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sábado, dezembro 21, 2024

Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez – Tabajara Ruas

Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez – Tabajara Ruas

A obra de Tabajara Ruas se caracteriza pela desconstrução, não aquela preconizada pelos grupos pós-modernistas, voltados pela homogeinização do discurso, mas a que dá nova forma a realidades assumidas sem muita crítica.

Aspectos estruturais
O romance é narrado em primeira pessoa, ou seja, o narrador é protagonista da ação. Trata-se, todavia, de romance de cunho memorialístico: o narrador, hoje, conta fatos relativos a seu passado. Este passado resume-se, no eixo principal do livro, em um período de pouco mais de 24 horas, com coordenadas de tempo e espaço bem definidas: o ano é de 1957 e a localidade é Uruguaiana, na fronteira gaúcha com a Argentina. Assim, o narrador – cujo nome em nenhum momento é revelado – relembra os seus treze anos de idade e os acontecimentos que circundam o retorno de Juvêncio Gutierrez, seu tio, irmão de sua mãe, desde a noite de sexta-feira até a madrugada de domingo. Em meio a esta história principal, o narrador, vez por outra, insere passagens de outras épocas, ora em situações em que ele era mais novo, ora ele sendo já adulto, trinta anos depois. O romance é dividido em três capítulos. No primeiro, a situação inicial é apresentada: a tensão que toma conta do protagonista – e da cidade – como o anúncio do retorno do contrabandista Juvêncio Gutierrez; o capítulo encerra antes do jogo de futebol decisivo na escola. No segundo, ocorre a final do campeonato, o cerco a Juvêncio Gutierrez na estação e – surpresa – a escapada inicial do contrabandista. No terceiro e último, há a descoberta da morte de Juvêncio, o impasse entre o pai do protagonista e o delegado pela liberação do corpo e a lição definitiva aprendida pelo garoto.

Enredo
Capítulo 1
Conforme dito acima, o protagonista conta que estava “no inverno dos meus treze anos”, vivia com a família em Uruguaiana, cidade, naquela época, com 30 mil habitantes. O narrador anuncia que seu tio Juvêncio Gutierrez era contrabandista e havia fugido para a Argentina. Através de um amigo do tio, “seu Domício”, a família fica sabendo, numa sexta-feira à noite, chuvosa, que Juvêncio Gutierrez voltaria no trem das três da tarde do dia seguinte. E o dia seguinte, sábado (o último de setembro de 1957), era também o dia da decisão do campeonato de futebol do colégio onde estudava o narrador. Ao acordar, pela manhã, já sentia ansiedade pelo jogo. Neste momento, duas histórias correm paralelas na vida do narrador; de um lado, a preocupação com a partida, o encontro com os colegas de time – Bolão e Feito às Pressas; de outro, a preocupação com a chegada do tio, a promessa do delegado Facundo de eliminá-lo, o comentário que transita pela cidade a respeito da chegada do contrabandista. o narrador fala também de sua paixão por Beatriz. Entre outras informações, há a história, ainda sem esclarecimentos, de um verão, no qual o tio foi ferido, episódio que causou perturbação em seu pai. Em rápida quebra da seqüência cronológica, o narrador pula trinta anos, é adulto, e bebe no bar Viscaya, no bairro Petrópolis de Porto Alegre, com o irmão Vladimir, “mais gordo e mais triste”.

