandria. Manifesta-se então acentuada tendência à fusão ou ao sincretismo religioso. Ao mesmo tempo, ocorre o confronto entre duas tradições: a greco-romana, formulada através de filosofias dotadas de alto índice de racionalização, e a da religiosidade oriental, fundada – como no judaísmo e no cristianismo – na noção de verdade revelada. Os primeiros efeitos da repercussão do espírito religioso sobre a filosofia manifestam-se nos judeus-alexandrinos (do século II a.C. ao I d.C.), nos neopitagóricos e platônicos pitagorizantes (entre o século I a.C. e III d.C.) e nos últimos defensores do pensamento e da religião do politeísmo: os neoplatônicos do século II ao século VI d.C.
O neoplatonismo constituiu a mais perfeita manifestação de sincretismo religioso dessa época e teve em Plotino (204-270) seu principal representante. Para o neoplatonismo – canto de cisne do pensamento da antiga Grécia -, todos os seres resultariam de sucessivas emanações do Um, divino, transcendente e inefável. Antes de se calar, a filosofia grega medita sobre um último tema: o silêncio do Ser.
O jardim da amizade e do prazer
Nascido em 341 a.C., em Atenas ou em Samos, Epicuro teria acompanhado, dos catorze aos dezoito anos, os ensinamentos do acadêmico Pânfilo. E, através de Nausífanes de Teo, discípulo de Demócrito (c. 460 – 370 a.C.), teria conhecido as doutrinas desse grande atomista. Durante algum tempo ganhou a vida como professor de gramática. Em seguida deu cursos de filosofia, primeiro em Lâmpsaco, depois em Mitilene e Colofonte. Finalmente regressa a Atenas, por volta de 306 a.C., onde adquire uma pequena casa e abre uma escola de filosofia, que ficará conhecida como o Jardim de Epicuro.
Os alunos não têm em Epicuro um mestre no estilo tradicional: na verdade, formam um grupo de amigos que filosofam juntos. Epicuro exerce influência, não só pelo ensino direto como pela extraordinária personalidade. É um homem bondoso, de natureza terna e amável, que, apesar dos sofrimentos físicos impostos pela doença que o tortura e aos poucos o paralisa, cultiva as amizades, auxilia os irmãos e trata os escravos com civilidade. Por essa razão todos os que o conhecem dificilmente deixam seu convívio.
Epicuro foi intensamente venerado pelos seus primeiros discípulos, grandes admiradores seus. E cerca de dois séculos depois de sua morte – ocorrida em 270 a.C. – ainda será assim exaltado pelo poeta romano Lucrécio, seguidor e expositor de suas idéias: “Foi um deus, sim, um deus, aquele que primeiro descobriu esta maneira de viver que agora se chama sabedoria, aquele que por sua arte nos fez escapar de tais tempestades e de tais noites, para colocar nossa vida numa morada tão calma e tão luminosa”.
As tempestades e a noite a que se refere o poeta Lucrécio significam os temores e as perturbações que agitam o espírito humano e que Epicuro teria ensinado como vencer. “A morada tão calma e tão luminosa” seria a meta proposta pelo epicurismo: a morada da serenidade e do prazer. Com efeito, toda a ética de Epicuro representa um esforço para libertar a alma humana de equívocos ou de infundadas crenças aterrorizadoras. A filosofia, para Epicuro, deveria servir ao homem como instrumento de libertação e como via de acesso à verdadeira felicidade. Esta consistiria na serenidade de espírito que advém da consciência de que é ao homem que compete conseguir o domínio de si mesmo.
O autodomínio – objetivo de toda reflexão filosófica – exige a libertação do jugo das falsas opiniões e a conquista do conhecimento verdadeiro e seguro da realidade e da posição do homem dentro dela. Conseqüentemente, a filosofia pode ser dividida em três partes que se articulam. Em primeiro lugar, a lógica, que permitiria distinguir quais as formas de conhecimento verdadeiro, quais as falsas. Em segundo lugar – com base nas soluções indicadas pela lógica -, uma física que mostrasse a verdadeira estrutura da realidade na qual se insere o homem. A lógica e a física constituiriam, assim, as disciplinas preliminares a possibilitar a descoberta dos fundamentos da ética. Esta seria a terceira parte da filosofia e seu objetivo último, constituindo a chave para abrir as portas da felicidade.
A teoria do conhecimento dos epicuristas (que eles chamavam de canônica) é o empirismo, isto é, reduz toda a origem do conhecimento à experiência sensível. As repetidas experiências dos sentidos, preservadas pela memória, dariam nascimento às antecipações (em grego: prolepsis), equivalentes às noções gerais ou conceitos. Quando se ouve a palavra homem, por exemplo, antecipa-se a presença real e efetiva de um homem, sem que o mesmo esteja sendo apreendido de fato por qualquer dos sentidos. As prolepsis teriam a função de classificar as experiências e fixar seus limites de variação. Seriam em si mesmas verdadeiras, pois simplesmente registram e preservam as diferenças e semelhanças encontradas na experiência sensível.
