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sábado, dezembro 21, 2024

ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA – CECÍLIA MEIRELLES

Romanceiro da Inconfidência – Cecília Meirelles

Podemos dividir os fatos que compõem o Romanceiro em três partes ou ciclos:

a) ciclo do ouro;

b) ciclo do diamante;

c) ciclo da liberdade ou inconfidência com sua ascensão e queda.

Aí parece haver uma gradação proposital: ouro/diamante/liberdade.

Como o ouro e o diamante, a liberdade brilhou intensamente nas Minas Gerais, mas como o ouro e o diamante, a liberdade só trouxe desgraças, masmorras e mortes….

a) Ciclo do ouro

O cenário colocado para o ciclo do ouro prenuncia também o ciclo da liberdade, no qual “a mão do Alferes de longe acena” como a querer dizer: Adeus! que trabalhar vou para todos!…

Mas essa mão que acena à liberdade e ao homem livre será enforcada mais tarde. Por enquanto, vejamos o alvorecer do ouro que vai brilhar intensamente nas Minas Gerais, despertando a cobiça e ganância dos homens e, quem sabe, o sonho de liberdade dos inconfidentes que nasceria também do ouro da terra.

Descobre-se o ouro e, por causa dele, o homem vai matando animais, pessoas, florestas e tudo que lhe atravessa o caminho. Desbrava-se a mata. Surgem montanhas douradas de ouro e de cobiça que despertam uma verdadeira alucinação:

Selvas, montanhas e rios
estão transidos de pasmo.
É que avançam, terra adentro,
os homens alucinados. (Romance I)

E gerações e mais gerações de netos afundariam nesse abismo:

Que a sede de ouro é sem cura,
e, por ela subjugados,
os homens matam-se e morrem,
ficam mortos, mas não fartos. (ib .ib)

Como o ouro que brota da terra, brotam também “as sinistras rivalidades”, ladrões e contrabandistas, – um clima de intranqüilidade:

todos pedem ouro e prata,
e estendem punhos severos,
mas vão sendo fabricadas
muitas algemas de ferro. (Romance II)

E por amor, pelo ouro, uma donzela é assassinada pela mão de seu pai. O ouro não permitia que a donzela acenasse a enasse a um amor “de condição desigual” o seu lencinho” de sonho e sal”

Surge Felipe dos Santos, que assanha a fúria do Conde de Assumar. É morto e esquartejado, mas o herói que tomba no Arraial do Ouro Podre ficará como exemplo perene de força e de coragem para os que virão.

O tirano conde haveria de chorar porque quem ri, chora também. O Brasil ainda era criança – um “menino” apenas. Nasceriam outros como Felipe dos Santos:

Dorme, meu menino, dorme,
– que Deus te ensine a lição
dos que sofrerem neste mundo
violência e perseguição
Morreu Felipe dos Santos;
outros, porém, nascerão. (Romance V)

Cria-se o quinto do ouro, cobrado a ferro e fogo: a Coroa precisava de ouro. Há logros: D. Rodrigo César e Sebastião Fernandes enviam para a coroa caixotes selados com “grãos de chumbo” em vez de grãos de ouro.

Ai, que o Monarca procura
os que vão ser castigados.

E o “quinto falsificado” se tornaria o décuplo de forcas e degredos para a dourada colônia! Pela madrugada fria, rompe o canto do negro no serviço de catar o ouro, enquanto o patrão dorme e sonha. O negro pena e chora, canta e ri na saudade da serra, na imensidão da terra. E na sua vida escrava, ele erra sem terra, sem serra, sem nada:

(Deus do céu, como é possível!
penar tanto e não ter nada!) (Romance VII)

O ouro lhe tiraria o “t” da terra e o “s” da serra e ele erra cativo, sem liberdade, com os elos de ferro da escravidão…

Mas o ouro que brotava da terra não cativara apenas o preto, como Chico, que também já fora rei “lá na banda em que corre o Congo”: também os brancos foram atirados naquela lama que alimentava a ganância de reis e rainhas:

Hoje, os brancos também, meu povo,
são tristes cativos. (Romance VIII)

Santa Ifigênia, princesa núbia, protetora dos negros, desce às minas “vira-e-sai”, depois de amenizar o sofrimento deles.

