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sábado, dezembro 21, 2024

Os Ratos – Dyonélio Machado

Os Ratos – Dyonélio Machado

Publicado em 1937 e vencedor do Prêmio Machado de Assis da época, Os Ratos é um dos tesouros valiosíssimos da literatura brasileira, ainda mais por causa de seu final surpreendente.

Sua narrativa é apresentada numa linguagem simples, direta, rápida, com um tal domínio da expectativa do leitor que lembra o trabalho de Camilo Castelo Branco em Amor de Perdição. Cada capítulo tem sua própria célula de suspense, que será resolvida no máximo no seguinte, em que obrigatoriamente surgirá outra.

Tudo se inicia com a cobrança de uma dívida que Nazazieno, o protagonista, tem com o leiteiro. É feita de forma tão escandalosa que chega a ser acompanhada por toda a vizinhança curiosa. Recebe então o prazo de um dia para regularizar sua situação. Começa a partir daí sua via-crúcis para obter de alguma forma um empréstimo.

A primeira possibilidade é pedir para o diretor da repartição pública na qual trabalha (é interessante notar como, na descrição do local em que trabalha, há uma depreciação do funcionalismo público, principalmente em relação à sua morosidade e ineficiência, que mergulha seus trabalhadores numa atividade (ou inatividade) vazia e inútil. Em alguns aspectos lembra aspectos do cotidiano de Belmiro, protagonista de O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos). Em outra ocasião, durante a doença do filho do protagonista, o superior havia-lhe ajudado financeiramente. O texto menciona, meio que despreocupadamente, os comentários jocosos e até sarcásticos que circularam com relação ao seu caráter mão aberta para com os subordinados. É uma pista do narrador para o que está para acontecer.

No entanto, as dificuldades já se mostram enervantes: o homem não está facilmente disponível, sempre metido em reuniões. Só no final da manhã toma coragem para fazer o seu pedido, ainda que na frente de outros – é vexatoriamente recusado. O dia inteiro aquela cena, o riso dos acompanhantes do diretor, a advertência amistosa, mas humilhante, não sairão da mente de Nazazieno.

Durante o horário de almoço tenta encontrar o Duque, amigo malandro que sempre sabia se virar em situações dessa espécie. Encontra apenas o Alcides, que entra na peripécia financeira. Conta ao agoniado que havia feito uma transação comercial da qual um dos favorecidos lhe devia dinheiro. Aconselha, pois, o protagonista a resgatar essa dívida e daí conseguir o de que precisa.

Frustrantemente, a pessoa cobrada defende-se dizendo que não tinha mais débito nenhum, que cabia à outra parte da negociação, um diretor de banco estrangeiro, pagar. Nazazieno começa a se sentir logrado. Perdeu praticamente boa parte do horário de almoço e não havia adquirido o tão sonhado dinheiro. Não retorna à repartição, voltando a procurar Alcides, não o achando. A fome começa a apertar.

Ousa tratar diretamente com o banqueiro, mas não dá certo, pois é informado de que estava de viagem. Volta às suas andanças em busca do Alcides, quando encontra um colega e pede-lhe emprestado o suficiente para almoçar. A tarde já estava chegando à sua metade. E justamente a metade da quantia solicitada é cedida.

Nota-se aqui uma das explicações para o importantíssimo título do romance, pois anuncia uma situação de rebaixamento, que vai ser piorada no decorrer da trama. E o mais incrível é que quanto mais Nazazieno se movimenta em busca do dinheiro que vai salvar sua reputação, mais ele vai se humilhando, mais vai colocando na lama sua honra e dignidade.

Para complicar, com o dinheiro obtido decide ir a um cassino clandestino. Começa a ganhar, mas acaba perdendo no vício da jogatina. Enfim, não tem nem como almoçar.

Volta a suas caminhadas pela cidade. É quando encontra num bar finalmente Alcides, que lhe informa que Duque está no mesmo recinto, em companhia de uma figura de aparência respeitável, Dr. Mondina. Em pouco tempo, unem-se os quatro em busca de uma solução para o problema agonizante. Iniciam uma peregrinação de agiota em agiota, cada vez mais degradante. Seu rebaixamento pode ser visto não só pelo fato de ser-lhe mais de uma vez atribuída a expressão “focinho”, mas também por sua extrema submissão e passividade, não agindo mais, passando a ser guiado pelos outros três personagens, que cuidam de sua vida, de seu destino, de sua dívida.