Capítulo 2
A narrativa encontra-se nos momentos que antecedem a partida decisiva. O irmão Arno, professor, dá a preleção. Enquanto se dirige ao campo, caminhando, o narrador enxerga, ao longe, o trem carregador de gado, vindo de Curuzu Quatiá, Argentina, aproximando-se da fronteira. O jogo está para começar e o menino tira da cabeça a chegada do tio, a armadilha em que ele certamente cairá. Começa o jogo, saída para o adversário (“terceiro Científico”), o narrador olha para os lados do trem, a bola vai para seu lado, ele, entre o trem e a jogada, vacila…Gooool do adversário. Seu colega Bolão exige concentração. Assim, o narrador vai alternando momentos da partida (faltas violentas, bolas na trave, escapadas), com a chegada do trem na estação brasileira, a esta altura repleta de brigadianos. Termina o jogo com a derrota do time do narrador por 1 a 0. Seu colega Bolão desafia o capitão adversário, Bento, para uma brigas à noite, na praça. Finda a tensão do jogo, permanece a expectativa quanto ao que aconteceria com o tio. A cidade comenta: “Teu tio tá enrascado, guri”, diz o taxista. Sabe-se, então, que Juvêncio Gutierrez está cercado no armazém da estação, mas não se entrega. Em casa, a mãe do menino e sua amiga Ester (ex-namorada de Juvêncio Gutierrez) aguardam, em alta tensão, o desenrolar dos acontecimentos. Aqui, o menino confessa uma paixão secreta pôr Ester. Já estamos no final da tarde. O cerco é transmitido pelo rádio. A família vai até a estação. A polícia vai invadir o armazém. Os brigadianos invadem e Juvêncio Gutierrez não está mais lá. O delegado Facundo ameaça a família. No final do capítulo, sabe-se que, até o casamento dos pais do narrador, Juvêncio Gutierrez era homem honesto. Semanas após, larga tudo e vira contrabandista.

Capítulo 3
À noite, o narrador vai ao cinema. Na saída, encontra Beatriz, sai com ela, ficam sozinhos, trocam carícias. Quando vai à praça para o duelo Bolão/Bento já há notícias da descoberta de Juvêncio Gutierrez. Houve tiroteio. De repente, os cavalos do Cel. Fabrício, que vinham no mesmo trem do tio, correm soltos pela praça. Fica esclarecido, numa digressão do narrador, que o episódio do ferimento do tio, ocorrido em um verão passado, ocasionou perturbação no pai porque a mãe foi para o interior tratar de Juvêncio Gutierrez. Enquanto isso, o narrador vai ao Cabaré do Ivo, mas continua com a cabeça no tio. Revelam-se, aqui, o caso do tio com Ester e a figura do Ivo , dono do cabaré, como “protetor dos pobres”, no estilo dos traficantes de hoje. No cabaré, chega Martha Rocha, o homossexual, anunciando um “baita tiroteio”. Ninguém sabe – até hoje – o que realmente aconteceu. Aqui, o narrador afirma que volta à sua infância nos momentos de mediocridade do mundo. Voltando para casa, o menino percebe luzes “insuportáveis”, o choro de Ifigênia. Ele pressente a morte. Em meio ao silêncio, o pai resolve ir buscar o corpo. A mãe reage, há discussão. O pai desiste, para mais tarde, retomar a idéia. O narrador-menino vai junto. No necrotério, recusam-se a entregar o corpo de Juvêncio Gutierrez. “Só com ordens do delegado”.

O pai vai ao delegado, o qual demonstra autoritarismo e prepotência. O que o delegado Facundo não espera, acontece: o pai do menino resolve enfrentá-lo. A tensão chega ao limite, quando o delegado ameaça atirar e o pai o desafia a fazê-lo.

O coronel Fabrício, criador de cavalos, acomoda: “Entrega o corpo, Tilico”(esta é uma passagem genial: dizendo ao delegado para entregar o corpo, e ainda chamando-o pelo apelido de Tilico, o pecuarista mostra quem é que, verdadeiramente, manda).

Assim carregam o corpo, crivado de balas, para velório e enterro. No trecho final da ação, o rengo Maidana, um dos amigos de Juvêncio Gutierrez, convida o menino para ir ao Bar do Átila. Este recusa. A reflexão do narrador adulto é a de que Maidana o convidava para o mundo de Juvêncio Gutierrez, simbolizado no bar do Átila. Não é o mundo do narrador. Mas, reconhece, o episódio Gutierrez foi decisivo – um aprendizado – na trajetória de sua vida.

Comentário
Um aprendizado. Esta pode ser a palavra que sintetiza o romance. O episódio Juvêncio Gutierrez expõe ao menino variados aspectos da condição humana: valentia, honra, medo, arrogância, ousadia, fraqueza, dúvida, amor, emoção, autoritarismo, tensão. Ao final do romance, a reflexão do narrador, já adulto, e portanto em condições de elaborar e nomear a grande rede de sensações em que esteve envolvido aos treze anos, é cristalina: seu coração espalhara-se em um milhão de fragmentos. E, em seguida, a frase definitiva: “É desde aí que vago pelo mundo, a cata destes fragmentos”.

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