As pessoas, por causa do ouro, iam-se embrutecendo: movido pelo ódio, um contratador, quase assassinou um ouvidor, dentro de uma igreja, porque este, enamorado, arremessara uma flor a uma donzela.
Os filhos do almotacé (inspetor de pesos e medidas), sete crianças, rezam diante de Nossa Senhora da Ajuda. Joaquim José é uma delas.

As crianças pedem à Virgem que o salve “do triste destino que vai padecer”. Será em vão. A virgem não poderá atendê-los, mesmo sendo crianças. Mais forte do que um pedido de criança é o destino traçado para um homem! Mesmo sendo seis e irmãos do sentenciado!

(Lá vai um menino
entre seis irmãos.
Senhora da Ajuda,
pelo vosso nome,
estendei-lhe as mãos!) (Romance XII)

O pedido agora (entre parênteses) é da poetisa à Virgem. Não será atendida: mais forte do que o pedido de um poeta é o destino traçado para um homem!

Mas, por enquanto, reina a bonança: “os tempos são de ouro”. A tempestade virá depois, em 1792, com a execução.

Antes de chegar a forca, porém, outro metal brilhará intensamente nas Minas Gerais: os diamantes do Tejuco, depois Diamantina.

b) Ciclo do diamante

Continua a corrida alucinante. Agora é a vez do diamante nas regiões do Serro Frio e do Tejuco, onde vive o contratador João Fernandes, “dono da terra opulenta”.

Chega às suas terras, com o fim de persegui-lo, o Conde de Valadares, homem enganoso e fingido. Hospeda na casa de João, que lhe abre a casa e o coração das mulatas, menos o de Chica da Silva. Sua riqueza é imensa e o fingido conde suspira de cobiça:

Deste tejuco não volto
sem ter metade das lavras,
metade das lavras de ouro,
mais outro tanto das catas;
sem meu cofre de diamantes,
todos estrelas sem jaça,
– que para os nobres do Reino
é que este povo trabalha! (Romances XIII)

O romance XIV apresenta Chica da Silva no seu império de luxo, resplandecente de ouro e diamante. Comparada à rainha de Sabá, ela tinha mais brilho que Santa Ifigênia, a princesa núbia, em dias de festa:

(Coisa igual nunca se viu.
Dom João Quinto, rei famoso,
não teve mulher assim!)

Vendo o conde tão interessado pelo João, Chica cisma nessa falsa amizade e previne a João Fernandes:

Hoje, todo o mundo corre,
Senhor, atrás de riqueza. (Romance XV)

Dito e feito: o conde, traindo a hospedagem de João Fernandes, leva-o preso, como Chica da Silva pressentira.

É a ambição do ouro (ou do diamante, que é sempre a mesma coisa) que a todos embriaga e corrói:

Maldito o conde, e maldito
esse ouro que faz escravos,
esse ouro que faz algemas,
que levanta densos muros
para as grades das cadeias,
que arma nas praças as forças,
lavra as injustas sentenças,
arrasta pelos caminhos
vítimas que se esquartejam! (Romance XVII)

Os velhos do Tejuco, na sua experiência, pensam com a amargura na “febre que corta o Serro Frio”. João Fernandes, que até então era senhor opulento, fora levado num navio “igual a um negro fugido”, o que dá margem a esta reflexão da autora:

(Que tudo acaba!
Quem diz que montanha de
ouro não desaba?) (Romance XVIII)

Acabara-se o tempo de João Fernandes e de Chica da Silva, cravejada de brilhantes. Mas:

Sobre o tempo vem mais tempo.
mandam sempre os que são grandes:
e é grandeza de ministros
roubar hoje como dantes
vão-se as minas nos navios…
Pela terra despojada,
ficam lágrimas e sangue. (Romance XIX)

Mas o ouro e o diamante, que brilharam tão intensamente nas Minas Gerais, eram apenas prenúncio de um brilho maior. Um sonho milenar, um ideal de um sol que despertaria – o sol da liberdade que a todos iluminaria e que nem rei nem rainha, por mais despóticos que sejam, podem tirar do homem!