A fonte da verdade
Depois que se possui um número suficientemente grande de prolepsis, podem-se formar juízos, verdadeiros ou falsos. A verdade de um juízo pode ser provada, segundo os epicuristas, de duas maneiras. Quando o juízo diz respeito a algo observável pelos sentidos, o critério é pura e simplesmente a concordância entre o juízo e os fenômenos sensíveis correspondentes. O segundo critério de verificação da verdade de uma proposição refere-se aos juízos sobre fenômenos não passíveis de observação através dos sentidos. Nesse caso diz-se que uma certa proposição é verdadeira se não entrar em contradição com outros dados fornecidos pela experiência (critério da não-infirmação). Os fenômenos adotados como prova são apenas signos de uma realidade invisível. Por exemplo, segundo a doutrina atomista, adotada por Epicuro, “todos os corpos, por mais compactos que sejam, possuem interstícios vazios dentro deles”. Esse juízo não é atestado diretamente pelos sentidos; mas, se não for admitido como verdadeiro, também não seria verdade que “a água destila através das rochas”, ou que “o calor e o frio passam através das paredes”.
A conjugação do conhecimento sensível e do conhecimento racional permite a Epicuro justificar sua adesão ao atomismo criado por Leucipo (meados do século V a.C.) e Demócrito (c. 470 – c. 370 a.C.). Com efeito, se os sentidos atestam o movimento como uma evidência, seria verdadeira, graças ao critério da não-infirmação, a teoria atomista, que apresenta uma explicação racional para o movimento, afirmando que tudo é constituído de átomos (invisíveis) que se movem no vazio.
Como os anteriores atomistas, Epicuro considera os átomos como infinitos em número, indivisíveis fisicamente (insecáveis) e imensamente pequenos (sua variação de tamanho estaria situada aquém do limiar de percepção); além disso, seriam móveis por si mesmos, pois o vazio não ofereceria qualquer resistência à locomoção. Leucipo e Demócrito haviam afirmado que os átomos, materialmente idênticos, diferiam uns dos outros apenas pela forma, pelo tamanho, pela posição ou, quando constituíam conjuntos, pelo arranjo. Epicuro, porém, introduz uma nova distinção: os átomos seriam diferentes também quanto ao peso. Os primeiros atomistas consideravam o peso uma resultante do tamanho dos átomos: os maiores, mais sujeitos aos impactos dos outros, locomovem-se com mais dificuldade e tendem a ocupar o centro dos agrupamentos de átomos, comportando-se como mais pesados. Ao contrário, Epicuro considera o peso um atributo inerente aos átomos, concebendo, portanto, um peso absoluto e não relativo. E devido ao peso é que os átomos, num momento inicial, são imaginados por Epicuro como “caindo”; mas, situados dentro do vazio, teriam que desenvolver, nessa “queda”, trajetórias necessariamente paralelas. Isso significa que os átomos jamais se chocariam – dando origem aos engates e aos torvelinhos indispensáveis à constituição das coisas e dos mundos – se algum fator não viesse interferir naquele paralelismo das trajetórias. Afastando-se do rígido mecanicismo da física dos primeiros atomistas, Epicuro introduz então a noção de desvio (clinamen): sem nenhuma razão mecânica, os átomos, em qualquer momento de suas trajetórias verticais, podem se desviar e se chocar. O clinamen aparece, assim, como a introdução do arbítrio e do imponderável num jogo de forças estritamente mecânico: é a ruptura da necessidade, do plano da física, para acolher a contingência.
A justificativa do clinamen está garantida pela canônica de Epicuro: a evidência imediata revela que existe um ser – o homem – que, embora constituído de átomos (como todos os seres do universo), manifesta a possibilidade de arbítrio, pelo qual altera os rumos de sua vida ou, pelo menos, pode modificar sua atitude interior diante dos acontecimentos. A existência da vontade livre seria, portanto, o fato experimentado que, através do critério da não-infirmação, encontraria explicação no desvio que deve também ocorrer nas trajetórias atômicas. Inconcebível seria admitir que um composto (o homem) apresentasse atributos inexistentes em seus componentes (os átomos). A doutrina do clinamen serve, assim, para fundamentar, dentro de um universo de coisas regido pelo fatalismo e pela necessidade mecânica, a espontaneidade da alma, a autonomia da vontade, a liberdade humana. Na física Epicuro situa as premissas de sua ética.