Conseguem no final concretizar um negócio bastante complicado. Graças a Dr. Mondina, resgatam uma penhora de Alcides, que era um anel de bacharel. Ainda com a ajuda da figura importante, que receava estar sendo enganada, empenha novamente o objeto, obtendo dinheiro suficiente não só para saldar a dívida, mas para algumas despesas extras. Nazazieno resgata o sapato da esposa, que estava no conserto há tempos. Compra dois bonecos para o filho. Ainda adquire manteiga, queijo e vinho (o engraçado é que os dois primeiros itens tinham sido, na manhã do mesmo dia, considerados supérfluos e, portanto, seriam cortados das despesas familiares. O leite seria o terceiro. A narrativa efetua, nesse aspecto, uma ironia que diminui a personagem. Basta lembrar, também, que a bebida láctea, desencadeadora de todo o processo decadente de Nazazieno, é constantemente lembrado. No bonde, durante a ida para o trabalho, flagra dois passageiros conversando, um deles informando que o leite era a única coisa que tinha como almoço. O protagonista acha aquilo indigno e absurdo. No entanto, depois de um dia inteiro sem comer, o que lhe pagam como janta é justamente o tal líquido. Talvez por isso lhe tenha embrulhado o estômago), o que lhe permite, voltando para casa, um jantar um pouco mais folgado.

Esgotado pelo dia massacrante, vai mais cedo para cama. No entanto, começa um processo torturante, pois não mergulha no sono. Horas se passam e não consegue adormecer. Há, nesse aspecto, uma seqüência de capítulos em que acompanhamos os pensamentos de Nazazieno (a sondagem psicológica é um dos traços marcantes de Dyonélio Machado. Imprime uma dinâmica narrativa que recupera o passado da personagem (o mal-estar de estar vestido de santo como pagamento de promessa da mãe ou a frustração por não encontrar garotos que antes brincavam na rua). Estabelece-se assim uma relação de paralelismo com o presente, explicando-o ou até mesmo facilitando a análise da personalidade do protagonista).

Quando finalmente está começando a embarcar no sono (será que já não o havia mesmo?), surpreende-se com um ruído baixo e intermitente. Sobressalta-se quando põe em mente, pelos guinchos, que se tratava de ratos infestando o local, principalmente o comedouro (refeitório ou sala de jantar. Provavelmente esse arcaísmo deva ser um regionalismo), onde justamente estava, numa mesa, ao lado do pote em que o leiteiro toda manhã despejava o seu produto, o tão precioso dinheiro. E o barulho que ouvia era justamente de eles estarem roendo algo. Desconfia que estavam destruindo justamente o maço que fora deixado lá para que o entregador pegasse e considerasse saldada a dívida.

Apesar de fato tão grave, o protagonista não consegue forças para se levantar e verificar se o que desconfiava estava acontecendo. Está dominado ou pelo cansaço produzido pelo dia ou por sua indolência natural. Tal atitude, qualquer que seja a origem, explica não só o seu caráter, mas até o motivo pelo qual havia chegado a situação tão pecaminosa.

Por fim, a claridade da manhã já se manifesta. Ouve a porta do comedouro abrir, o leiteiro entrar, percebe uma pausa (provavelmente de surpresa ao encontrar o dinheiro), o barulho do leite sendo despejado e a saída do trabalhador. Tudo parecia acabar bem (se é que não se sonhava).

O caráter aberto do final do conto, que potencializa sua literariedade, só perde para a simbologia cruel, já apontada acima, do título do livro. A idéia de ratos aproveitarem-se da escuridão para atacarem o dinheiro é uma representação cabal de tudo o que ocorrera no dia de Nazazieno. A relação mais óbvia é estabelecida com os poderosos (agiotas, joalheiros, estelionatários), que se aproveitavam das dificuldades financeiras alheias. Mas é possível também comparar aos oprimidos, que eram submetidos a condições humilhantes de sobrevivência, igualando-se a roedores.

Enfim, há aqui uma cruel crítica à maneira como o dinheiro acabou se tornando a mola propulsora das relações sociais, comandando a respeitabilidade, a ética, a dignidade e até injusta e facilmente, quando não arbitrária e despoticamente, degradando-as, detonando-as. Em suma, todos esses aspectos fazem do Os Ratos uma das obras mais nobres de nossa literatura.

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