Não importa que haja eclipses de vez em quando: o sol sempre volta a brilhar depois de um eclipse…

c) Ciclo da liberdade

A poesia apresenta o cenário onde vão se desenrolar os fatos: enumeração, sobretudo, dos lugares e fixação na névoa que chega às ruas, move a ilusão de tempo e figuras e que trará, fatalmente, o pranto e a saudade:

A névoa que se adensa e vai formando
nublados reinos de saudade e pranto.

O “país da Arcádia”, sediado na Vila Rica de outrora (Ouro Preto), com seus pastores e rebanhos, Nises, Marílias e Glauceste não passou de um ideal na literatura.

Pelos céus, nuvens negras de ódio e ambições ameaçam a doutorada terra de Ouro Preto: uma “nuvem de lágrimas” está prestes a desabar sobre “o país da Arcádia” – a “pastoral dourada”:

O país da Arcádia,
súbito, escurece,
em nuvem de lágrimas.
Acabou-se a alegre
pastoral dourada:
pelas nuvens baixas,
a tormenta cresce. (Romance XX)

E a Arcádia serena ficava cada vez mais carregada: agitação, correrias, ódio, ambições, países que se libertam, “a Europa a ferver em guerras”. Portugal com uma rainha louca: – um imenso tumulto humano.

As idéias fervilhavam as mentes de padres e poetas. Mas, por trás das janelas, ouvidos que escutam…

O país da Arcádia estava carregado de “idéias”.

Um príncipe que morre, filho de D. MariaI, a rainha louca, em 1788, é também uma esperança que morre. Nas exéquias do príncipe, muita agitação. Alguma coisa está sendo tramada – “já ninguém quer ser vassalo” e:

A palavra Liberdade
vive na boca de todos:
quem não a proclama aos gritos,
murmura-a em tímido sopro. (Romance XXIII)

Com pouco mais surgirá a bandeira da liberdade…

“Atrás de portas fechadas”, os líderes de “fardas e casacas (= militares, poetas), junto com batinas pretas” discutem e planejam a inconfidência. A bandeira com seu lema é escolhida e há um sobressalto, quando se fala em liberdade:

E os seus tristes inventores
já são réus – pois se atreveram
a falar em Liberdade
(que ninguém sabe o que seja),
Liberdade – essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!) (Romance XXIV)

Por causa dessa palavra – espinha dorsal do homem de todos os tempos – um rio de sangue está iminente: uma carta anônima que se recebeu “fala de rios propínquos / rios de lágrimas e sangue / que vão correr por aqui”.

E na “semana santa de 1789”, enquanto na França a liberdade rompia os grilhões da Bastilha, nas terras douradas de Minas, a mesma idéia se fermentava para ser depois enforcada, na pessoa de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes:

Deus, no céu revolto,
seu destino escreve.
Em baixo, na terra,
ninguém o protege;
é o talpídeo , o louco,
– o animoso Alferes. (Romance XXVII)

Mas “no grande espelho do tempo”, a poetisa vê também “o impostor caloteiro” Joaquim Silvério :

(quem em tremendos labirintos
prende os homens indefesos
e beija os pés dos ministros!) (Romance XXVIII)

No “riso dos tropeiros” está colocado um aspecto de Tiradentes que a tradição confirma (inclusive um lira de Gonzaga), a loucura, pois:

falava contra o governo,
contra as leis de Portugal. (Romance XXX)

Sem dúvida, essa loucura deve ser entendida de outra forma: a audácia de um homem que se levanta, sem força e sem armas, contra um governo despótico e tirânico. É o que parece querer dizer a poetisa, no Romance XXXI:

(Pobre daquele que sonha
fazer bem – grande ousadia –
quando não passa de Alferes
de cavalaria!)

É certamente por isso que “o povo todo seria”, porque o povo nunca ri sem razão…
Aliás, neste sentido, é preciso também o depoimento do “cigano que viu chegar o Alferes”, quando diz no Romance XXXIII:

(Fala e pensa como um vivo,
mas deve estar condenado.
Tem qualquer coisa no juízo,
mas em ser um desvairado.)

O Romance XXXIV, confrontando o delator Joaquim Silvério com Judas, a escritora conclui que aquele levou a melhor, pois ele (Judas) encontra remorso / coisa que não te (= a Silvério) acontece.