A verdadeira sabedoria
Com sua concepção materialista da realidade, Epicuro pretende libertar o homem dos dois temores que o impediriam de encontrar a felicidade: o medo dos deuses e o temor da morte. Os deuses existem, afirma Epicuro, mas seriam seres perfeitos que não se misturam às imperfeições e às vicissitudes da vida humana. Os deuses viveriam em perfeita serenidade rios es aços que separam os mundos. Sua perfeição suprema constitui o ideal a que aspiram os sábios e deve ser objeto de culto desinteressado; não teria sentido adorá-los de maneira servil, temerosa e interesseira, pois eles desconhecem o mundo imperfeito dos homens e de modo algum atuam sobre ele. Quanto à morte, não há também por que temê-la. Ela não seria mais que a dissolução do aglomerado de átomos que constitui o corpo e a alma. A morte, portanto, não existe enquanto o homem vive e este não existe mais quando ela sobrevém.
A libertação do temor dos deuses e da morte não basta para conduzir o homem à verdadeira felicidade. É necessário ainda que ele se liberte da ânsia incontrolada de prazeres e do incontido pesar pelas dores.
A luminosidade racional da doutrina atomista permitiria ao homem afastar os sombrios temores que lhe intranqüilizavam a alma, bem como reconhecer-se como um ser perfeitamente integrado na natureza universal. Enquanto ser natural, o homem – como os animais – pauta sua vida, espontaneamente, pela procura do prazer e pela fuga da dor. Mas a verdadeira sabedoria está além desse comportamento natural e espontâneo: sábio é reconhecer que há diferentes tipos de prazer, para saber selecioná-los e, dosá-los. O hedonismo epicurista reconhece que o ponto de partida para a felicidade está ria satisfação dos desejos físicos, naturais. Mas essa satisfação, para não acarretar sofrimentos, deve ser contida, reduzindo-se ao estritamente necessário: sábio é aquele que “com um pouco de pão e de água rivaliza com Júpiter em felicidade”.
Epicuro considera que todo prazer é basicamente um prazer corpóreo. Mas, ao contrário dos cirenaicos – corrente hedonista que se pretendia herdeira de Sócrates -, Epicuro afirma que o prazer que o homem deve buscar não é o da pura satisfação física imediata e mutável, o “prazer do movimento”. Para Epicuro, o prazer que deve nortear a conduta humana – o prazer com dimensão ética e não apenas natural – é o “prazer do repouso”, constituído pela ataraxia (ausência de perturbação) e pela aponia (ausência de dor). Ambas podem ser alcançadas na medida em que o homem, através do autodomínio, busque a auto-suficiência que o torne um ser que tem em si mesmo sua própria lei, um ser autárquico, capaz de ser feliz e sereno independentemente das circunstâncias. Para tanto, deve renunciar aos prazeres que possam ser fontes de aflição e aceitar a dor quando ela é portadora de um bem futuro (que nunca deve ser confundido com a suposta vida depois da morte). É necessário, portanto, fazer um cálculo utilitário dos prazeres e das dores possíveis, como primeiro passo para a conquista da felicidade. Epicuro, porém, reconhece que as circunstâncias podem impor a dor como um fato inelutável. Sabedoria será então utilizar a liberdade interior e, através do artifício que essa liberdade permite, permanecer sereno e feliz. À dor presente, ensina Epicuro, pode-se escapar por meio da lembrança dos prazeres passados ou pela expectativa de prazeres futuros. Interiormente, o homem é livre para jogar, à vontade, com as imagens (eidola) que seriam resquícios corpóreos (formados de átomos mais tênues) de suas sensações. Epicuro – ele próprio um homem doente e vítima de terríveis sofrimentos físicos, ele próprio um grego sem liberdade política – teria dado a demonstração dessa técnica interior de evasão, capaz de permitir ao homem enfrentar serenamente as mais adversas circunstâncias. Seu hedonismo altamente espiritualizado, que fazia da contemplação intelectual e das delícias da amizade os mais elevados prazeres, legou às éticas posteriores uma lição que nunca mais será esquecida: a de que o homem também pode se sustentar de recordações e de esperanças.
A poesia do materialismo
Na própria Antiguidade o epicurismo não sofreu reformulações. Os seguidores imediatos de Epicuro limitaram-se a cultuar a memória do mestre e a preservar e propagar suas idéias.
Segundo Diógenes Laércio, a obra de Epicuro compreendia cerca de trezentos títulos, dentre os quais só Sobre a Natureza compreenderia 37 livros. Dessa grande quantidade de escritos, todavia, restou muito pouco: o próprio Diógenes Laércio conservou uma Carta a Heródoto (que trata da física), uma Carta a Pítocles (de autenticidade contestada e tratando dos meteoros) e uma Carta a Meneceu (sobre moral); Diógenes Laércio faz seguir essas cartas de quarenta sentenças atribuídas a Epicuro e conhecidas sob a denominação de Máximas Principais. Em 1888, K. Wotke descobriu, num manuscrito da biblioteca do Vaticano, 81 máximas de Epicuro, algumas já inseridas nas Máximas Principais. Por outro lado, as escavações realizadas em Ilerculanum trouxeram à luz uma biblioteca epicurista, contendo inclusive o Sobre a Natureza de Epicuro.
