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sexta-feira, novembro 8, 2024

O Preconceito Lingüístico no Brasil

No livro “Preconceito Lingüístico” o autor Marcos Bagno, defende com vigor a língua viva e verdadeiramente falada no Brasil.

O livro contém 183 páginas e é publicado pelas Edições Loyola (11ª edição, 2002). Está dividido em quatro partes e um anexo: I – A mitologia do preconceito lingüístico; II – O círculo vicioso do preconceito lingüístico; III – A desconstrução do preconceito lingüístico; e IV – O preconceito contra a lingüística e os lingüistas. O anexo refere-se à carta enviada pelo autor à revista Veja.

Para o autor “tratar da língua é tratar de um tema político”, já que também é tratar de seres humanos.

“O preconceito lingüístico está ligado, em boa medida, à confusão que foi criada, no curso da história, entre a língua e gramática normativa”

Marcos Bagno diz que a língua é como um rio que se renova, enquanto a gramática normativa é como a água do igapó, que envelhece, não gera vida nova a não ser que venham as inundações.

O preconceito lingüístico, vem sendo alimentado diariamente pelos meios de comunicação, que pretendem ensinar o que é “certo” e o que é “errado”, sem falar, é claro nos instrumentos tradicionais de ensino da língua, ou seja a gramática normativa e os livros didáticos.

Para superar os preconceitos lingüísticos, o autor começa por lembrar, catalogar e dissecar alguns mitos consagrados:

“A língua portuguesa apresenta uma unidade surpreendente” – o maior e mais sério dentre os outros mitos, por ser prejudicial à educação e não reconhecer que o português falado no Brasil é bem diversificado, mesmo a escola tentando impor a norma lingüística como se ela fosse de fato comum a todos os brasileiros. As diferenças de status social em nosso país, explicam a existência do verdadeiro abismo lingüístico entre os falantes das variedades não-padrão do português brasileiro que compõe a maior parte da população e os falantes da suposta variedade culta, em geral não muito bem definida, que é a língua ensinada na escola.

“Brasileiro não sabe português/Só em Portugal se fala bem português”- de acordo com o autor, essas duas opiniões refletem o complexo de inferioridade de sermos até hoje uma colônia dependente de uma país mais antigo e mais “civilizado”. O brasileiro sabe português sim. O que acontece é que o nosso português é diferente do português falado em Portugal. A língua falada no Brasil , do ponto de vista lingüístico já tem regras de funcionamento, que cada vez mais se diferencia da gramática da língua falada em Portugal. Na língua falada, as diferenças entre o português de Portugal e o português falado Brasil são tão grandes que muitas vezes surgem dificuldades de compreensão. O único nível que ainda é possível uma compreensão quase total entre brasileiros e portugueses é o da língua escrita formal, porque a ortografia é praticamente a mesma, com poucas diferenças. Concluí-se que nenhum dos dois é mais certo ou mais errado, mais bonito ou mais feio: são apenas diferentes um do outro e atendem às necessidades lingüísticas das comunidades que os usam, necessidades lingüísticas que também são diferentes.

“Português é muito difícil” – para o autor essa afirmação consiste na obrigação de termos de decorar conceitos e fixar regras que não significam nada para nós. No dia em que nossa língua se concentrar no uso real, vivo e verdadeiro da língua portuguesa do Brasil, é bem provável que ninguém continue a repetir essa bobagens. Todo falante nativo de um língua sabe essa língua, pois saber a língua, no sentido científico do verbo saber, significa conhecer intuitivamente e empregar com naturalidade as regras básicas de funcionamento dela. A regência verbal é caso típico de como o ensino tradicional da língua no Brasil não leva em conta o uso brasileiro do português. Por mais que o aluno escreva o verbo assistir de forma transitiva indireta, na hora de se expressar passará para a forma transitiva direta: “ainda não assisti o filme do Zorro!”

Tudo isso por causa da cobrança indevida, por parte do ensino tradicional, de uma norma gramatical que não corresponde à realidade da língua falada no Brasil.