Fechando o romance, entre parênteses, há uma reflexão poética profunda, quando fala da “força de vermes”, ou seja, dos delatores, dos maus, enquanto os bons apenas “sonham”.

(Pelos caminhos do mundo,
nenhum destino se perde:
há os grandes sonhos dos homens
e a surda força dos vermes.)

Aliás, é o que ocorre também no romance “do suspiroso Alferes”, onde há, igualmente, um lamento profundo sobre o comodismo do homem face à situação que o envolve:

(Todos querem liberdade,
mas quem por ela trabalha?)
(O humano resgate custa
pesadas carnificinas!
Quem more, para dar vida?
Quem quer arriscar seu sangue?)

E é exatamente esse comodismo, dos bons que é a força dos maus, dos traidores, dos déspotas da liberdade:

Mas os traidores labutam
nas funestas oficinas:
vão e vêm as sentinelas
passam cartas de denúncia…

Na “noite escura” de 10 de maio de 1789, prenderam o Tiradentes com seus pensamentos de liberdade. Há um lamento profundo de desespero e dor por estar sozinho na luta pela liberdade:

Minas da minha esperança,
Minas do meu desespero!
Agarram-me os soldados,
como qualquer bandoleiro.
Vim trabalhar para todos,
e abandonado me vejo.
Todos tremem. Todos fogem.
A quem dediquei meu zelo? (Romance XXXXVII)

E o medo e a ansiedade se espalham por toda Minas Gerais. No fim do mesmo maio, prendem os outros suspeitos:

Andam as quatro comarcas
em grande desassossego:
vão soldados, vêm soldados;
tremem os brancos e os negros.
Se já levaram Gonzaga
e Alvarenga, mas Toledo!
Se a Cláudio mandam recados
para que se esconda a tempo!

Outros implicados menores vão sendo presos. Há “conversas indignadas” – há também “testemunha falsa”. Há até mesmo um “embuçado” envolto em panos e mistério que pretende salvar o poeta Cláudio Manuel da Costa.

Mas todos terão seu fim.
O padre Rolim, famoso por suas safadezas, estava na iminência de ser preso. O problema era determinar o seu crime, já que, além da suspeita de inconfidente, era culpado também, segundo o falatório:

por ter arrombado a mesa
de um juiz, em certa devassa;
por extravio de pedras;
por causa de uma mulata;
por causa de uma donzela;
por uma mulher casada. (Romance XLV)

Mas o padre, que não era nada bobo, enquanto as autoridades discutiam a sua prisão, “pulando cercas e muros”, fugiu, levando consigo os seus sete pecados ou setenta -e sete…

Nos “seqüestros” das casas e bens, “tudo é visto e resolvido” pelos executores da lei, havia de tudo, até mesmo:

as sugestões perigosas
de França e Estados Unidos
Mably, Voltaire e outros tantos,
que são todos libertinos… (Romance XLVII)

Antes de prosseguir no trabalho de dar fim aos inconfidentes, a autora interrompe a narrativa para fazer uma belíssima reflexão na Fala aos Pusilânimes, na qual condena os que não tiveram a coragem, a audácia de acender o pavio da chama da liberdade; os que sonharam e deixaram que seus sonhos fossem pelos espaços infindos, como bolhas etéreas…

Mas o fenômeno é eterno e universal – a estirpe dos pusilânimes sempre existiu e existirá na face da terra:

– só por serdes os pusilânimes,
os da pusilânime estirpe,
que atravessa a história do mundo
em todas as datas e raças,
como veia de sangue impuro
queimando as puras primaveras,
enfraquecendo o sonho humano
quando as auroras desabrocham!

E a liberdade que foi traída pela pusilanimidade dos que sonhavam com ela ficará gravada nos “céus eternos” como um eco sombrio que chama ao ajuste de contas e à condenação eterna:

O vós, que não sabeis do Inferno,
olhai, vinde vê-lo, o seu nome
é só – PULSILANIMIDADE.

Mistério paira sobre o fim do poeta Cláudio, que é também a versão da história. Suicídio? Fuga? Rapto? – As dúvidas parecem justificáveis: Cláudio era secretário do governo e afilhado de João Fernandes. Daí o interesse por livrá-lo da masmorra e do desterro.