Mas, se os escritos de Epicuro só são conhecidos de forma fragmentária, existe uma outra fonte para o conhecimento de sua doutrina: o poema Da Natureza das Coisas, de seu seguidor Lucrécio, que viveu em Roma entre os anos 99 e 55 a.C.
Pouco se sabe da vida de Tito Caio Lucrécio. Nasceu provavelmente em Roma, onde foi educado. Quando conheceu a doutrina de Epicuro – “honra da raça grega” -, Lucrécio deslumbrou-se com seus ensinamentos, que lhe pareceram a chave para desvendar os segredos do universo e para abrir as portas da felicidade humana. Seguindo as pegadas do mestre, Lucrécio propõe-se a tarefa de libertar os romanos da religião que os oprimia e que sobre eles pesava com mais força do que outrora pesara sobre os gregos.
Além de servir de fonte para conhecimento da doutrina epicurista, o poema de Lucrécio tem imensa importância literária: através dele Lucrécio se revela um dos maiores poetas da língua latina.
Lucrécio matou-se em 55 a.C. Seu poema, escrito em intervalos de ataques de loucura, ficou inacabado e foi completamente revisado, para publicação, segundo algumas fontes, por um irmão de Cícero chamado Quinto. Segundo outras fontes, aquele trabalho foi feito pelo próprio Cícero, que tinha pelo poeta do materialismo profunda admiração.
A Consciência Infeliz
“Estoicismo” tornou-se expressão consagrada no vocabulário atual, com o sentido de “firmeza e serenidade diante das adversidades”. Esta doutrina filosófica é a expressão (tanto como do epicurismo, do qual é contemporânea) de um tipo normativo de vida ecumênica conforme à razão e de aceitação espontânea da fatalidade de leis universais. A escola representa um retrocesso em relação às conquistas anteriores de reflexão filosófica sobre o mundo, compreendendo o período pré-socrático e a teoria atomística de Leucipo e Demócrito de Abdera. A divisa latina nihil mirari (não se admirar) cunhada mais tarde pelos estóicos latinos, em contrapartida ao assombro, de que falava Platão, demarca negativamente esse aspecto de acolhida resignada dos acontecimentos universais.
O “não assombrar-se”do estóico, atitude vizinha à da incompreensão, projeta no espaço e no tempo histórico esse sentimento trágico da vida que Pascal traduz como oposição entre a idéia de verdade e sua impotência para prová-la, revivendo o drama da condição humana que os existencialistas modernos exploram até o desespero. O drama da consciência infeliz, característica do modelo estóico, tanto quanto do epicurista e mesmo do existencialismo do século XX reflete um época histórica perpassada por grave crise, com falta de liberdade política, grande fatalidade e, não raro, tragédia física pessoal como uma severa enfermidade (caso de Demócrito). No existencialismo, por exemplo, o drama subjetivo moral reside em ser-se “fiel a si mesmo”, centra-se numa exaltação da individualidade – retrato de uma capitulação em atuar na prática política em busca de transformação –, cuja existência é essencial e constitutiva.
A consciência estóica só se afirma pela cisão do eu em relação ao mundo: busca a certeza e a segurança fora de toda a ligação com outros seres humanos, separando-se das coisas e do conhecimento das coisas, puramente negativas, sobretudo fixada na negatividade, a consciência de si do estóico se transforma em ceticismo e a liberdade do estóico não é senão um estado de consciência infeliz.
A crise existencial dos estóicos oscila entre situações excludentes, limitativas, de um estado a outro no círculo mágico, repetitivo, de todas as coisas e de todo os seres encontra ainda um parentesco curioso nas exortações de Zaratustra, de Nietzsche: a palingenesia, o eterno retorno, do mundo e dos seres na fatal trajetória de nascimento, morte e ressurreição, sem termo nem descanso. “A vida que vives agora, haverás de vivê-la inúmeras vezes; cada dor, cada alegria, cada pensamento e cada suspiro…tudo voltará de novo e tudo na mesma ordem”.
Nunca, ao certo, se precisaram os motivos que tão rapidamente fizeram retroagir os ideais humanísticos aos níveis desse estado de consciência dilacerada de que são exemplo as tendências éticas que se manifestaram, concomitantemente, à crise do mundo helenístico – a sociedade escravista em dissolução – dentre elas o estoicismo e o epicurismo.