“As pessoas sem instrução falam tudo errado” – Isso se deve simplesmente a um questão que não é linguística, mas social e política – as pessoas que dizem Cráudia, Praca, Pranta pertencem a uma classe social desprestigiada, marginalizada, que não tem acesso à educação forma e aos bens culturais da elite, e por isso a lingua que elas falam sobre o mesmo preconceito que pesa sobre elas mesmas, ou seja, sua língua é considerada “feia”, “pobre”, “carente”, quando na verdade é apenas diferente da língua ensinada na escola. Assim, o problema não está naquilo que se fala, mas em quem fala o quê. Neste caso, o preconceito lingüístico é decorrência de um preconceito social.

“O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão” – O que acontece com o português do Maranhão em relação ao português do resto do país é o mesmo que acontece com o português de Portugal em relação ao português do Brasil: não existe nenhuma variedade nacional, regional ou local que seja intrinsecamente “melhor”, “mais pura”, “mais bonita”, “mais correta” que outra. Toda variedade lingüística atende às necessidades da comunidade de seres humanos que a empregam. Quando deixar de atender, a ela inevitavelmente sofrerá transformações para se adequar à novas necessidades.

“O certo é falar assim porque se escreve assim” – o que acontece é que em toda língua mundo existe um fenômeno chamado variação, isto é, nenhuma língua é falada do mesmo jeito em todos os lugares, assim como nem todas as pessoas falam a própria língua de modo idêntico. A ortografia oficial é necessária, mas não se pode ensiná-la tentando criar uma língua falada “artificial” e reprovando como “erradas” as pronúncias que são resultado natual das forças internas que governam o idiomas.

“É preciso saber gramática para falar e escrever bem” – Segundo Mário Perini em Sofrendo a gramática (p.50), “não existe um grão de evidência em favor disso; toda a evidência disponível é em contrário”. Afinal, se fosse assim, todos os gramáticos seriam grandes escritores, e os bons escritores seriam especialistas em gramática.

A gramática normativa é decorrência da língua, é subordinada a ela, dependente dela. Como a gramática, porém, passou a ser um instrumento de poder e de controle. A língua passou a ser subordinada e dependente da gramática.

“O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social” – esse mito como o primeiro são aparentados porque ambos tocam em sérias questões sociais. A transformação da sociedade como um todo está em jogo, pois enquanto vivermos numa estrutura social cuja existência mesma exige desigualdades sociais profundas, toda tentativa de promover a “ascensão” social dos marginalizados é, senão hipócrita e cínica pelo menos de uma boa intenção paternalista e ingênua.

O autor do livro descreve a existência de um círculo vicioso de preconceito lingüístico composto de três elementos: o ensino tradicional, a gramática tradicional e os livros didáticos. Na visão de Bagno, isso não funciona assim, “a gramática tradicional inspira a prática de ensino, que por sua vez provoca o surgimento da indústria do livro didático, cujos autores, fechando o círculo, recorrem à gramática tradicional como de fonte de concepções e teorias sobre a língua”. A maneira como o ensino é administrado tem sido estudada pelo Ministério da Educação e nos Parâmetros curriculares nacionais” reconhece que há “muito preconceito decorrente do valor atribuído às variedades padrão e ao estigma associado às variedades não-padrão, consideradas inferiores ou erradas pela gramática. Essas diferenças não são imediatamente reconhecidas e, quando são, são objeto de avaliação negativa. Bagno cita o quarto elemento como sendo os comandos paragramaticais, ou seja todo esse arsenal de livros, manuais de redação de empresas jornalísticas, programadas de rádio e de televisão, colunas de jornal e de revista, CD-ROMS, “consultórios gramaticais” por telefone e por a afora, que é a “saudável epidemia” citada por Arnaldo Niskier.

De acordo com Bagno, o formidável poder de influência dos meios de comunicação e dos recursos da informática poderia ser de grande utilidade se fosse usado precisamente na direção oposta: na destruição dos velhos mitos, na elevação da auto-estima lingüística dos brasileiros, na divulgação do que há de realmente fascinante no estudo da língua.