De qualquer modo paira o mistério:

Entre esta porta e esta ponte,
fica o mistério parado.
Aqui, Glauceste Satúrnio ,
morto, ou vivo disfarçado,
deixou de existir no mundo
em fábula arrebatado. (Romance XLIX)

Tomás Antônio Gonzaga, o Dirceu da Marília, também tem fim sombrio na masmorra da Ilha das Cobras, interrompendo, assim, o enxoval de Maria Dorotéia (Marília) de quem era noivo.

Depois foi desterrado para as terras da África negra (Moçambique), onde se casa com Juliana Mascarenhas , deixando do outro lado do mar e da vida a pobre e inconsolável Marília a quem celebrara em inúmeras e ardentes liras de amor, em Marília de Dirceu.

Enfim, em questões amorosas, o homem é sempre um pombo enigmático…

Há dúvidas quanto à sua real participação na Inconfidência como procura demonstrar Rodrigues Lapa em estudo a seu respeito. Aliás, o próprio Gonzaga em uma das liras de Marília de Dirceu procura se inocentar junto ao Visconde de Barbacena.

Cecília Meireles também deixa transparecer a mesma dúvida, ao indagar:

Inocente, culpado?
Enganoso? Sincero? (Romance LV)

Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi enforcado a 21 de abril de 1792, três anos depois de ser preso. Como atestam diversas passagens do Romantismo, era considerado louco por causa das idéias que tinha. Depois de morto, virou herói:

Que os heróis chegam à gloria
só depois de degolados.
Antes, recebem apenas
ou compaixão ou desdém. (Romance XLIV)

A passos lentos, ele caminha sereno para o cadafalso onde o espera, um tanto aflito, o negro Capitania, que o executará. E diz o mártir:

Ó, permita que te beije
os pés e as mãos…Nem te importe
arrancar-me este vestido…
Pois também na cruz, despido
morreu quem salva da morte!

E o negro Capitania lamenta a sua sorte de carrasco oficial do grande sonho humano – a liberdade:

Vede o carrasco ajoelhado,
todo em lágrimas lavado,
lamentar a sua sorte! (Romance LVIII)

Só um carrasco lavou-se em lágrimas! Os outros seriam lavados com o sangue daquele mártir que tombava…

O cenário agora era desolador e triste: nada mais restava dos sonhos e ideais pretéritos. Tudo fora destruído pelas mãos dos delatores da vida, porque a vida está na liberdade.

Tudo agora estava reduzido a “um chão sem ouro nem diamante”. Nada mais brilhava nas terras douradas de Minas Gerais!

Também os tiranos tiveram o seu fim.

A rainha D. Maria I, que mandara executar os inconfidentes da sua coroa, acaba se tornando prisioneira do seu próprio destino: ela que executava tantos, com masmorras , desterros, forcas, torna-se prisioneira da loucura que é pior que qualquer masmorra, desterro ou morte de forca.

O destino agora se voltava contra a grande déspota da liberdade!

Ai, que a filha da Marianinha
jaz em cárcere verdadeiro,
sem grade por onde se aviste
esperança, tempo, luzeiro…
prisão perpétua, exílio estranho,
sem juiz, sentença ou carcereiro…
Terras de Angola e Moçambique,
mais doce é vosso cativeiro! (Romance LXXIV)

Pela “comarca do Rio das Mortes (= S.João Del-Rei), Dona Bárbara Eliodora, “a estrela do norte” do poeta Alvarenga Peixoto, naufragava em lágrimas e mágoas: seu doce Alceu também fora desterrado para as longínquas terras d´África, em Angola (Ambaca).

Agora as amenas colinas de outrora, onde o gado pastava, onde as flores sorriam, onde os regatos corriam, onde os pássaros cantavam, eram um montão de ruínas e desolação ante o olhar magoado e amargurado da rica e poética Eliodora.

Pela “comarca do Rio das Mortes” também dormia o padre Toledo, “paulista de grande raça / mação, conforme o seu tempo”.