Em suma, a decadência das instituições gregas, a perda dos valores éticos e dos deuses tutelares, como reflexo da tragédia econômica e política de lutas externas e intestinas entre as facções constituem o quadro real dessa fase helenística da história que reserva ao estóico desamparado a única saída de salvação: uma fuga da realidade do mundo na forma de uma cisão esquizofrênica do eu com o mundo… As tragédias são enormes, a Grécia perdeu sua autonomia, dominada pelos macedônios e, a seguir pelos romanos, a tirania impera e o espaço político está ocupado por estrangeiros ou por uma classe social que não me escuta. Que fazer? Buscar a felicidade ou a ataraxia, a imperturbabilidade, em isolamento da realidade.
No século XIX alguns arqueólogos descobriram em Enoanda, atual Turquia, os restos de uma muralha, com uma inscrição. Dela constavam trechos de ensinamento que Diógenes de Enoanda, discípulo de Epicuro, gravou para disponibilizar a todos quantos passassem por ali, fosse homem, mulher ou criança, de qualquer nacionalidade, o que seria um resumo da sabedoria humana em quatro frases, uma prescrição médica para a alma, um TETRAPHARMAKON que dizia:
1) Não há nada a temer quanto aos deuses;
2) Não há necessidade de temer a morte;
3) A Felicidade é possível;
4) Podemos escapar à dor.
Estoicismo
Marco Túlio Cícero
Em janeiro de 49 a.C., Júlio César decidiu-se por atravessar o Rubicão (alea jacta est), gesto que foi a gosta d’água no desencadeamento da guerra civil que o levaria a dominar todo o império. Venceu Pompeu em Farsala, instalou Cleópatra no trono do Egito, reorganizou o Oriente e derrotou os últimos adeptos do segundo triúnviro na África, em 46 a.C., e na Espanha, um ano depois. De volta a Roma em 45 a.C., começou a governar como déspota absoluto e tratou de eliminar os últimos adversários. Não suspeitava que isso teria importantes conseqüências para a história da filosofia.
Entre os adversários perseguidos estava Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), senador e figura proeminente da política romana nos anos anteriores. Obrigado a deixar os negócios públicos, Cícero recolheu-se à vida privada e retomou a meditação filosófica, de que já se ocupara num primeiro exílio, por volta de 51 a.C. O resultado foi um conjunto de obras, escritas em aproximadamente dois anos e que versavam sobre os mais variados assuntos: Sobre os Fins, Controvérsias Tusculanas e Sobre os Deveres tratam de problemas éticos; Os Tópicos e Os Acadêmicos abordam questões lógicas; A Natureza dos Deuses, Sobre a Arte Adivinhatória e Sobre o Destino são dedicados a temas da física.
Do ponto de vista da filosofia, essas são as principais obras escritas por Cícero no retiro forçado por César e vinham juntar-se a Sobre o Orador, escrito em 55 a.C., A República, redigida em 51 a.C., e Sobre as Leis, provavelmente da mesma época.
Esse conjunto de obras desempenharia papel de primeiro plano na história do pensamento porque fazia do latim um idioma filosófico. Pouco antes, Lucrécio tinha escrito o poema Sobre a Natureza, mas a obra não foi publicada senão após a morte do poeta e, ao que tudo indica, sob os cuidados de Cícero.
Apesar desse valor histórico, as obras de Cícero não contêm um pensamento original, limitando-se a amalgamar diferentes teorias filosóficas gregas. Cícero foi um típico eclético, discutindo os argumentos das diferentes doutrinas gregas correntes na época, sem vincular-se inteiramente a nenhuma.
Essas correntes ele tinha conhecido quando, na juventude, estudou em Atenas, antes de tornar-se conhecido advogado e homem público. Foi discípulo e amigo de epicuristas, estóicos, peripatéticos e acadêmicos. De todos eles Cícero retirou algumas idéias e compôs uma síntese que, além da importância pela criação de um vocabulário filosófico latino, constitui fonte de estudo de boa parte do pensamento clássico.
No que diz respeito às suas próprias posições doutrinárias, Cícero, em teoria do conhecimento, opôs-se tanto ao ceticismo radical de Pirro de Elis (360 – 270 a.C.) quanto ao dogmatismo extremado. Defendeu como critério de verdade o probabilismo do consenso universal, isto é, aquela posição que acha possível ao homem chegar a algum conhecimento das coisas, sem, no entanto atingir a verdade absoluta. A verdade estaria naquilo que pode ser aceito por todos. As razões dessa posição são colocadas menos num plano puramente lógico do que no terreno das necessidades práticas do homem. Para Cícero, o problema do conhecimento não pode ser solucionado exclusivamente em sua estrutura interna. O homem necessita, todavia, admitir como verdadeiras algumas noções sem as quais não é possível manter a coesão da sociedade.