Bagno cita o professor Napoleão Mendes de Almeida

Falecido em 1998, como o mais respeitado e renomado propagador do preconceito lingüístico por meio de comandos paragramaticais no Brasil durante muito tempo. Ele nunca escondeu sua intolerância e seu autoritarismo em suas colunas de jornal, como também o seu profundo preconceito social registrado no seu Dicionário de questões vernáculas. Para Napoleão, a literatura brasileira morreu com Machado de Assis, tudo que veio com o Modernismo e a modernidade é desprezível. Carlos Drummond de Andrade, nem pensar. Napoleão o condenou aos infernos só porque trocou o verbo haver pelo ter no verso ” No meio do caminho tinha uma pedra”.

Além de Napoleão, Marcos Bagno cita também Luiz Antônio Sacconi que escreveu o livro Não erre mais! Um festival de besteiras que é consumido com todo o tipo de expressões preconceituosas.

Mas segundo Bagno, o problema se estende à imprensa. Ele destacou uma coluna da Professora Dad Squarisi, que escreve no Correio Brasiliense as Dicas de Português, e analisou. É preciso reconhecer a capacidade da Professora Dad e a utilidade dela no resultado.

Bagno faz uma avaliação rigorosa a uma coluna publicada no Correio Brasiliense em 26.06.1996 e republicada no Diário de Pernambuco no dia 15.11.1998, com o título Português ou Caipirês?, a que se referia à viagem do presidente Fernando Henrique Cardoso à Portugal, quando acusou os brasileiros de serem todos caipiras.

O texto de Bagno aponta todos os preconceitos praticados pela autora da coluna contra o povo brasileiro, sem esquecer da questão gramatical.

Dad afirma que o brasileiro, caipira, jeca-tatu, capial, matuto, “sem nenhum compromisso com a gramática portuguesa, não faz concordância em frases como vende-se carros”. Segundo Bagno “a questão da partícula se em enunciados do tipo acima vem sendo investigada há muito tempo nos estudos gramaticais e lingüísticos brasileiros. O que todos os estudiosos concluem é que, na língua falada no Brasil, no português brasileiro, ocorreu uma reanálise sintática nesse tipo de enunciado, isto é, o falante brasileiro não considera mais esses enunciados como orações passivas sintéticas. O que a gramática normativa insiste em classificar como sujeito a gramática intuitiva do brasileiro interpreta como objeto direto.

Mas Bagno informa ainda que os lingüistas Manoel Said Ali, Antenor Nascentes e Joaquim Mattoso Câmara Jr., reconhecem o fenômeno e que em todas as classes sociais o brasileiro escreve o verbo no singular e põe o substantivo no plural. Ele mostra também que em Portugal expõe este mesmo “defeito” gramatical. Bagno quer dizer com esse exemplo que as normas cultas são várias e mudam de acordo com o uso da língua. A Rigidez na defesa de certos dogmas pode não apenas reforçar preconceitos como expor os especialista a uma situação indesejável.

Não podemos deixar de reconhecer a existência de uma crise no ensino da Língua Portuguesa, nascida na recusa dos defensores da gramática tradicional em acompanhar os avanços da ciência da linguagem. Para se mudar esse quadro é necessário uma mudança de atitude, perder essa idéia de “certo” e “errado” e refletir a respeito dessas dez cisões propostas por Bagno para um ensino mais consciente e menos preconceituoso:

1) Conscientizar-se de que todo falante nativo de uma língua é um usuário competente dessa língua, por isso ele SABE essa língua. Com mais ou menos quatro anos de idade, uma criança já domina integralmente a gramática de sua língua. Sendo assim,

2) Não existe erro de português. Existem diferentes gramáticas para as diferentes variedades de português, gramáticas que dão conta dos usos que diferem da alternativa única proposta pela Gramática Normativa.