Pela “comarca do Rio das Mortes” também passara e se fora Maria Ifigênia, fruto primaveril do casal Bárbara – Alvarenga:

Vai ver sua mãe demente
Vai ver seu pai degredado… (Romance LXXVII)

Também Marília se desfigurou pelo tempo e pela Inconfidência. O seu retrato agora é o de uma mulher macerada pela dor:

já não pertence mais à terra:
é só na morte que está viva

Agora, tudo jaz em silêncio: amor, inveja, ódio, inocência, no imenso tempo se estão lavando, declara a poetisa na Fala aos inconfidentes mortos.

No horizonte eterno há de ficar sempre o anseio de liberdade, e só o purgatório do tempo está apto às ações vis e nobres dos homens da terra:

Quais os que tombam,
em crimes exaustos,
quais os que sobem

Considerações Gerais

Como o nome sugere, romanceiro é uma coleção de romances. Romance deve ser entendido, nesse caso, como um gênero de origem medieval, muito característico na península Ibérica, constituído de narrativas breves, sob forma de poemas épico – líricos , que originalmente eram cantados ao som de um instrumento, celebrando as aventuras e proezas de um herói de cavalaria ou fatos da nacionalidade de um povo.

Preservadas pela memória popular, oralizados de forma fragmentária pelo povo, algumas ações mudavam de natureza e tomavam vida independente: ao lado das imagens objetivas e da narração, peculiares ao gênero épico – lírico , no qual se impõem notas de emoção e subjetividade, e o gênero dramático – lírico, no qual predominam os diálogos.

Etimologicamente , o termo origina-se do latim romanice, ou seja, as narrativas eram feitas no loqui romanice (falar à maneira de Roma).

Segundo Cecília Meireles, anos depois da publicação do Romanceiro, em Ouro Preto, no I Festival da cidade onde se deu a Inconfidência:

“Muitas vezes me perguntei porque não teria existido um escritor do século XVIII – e houve tantos, em Minas! – que pudesse por escrito essa grandiosa e comovente história. Mas há duzentos anos de distância pode-se entender por que isso não aconteceu, principalmente se levarmos em conta o traumatismo provocado por um episódio desses, em tempos de duros castigos, severas perseguições, lutas sangrentas pela transformação do mundo, em grande parte estruturada por instituições secretas, de invioláveis arquivos.

Também muitas vezes me perguntei se devia obedecer a esse apelo dos meus fantasmas, e tomar o encargo de narrar a estranha história de que haviam participado e de que me obrigaram a participar também, tantos anos depois, de modo tão diferente, porém, com a mesma, ou talvez maior, intensidade.

Sem sombra de pessimismo, posso, no entanto, confirmar por experiência a verdade de que somos sempre e cada vez mais governados pelos mortos.

No decorrer das minhas incertezas e dos meus escrúpulos em aproximar-me de tema tão grave, os fantasmas começaram a repetir suas próprias palavras de outrora: as palavras registradas no depoimento do processo, ou na memória tradicional, vinham muitas vezes e inesperadamente, já metrificadas.(…) Até os nomes de alguns personagens foram versos perfeitos:
“To/más/An/tô/nio/Gon/za/ga”
1 2 3 4 5 6 7
“Do/na/Bár/ba/ra E/lio/do/ra”
1 2 3 4 5 6 7
“Joa/quim/Jo/sé/da/Sil/va/Xa/vi/er”
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Assim, a primeira tentação diante do tema insigne, e conhecendo-se, tanto quanto possível, através dos documentos do tempo, seus pensamentos e sua fala, seria reconstituir a tragédia na forma dramática em que foi vivida, redistribuindo a cada figura o seu verdadeiro papel. Mas se isso bastasse, os documentos oficiais com seus interrogatórios e respostas, suas cartas, sentenças e defesas realizariam a obra de arte ambicionada, e os fantasmas sossegariam, satisfeitos.

Os “Cenários”, os “Romances” e as “Falas”

Há três estruturas que se alternam no poema: os romances, os cenários e as falas.

Os romances , em número de oitenta e cinco, reconstituem a história, compondo o fio narrativo;

os cenários situam os ambientes, marcando as mudanças de atmosfera e localizando os acontecimentos;

e as falas representam uma intervenção do poeta- narrador , tecendo comentários e convidando o leitor a refletir sobre os fatos revividos no relato.