Em moral, Cícero adere às doutrinas estóicas sem, entretanto, aceitar todo o rigor da concepção segundo a qual o exercício da virtude basta-se a si mesmo e consiste na conformidade da conduta humana às leis racionais da natureza.
Aceita essas idéias, mas exige que tais normas sejam validadas pelo consenso universal. Esse consenso universal articula-se em torno de algumas idéias que dão fundamento à vida moral e social, principalmente a da existência de Deus e sua providência. Tais noções seriam comprovadas pela consciência natural dos homens e pela constatação de que na natureza os fenômenos organizam-se em torno de fins, os quais supõem a existência de um fim último de todas as coisas. Outra idéia com a mesma função de fundamentar a vida social e moral é a da essência espiritual e divina da alma e sua imortalidade. Essa idéia encontrar-se-ia confirmada na preocupação do homem com sua vida futura.
Os estóicos
Depois de Cícero ter iniciado a história da filosofia em língua latina, formulando sua síntese eclética, o movimento de idéias mais importante dentro do pensamento romano foi o desenvolvimento das doutrinas estóicas, também originárias da Grécia, como o epicurismo e o ecletismo.
A escola estóica foi fundada por Zenão de Cicio (336 – 264 a.C.) e continuada por Cleanto de Assos (331 – 232 a.C.) e Crisipo de Solis (280 – 210 a.C). Posteriormente, a escola transformou-se, tendendo para uma posição eclética, com Panécio de Rodes (185 – 112 a.C.) e Possidônio de Apaméia (135 – 51 a.C.).
O estoicismo grego propõe uma imagem do universo segundo a qual tudo o que é corpóreo é semelhante a um ser vivo, no qual existiria um sopro vital (pneuma), cuja tensão explicaria a junção e interdependência das partes. No seu conjunto, o universo seria igualmente um corpo vivo provido de um sopro ígneo (sua alma), que reteria as partes e garantiria a coesão do todo. Essa alma é identificada, por Zenão, à razão, e assim o mundo seria inteiramente racional. A Razão Universal (Logos), que tudo penetra e comanda, tende a eliminar todo tipo de irracionalidade, tanto na natureza, quanto na conduta humana, não havendo lugar no universo para o acaso ou a desordem.
A racionalidade do processo cósmico manifesta-se na idéia de ciclo, que os estóicos adotam e defendem com rigor. Herdeiros do pensamento de Heráclito de Éfeso (séc. VI a.C.), os estóicos concebem a história do mundo como feita por sucessão periódica de fases, culminando na absorção de todas as coisas pelo Logos, que é Fogo e Zeus. Completado um ciclo, começa tudo de novo: após a conflagração universal, o eterno retorno.
Tudo o que existe é corpóreo e a própria razão identifica-se com algo material, o fogo. O incorpóreo reduz-se a meios inativos e impassíveis, como o espaço e o vazio; ou então àquilo que se pode pensar sobre as coisas, mas não às próprias coisas.
Nesse universo corpóreo e dirigido pelo fatalismo dos ciclos sempre idênticos, tudo existe e acontece segundo predeterminação rigorosa porque racional. Governada pelo Logos, a natureza é por isso justa e divina e os estóicos identificam a virtude moral com o acordo profundo do homem consigo mesmo e, através disso, com a própria natureza, que é intrinsecamente razão. Esse acordo consigo mesmo é o que Zenão chama “prudência” e dela decorrem todas as demais virtudes, como simples aspectos ou modalidades.
As paixões são consideradas pelos estóicos como desobediências à razão e podem ser explicadas como resultantes de causas externas às raízes do próprio indivíduo; seriam, como já haviam mostrado os cínicos, devidas a hábitos de pensar adquiridos pela influência do meio e da educação. É necessário ao homem desfazer-se de tudo isso e seguir a natureza, ou seja, seguir a Deus e à Razão Universal, aceitando o destino e conservando a serenidade em qualquer circunstância, mesmo na dor e na adversidade.
Uma nova lógica
Os estóicos gregos não se limitaram a formular uma física e uma ética. Elaboraram também uma teoria do conhecimento de acentuada originalidade. As três formariam um conjunto sistemático que expressaria, no plano do conhecimento, a mesma racionalidade encontrada na natureza.
A teoria do conhecimento consiste, para os estóicos, em vincular estreitamente a certeza e a ciência ao plano do conhecimento sensível. A base de qualquer conhecimento seriam as impressões recebidas pelos sentidos; mas já o nível do sensível estaria penetrado pela razão, sendo portanto predisposto à sistematização pela inteligência.