3) Não confundir erro de português (que, afinal, não existe) com simples erro de ortografia. A ortografia é artificial, ao contrário da língua, que é natural. A ortografia é uma decisão política, por isso ela pode mudar de uma época para outra. Línguas que não têm sistema escrito nem por isso deixam de ter sua gramática.

4) Tudo o que os gramáticos conservadores chamam de erro é na verdade um fenômeno que tem uma explicação científica perfeitamente demonstrável. Nada é por acaso.

5) Toda língua muda e varia. O que hoje é visto como certo já foi erro no passado. O que hoje é visto como erro pode vir a ser perfeitamente aceito como certo no futuro da língua.

6) A língua portuguesa não vai nem bem, nem mal. Ela simplesmente VAI, isto é, segue seu caminho, transformando-se segundo suas próprias tendências internas.

7) Respeitar a variedade lingüística de uma pessoa é respeitar a integridade física e espiritual dessa pessoa como ser humano digno de todo respeito, porque

8) A língua permeia tudo, ela nos constitui enquanto seres humanos. Nós somos a língua que falamos. Enxergamos o mundo através da língua. Assim,

9) O professor de português é professor de TUDO. Por isso talvez devesse ter um salário igual à soma dos salários de todos os demais professores.

10) Ensinar bem é ensinar para o bem. É valorizar o saber intuitivo do aluno e não querer suprimir autoritariamente sua língua materna, acusando-a de ser “feia” e “corrompida”. O ensino da norma culta tem de ser feito como um acréscimo à bagagem lingüística da pessoa e não como uma substituição de uma língua “errada” por uma “certa”.

Na quarta parte do livro o autor trata do preconceito contra a lingüística e os lingüistas. De acordo com Bagno, os termos e conceitos da Gramática Tradicional estabelecidos há mais de 2.300 anos, continuam a ser repassados praticamente intactos de uma geração de alunos para outra, como se desde aquela época remota não tivesse acontecido nada na ciência da Linguagem.

Com referência a lingüística ele diz que como toda a ciência, é o lugar das surpresas, das descobertas, do novo, da substituição de paradigmas, da reformulação crítica das teorias. Mesmo com todas essas inovações , a gramatical tradicional ainda encontra apoio e defesa quase que irracional.

A atividade dos lingüistas brasileiros, segundo Marcos Bagno, vem sofrendo ataques contra qualquer tentativa de democratização do saber e da sociedade. Os atuais detratores da ciência lingüística acusam os estudiosos da linguagem de defenderem o não-ensino das formas padronizadas do português, numa tentativa detalhada e sofisticada em duas ou três afirmações toscas e propositadamente deturpadas.

Bagno cita em seu livro um caso de preconceito contra os lingüistas, por absolutas desconsideração e omissão. Refere-se ao projeto de lei (de 1999) do deputado Aldo Rebelo (PcdoB/SP) sobre “a promoção, a proteção, a defesa e o uso da língua portuguesa, que embora tratando de assuntos que dizem respeito ao campo de investigação da lingüística teórica e aplicada, em nenhum momento faz referência aos cientistas da linguagem, às pessoas que se dedicam profissionalmente ao estudo da língua.

Além de Aldo Rebelo, Bagno cita nomes como Napoleão que lançava seu ataques contra o lingüista e as concepções obscurantistas sobre a ciência da linguagem de Pasquale Cipro Neto.

Por fim o Professor Marcos Bagno em uma carta enviada à Revista Veja, diz que nossos meios de comunicação de massa se encontram na contramão da História quando o assunto é língua. Pois a mídia continua a dar as costas à investigação científica da linguagem, preferindo consagrar-se a divulgação dos “mitos” em nossa língua, deixando espaço para alguns oportunistas com atitudes anticientíficas dogmáticas e até obscurantistas a respeito da língua e seu ensino. E solicita então que seja concedido um espaço aos verdadeiros especialistas, às pessoas que dedicam toda a sua energia, vida e inteligência ao estudo dos fenômenos da linguagem humana e à proposição de novos métodos de ensino, capazes de dar voz aos que, por força de tantas estruturas sociais injustas, sempre foram mantidos em silêncio.

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