Os romances não são dispostos na seqüência cronológica dos acontecimentos; ora aparecem isolados, ora constituem-se em verdadeiros ciclos (o de Chica da Silva, o do Alferes, o de Gonzaga, o da Morte de Tiradentes , o de Gonzaga no exílio, o de Bárbara Heliodora , o da Rainha D. Maria).

Três fragmentos de falas:

Fala Inicial

Não posso mover meus passos
Por esse atroz labirinto
De esquecimento e cegueira
Em que amores e ódios vão:
– pois sinto bater os sinos,
percebo o roçar das rezas,
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação;
– avisto a negra masmorra
e a sombra do carcereiro
que transita sobre angústias,
com chaves no coração;
– descubro as altas madeiras
do excessivo cadafalso
e, por muros e janelas,
o pasmo da multidão.

Ó meio-dia confuso,
ó vinte-e-um de abril sinistro,
que intrigas de ouro e de sonho
houve em tua formação?
Quem condena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
Cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados …
– liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são.
Na mesma cova, as palavras,
e o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentiras e verdade estão.

Não choraremos o que houve,
nem os que chorar queremos:
contra rocas de ignorância
rebenta nossa aflição.
Choraremos esse mistério,
esse esquema sobre-humano,
a força, o jogo, o acidente
da indizível conjunção
que ordena vidas e mundos
em pólos inexoráveis
de ruína e de exaltação.
Ó silenciosas vertentes
por onde se precipitam
inexplicáveis torrentes,
por eterna escuridão!

Características do Romanceiro

a) A herança simbolista e o espiritualismo: um ar de mistério, de crença no imaterial, no extraterreno, perpassa todo o poema. O culto do etéreo, das palavras aéreas marca a ânsia de dar forma ao informe. Expressões como: atroz labirinto de esquecimento, mistério , esquema sobre-humano, silenciosas vertentes, inexplicáveis torrentes instauram um halo espiritualista de crença no imaterial.

b) A utilização do redondilho maior (verso heptassilábico ), sem rimas externas regulares (versos brancos), e a exploração da camada sonora, através de aliterações e assonâncias , conferem à Fala Inicial um tom enfático, declaratório , reforçado pelas exclamações e interrogações.

c) O tom evocativo: o mergulho no passado, no atroz labirinto do tempo, nas ressonâncias incansáveis de Vila Rica revela a ânsia da procura de um significado para os fatos: Ó meio-dia confuso / ó vinte-e-um de abril sinistro, / que intrigas de ouro e de sonho / houve em tua formação? / Quem condena, julga e pune? Quem é culpado e inocente?. É como se a poetisa, evocando Tiradentes na força, questionasse a casa do martírio. Foi a ambição do ouro? Foi o sonho de liberdade que iluminou aquela gente?

d) O tom inquiridor: o clima de mistério e ansiedade, as lacunas históricas incontornáveis e a busca de um sentido para os fatos projetam-se nas interrogativas que surgem a cada momento. Revelando o mistério que envolve até hoje o “embuçado” e a morte de Cláudio Manuel da Costa, o Romance XXXVIII é composto só de interrogações. O embuçado teria sido um mensageiro mascarado, disfarçado, que viera para tentar salvar Cláudio Manuel da Costa: Homem ou mulher? Quem soube? / Veio por si? Foi mandado? / A que horas foi? De que noite? / Visto ou sonhado?.

e) A dualidade: reflete a ambivalência ou ambigüidade que caracterizam as ações do homem – herói e traidor, ódio e amor, punhal e flor, bons e maus, riqueza e miséria. Observe, na Fala Inicial: amores x ódios (v.4); intrigas de outo e de sonho; (v.19); culpado x inocente (v.22); castigo x perdão (v.24), coroas x machados (v.31); mentira x verdade (v.32); ruínas x exaltação (v.43).

Ganham relevo as passagens que refletem a dualidade entre a justiça e a tirania, entre a liberdade e a opressão:

Em baixo e em cima da terra
o ouro um dia vai secar.
Toda vez que um justo grita,
um carrasco o vem calar.
Quem sabe não presta, fica vivo,
quem é bom, mandam matar. (Romance V)

Ai, terras negras d´África,
portos de desespero…
– quem parte, já vai cativo;
– quem chega, vem por desterro. (Romance LXVII)

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