Ao lado das coisas sensíveis, os estóicos distinguem os “exprimíveis”, isto é, aquilo que se pode pensar e dizer sobre as coisas. Os “exprimíveis” seriam objeto da dialética, disciplina que se ocuparia dos enunciados verdadeiros ou falsos a respeito das coisas, e não sobre as próprias coisas.
Os mais simples enunciados, segundo os estóicos, são compostos por um sujeito (expresso por um substantivo ou um pronome) e um atributo (expresso por um verbo). Esses enunciados distinguem-se, assim, das proposições da lógica aristotélica, que estabelecem relações entre conceitos (por exemplo: “o homem é um animal racional”). Na lógica estóica, o sujeito é sempre singular (alguém, Pedro, etc.) e o atributo indica sempre algo que ocorre com o sujeito. As ligações entre os enunciados, portanto, nunca assumem o caráter de juízo categórico, permanecendo como relacionamento entre eventos, cada qual expresso por uma proposição simples (por exemplo: “Está claro, é dia”).
Os estóicos distinguem cinco tipos de juízos compostos que reúnem os enunciados simples. O juízo hipotético exprime relação entre antecedente e conseqüente (“Se há fumaça, há fogo”). O juízo conjuntivo simplesmente justapõe fatos (“É dia, está claro”). O juízo disjuntivo separa os enunciados, de modo que só um deles pode ser verdadeiro (“Ou é dia, ou é noite”). O juízo causal exprime relação de causa e efeito (“Está claro porque é dia”). Finalmente, o quinto tipo de juízo expressa a idéia de mais e menos (“Fica menos claro quando é mais noite”).
Sêneca – A medicina da alma
Não foi a lógica dos estóicos gregos, nem mesmo sua teoria do mundo físico, que sobretudo atraiu o interesse dos estóicos romanos. Foi antes sua moral da resignação, sobretudo nos aspectos religiosos que ela permitia desenvolver.
O primeiro representante do estoicismo romano, sem contar as idéias estóicas que se encontram no ecletismo de Cícero, foi Lucius Annaeus Seneca, nascido em Córdoba (Espanha), aproximadamente quatro anos antes da era cristã. Era filho de Annaeus Seneca (55 a.C.-39 a.D.) – conhecido como Sêneca, o Velho -, que teve renome como retórico e do qual restou uma obra escrita (Declamações). O futuro filósofo Sêneca foi educado em Roma, onde estudou a retórica ligada à filosofia. Em pouco tempo tornou-se famoso como advogado e ascendeu politicamente, passando a ser membro do senado romano e depois nomeado questor.
O triunfo político, no entanto, não se fazia sem conflitos e o renome de Sêneca suscitou a inveja do imperador Calígula, que pretendeu desfazer-se dele pelo assassinato. Sêneca, contudo, foi salvo por sua saúde frágil; julgava-se que ele morreria muito cedo, de morte natural. O próprio Calígula é que faleceria logo depois e Sêneca pôde continuar vivendo em relativa tranqüilidade. Não duraria esse período muito tempo. Em 41 d.C: foi desterrado para a Córsega, sob acusação de adultério, supostamente praticado com Júlia Livila, sobrinha do novo imperador Cláudio César Germânico. Na Córsega, Sêneca passaria quase dez anos em grande privação material.
Em 49 d.C., Messalina, primeira esposa do imperador Cláudio e responsável pelo exílio de Sêneca, caiu em desgraça e foi condenada à morte. O imperador Cláudio casou-se com Agripina e esta mandou chamar Sêneca para educar seu filho Nero. Em 54 d.C., quando Nero se torna imperador, Sêneca passa a ser seu principal conselheiro. Esse período estende-se até 62 d.C., ano em que sua estrela começa a perder o brilho junto ao despótico soberano. Sêneca deixa a vida pública e sofre a perseguição de Nero, que acaba por condená-lo ao suicídio, em 65 d.C.
As Cartas Morais de Sêneca, escritas entre os anos 63 e 65 e dirigidas a Lucílio, misturam elementos epicuristas com idéias estóicas e contêm observações pessoais, reflexões sobre a literatura e crítica satírica dos vícios comuns na época. Entre os seus doze Ensaios Morais, destacam-se Sobre a Clemência, cautelosa advertência a Nero sobre os perigos da tirania, Da Brevidade da Vida, análise das frivolidades nas sociedades corruptas, e Sobre a Tranqüilidade da Alma, que tem como assunto o problema da participação na vida pública. As Questões Naturais expõem a Física estóica enquanto vinculada aos problemas éticos.
Além dessas obras propriamente filosóficas, Sêneca escreveu ainda nove tragédias e uma obra-prima da sátira latiria, Apolokocintosis, que ridiculariza Nero e suas pretensões à divindade.
Todas essas obras revelam que Sêneca foi, sobretudo, um moralista. A filosofia é para ele uma arte da ação humana, uma medicina dos males da alma e uma pedagogia que forma os homens para o exercício da virtude. O centro da reflexão filosófica deve ser, portanto, a ética; e a física e a lógica devem ser consideradas como seus prelúdios.
Sua concepção do mundo repete as idéias dos estóicos gregos sobre a estrutura puramente material da natureza. Contudo, a razão universal dos gregos Cleanto e Zenão transforma-se em Sêneca num deus pessoal, que é sabedoria, previsão e vigilância, sempre em ação para governar o mundo e realizar uma ordem maravilhosa.
Marco Aurélio – O imperador filósofo
Cronologicamente, o segundo grande representante do estoicismo romano foi Epicteto (c. 50 – 130 ), escravo durante muitos anos e, posteriormente, professor de filosofia. Seu ensino foi recolhido pelo discípulo Ariano de Nicomédia, em oito livros. Chegaram até a atualidade quatro livros inteiros e apenas alguns fragmentos dos restantes.
Grande admirador de Epicteto foi o imperador Marco Aurélio Antonino, que, nas pausas tranqüilas de seu conturbado governo, se dedicou à reflexão filosófica e com isso tornou-se o terceiro e último grande expoente do estoicismo romano.
Marco Aurélio nasceu em 121, no seio de uma família aristocrática, e muito cedo perdeu os pais. Foi então adotado pelo tio, Aurélio Antonino. O tio tornar-se-ia imperador e nomearia Marco Aurélio seu sucessor, em 161.
Aos onze anos de idade, Marco Aurélio conheceu o estoicismo e adotou hábitos de vida austera, recomendados por aquela escola filosófica. Depois dos anos de formação passou a colaborar intimamente com o imperador, seu pai adotivo, ocupando o cargo de cônsul por três vezes. Em 161, Aurélio Antonino faleceu e Marco Aurélio tornou-se imperador.
O governo de Marco Aurélio – que se estendeu por quase vinte anos, até sua morte em 180 – foi perturbado por guerras sangrentas e prolongadas, com as conseqüentes dificuldades internas. Além disso, Roma foi vítima de inundações, tremores de terra e incêndios. Marco Aurélio conseguiu enfrentar todas as dificuldades, tendo sido excelente guerreiro e administrador e, ao mesmo tempo, humanizando profundamente o exercício do poder. Nos poucos momentos que os encargos de governo permitiam, recolhia-se à meditação filosófica e escrevia seus pensamentos em língua grega, que lhe parecia a mais apta a exprimir inquietações intelectuais e morais profundas. As Meditações (como posteriormente ficaram conhecidos aqueles pensamentos) são simples notas, apenas esboçadas.
O conteúdo das Meditações é a filosofia estóica, mas de um estoicismo bastante distante das doutrinas de Zenão, Cleanto e Crisipo. As especulações físicas e lógicas cedem lugar ao caráter prático dos romanos e ao aconselhamento moral. Em Marco Aurélio – como também nas Máximas de Epicteto – a questão central da filosofia é o problema de como se deve encarar a vida para que se possa viver bem. Esse problema assume a forma de intensa preocupação com o estado de sua própria alma, em virtude da natureza delicada e sensível do autor das Meditações, homem sobretudo religioso e pouco interessado na investigação científica. Por essa razão o estoicismo de Marco Aurélio freqüentemente apresenta discrepâncias em relação às suas origens gregas. Marco Aurélio não chegou a ser um pensador original e não procurou resolver as inconsistências de sua própria posição. Enquanto a ortodoxia estóica levava-o na direção de um credo materialista, seu sentimento religioso impelia-o no sentido da força moral e da benevolência. Por isso, as Meditações de Marco Aurélio expressam-se através de uma linguagem que, por um lado, parece pressupor a aceitação de um panteísmo puramente físico; por outro, abandona os dogmas da escola estóica para seguir os ditames do coração.
Por certo a verdadeira chave para compreensão das oscilações de Marco Aurélio deve ser procurada menos em suas características psicológicas do que nas circunstâncias históricas em que viveu. O império romano estava perdendo o antigo esplendor e a cultura clássica greco-latina mostrava os últimos sinais de vitalidade. Cada vez mais ganhava corpo uma nova concepção do mundo: o cristianismo.
Marco Aurélio expressa claramente essa etapa de transição. Nele a auto-suficiência do antigo estoicismo grego cede lugar à falta de confiança em si mesmo e à consciência das próprias imperfeições. Com isso antecipa a virtude cristã da humildade e pouco se distanciava da concepção de um Deus único, antropomórfico e pessoal.
Lázaro Curvêlo Chaves – 28 de setembro de 2004
Bibliografia:
O Epicurismo – Os Pensadores, Ed. Abril
Cícero, Sêneca, Marco Aurélio, Os Pensadores, Ed. Abril