A Nova Hierarquia dos Espaços
O conceito de espaço no nosso desenvolvimento está sem dúvida gerando interesse crescente, mas também crescente confusão. Afinal, para onde vão as macrotendências: globalização, blocos, poder local? Entre o “Small is Beautiful” e a “aldeia global”, há razões de sobra para se discutir de forma mais aprofundada, ou em todo caso mais organizada, o conceito de espaço, e a importância que assume no nosso cotidiano.
Referimo-nos aqui aos espaços da reprodução social. Na realidade, a simples reprodução do capital, ou reprodução econômica, já não é suficientemente abrangente para refletir os problemas que vivemos, inclusive para entender a própria reprodução do capital. Na linha imprimida pelos sucessivos relatórios sobre Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, o objetivo central do desenvolvimento é o homem, a economia é apenas um meio. Ninguém mais se impressiona com o simples crescimento do PIB, e tornou-se cada vez mais difícil identificar bem estar humano com o bem estar das empresas.
Por outro lado, trabalharemos com o conceito de reordenamento dos espaços, na medida em que conceitos como “globalização” trazem uma visão simplificada de abertura e unificação dos espaços da reprodução social. O que está ocorrendo, é uma nova hierarquização dos espaços, segundo as diferentes atividades, envolvendo tanto globalização como formação de blocos, fragilização do Estado-nação, surgimento de espaços sub-nacionais fracionados de diversas formas, transformação do papel das metrópoles, reforço do papel das cidades, e uma gradual reconstituição dos espaços comunitários desarticulados por um século e meio de capitalismo. E estes diversos espaços em plena transformação e rearticulação abrem novas dimensões para a inserção do indivíduo no processo de reprodução social, permitindo talvez a reconstituição de um ser humano completo a partir dos segmentos de homo oeconomicus, de homo ludens, de homo culturalis hoje fragmentados, numa economia que se unificou na mesma medida em que desarticulou a sociedade.
O Espaço Global
A globalização constitui ao mesmo tempo uma tendência dominante neste fim de século, e uma dinâmica diferenciada. Um excelente exemplo nos é dado pela dimensão da especulação financeira. A circulação financeira internacional ultrapassa, em 1995, o trilhão de dólares por dia, para uma base de trocas efetivas de bens e serviços da ordem de 20 a 25 bilhões, o que significa trocas 40 vezes maiores do que as que seriam necessárias para cobrir atividades econômicas reais. Esta ampliação dramática da especulação financeira é literalmente carregada pelas novas tecnologias: a integração dos espaços mundiais de comunicação, via satélites e fibras óticas, e a capacidade de tratamento instantâneo de informação em gigantescas quantidades com a informática, levou a uma grande dianteira, na globalização, de um setor cuja matéria prima — a informação — é particularmente fluida, e que dispõe de amplos recursos para financiar os equipamentos mais modernos.
As avaliações da crise de 1987 permitem hoje entender melhor o ponto crítico deste processo: na era do dinheiro volátil, os fluxos se tornaram mundiais, enquanto os instrumentos de regulação continuam no âmbito do Estado nacional. É curioso ver o banco central norte-americano, o Federal Reserve, confessar a sua incompetência jurídica, na medida em que o seu campo de atuação é essencialmente nacional, e a sua impotência técnica, na medida em que não dispõe de computadores sequer para seguir o que está acontecendo.
Por traz desta desarticulação está o descompasso entre a rapidez da evolução das técnicas, e a relativa lentidão das transformações institucionais, gerando um amplo espaço econômico mundial sem nenhum controle ou regulação, e uma perda global de governabilidade no planeta. O dramático aumento de vendas de armas para a África, para compensar a perda de mercados com o fim da guerra fria, a mundialização e expansão do tráfico de drogas, ou a prática generalizada de sobre-pesca em águas internacionais, destruindo a capacidade básica de reprodução da biomassa marítima, são algumas conseqüências deste novo faroeste mundial.
Na ausência de governo mundial, há segmentos bem mais globais do que os outros: trata-se de uma globalização hierarquizada. Navegam com confiança neste espaço as cerca de 500 a 600 grandes empresas transnacionais que comandam 25% das atividades econômicas mundiais, e controlam cerca de 80 a 90% das inovações tecnológicas. Estas empresas pertencem aos Estados Unidos, Japão, Alemanha, Grã-Bretanha e poucos mais, e constituem um poderoso instrumento de elitização da economia mundial. No dizer franco de um economista, neste sistema, “quem não faz parte do rolo compressor, faz parte da estrada”. A verdade é que ampla maioria das populações do mundo hoje faz parte “da estrada”.
Mas sobretudo, a globalização não é geral. Se olharmos o nosso cotidiano, desde a casa onde moramos, a escola dos nossos filhos, o médico para a família, o local de trabalho, até os horti-fruti-granjeiros da nossa alimentação cotidiana, trata-se de atividades de espaço local, e não global. É preciso, neste sentido, distinguir entre os produtos globais que indiscutivelmente hoje existem, como o automóvel, o computador e vários outros, e os outros níveis de atividade econômica e social. Isto nos evitará batalhas inúteis — não há nenhuma razão para que um país tenha de se dotar de uma indústria automobilística para ser moderno — ao mesmo tempo que nos permitirá enfrentar melhor as batalhas possíveis.Daí a necessidade de substituirmos a visão de que “tudo se globalizou”, por uma melhor compreensão de como os diversos espaços do nosso desenvolvimento se articulam, cada nível apresentando os seus problemas e as suas oportunidades, e a totalidade representando um sistema mais complexo.
A formação dos blocos
A formação de blocos, vista como tendência geral, ou simples transição para o global, constitui outra visão simplificadora.
A Comunidade Européia surge nos anos 1950 numa situação histórica precisa, de um conjunto de países pequenos e médios prensados entre dois mega-poderes, da União Soviética de um lado, e dos Estados Unidos do outro, e buscando recuperar um mínimo de peso específico para não se verem engolidos no processo. Surge também do choque de civilização que foi para a Europa ocidental constatar a que nível de barbárie os nacionalismos estreitos podiam levar. Hoje, a União Européia atrai novos países pela simples força de arrasto de uma economia de 6 trilhões de dólares, com o seu núcleo dominante constituído pela Alemanha, com 1,8 trilhões de dólares de PIB, a França com 1,3, a Itália com 1,2 e o Reino Unido com 0,9. Estes quatro países somam um PIB de 5,2 trilhões.
A Associação Norte Americana de Livre Comércio (NAFTA) é mais claramente a associação do que já estava associado. É bom lembrar que os Estados Unidos têm um PIB da ordem de 5,9 trilhões de dólares, e 255 milhões de habitantes: em termos econômicos, não é a associação com o Canadá com os seus 490 bilhões de dólares de PIB que iria modificar radicalmente a situação, e muito menos com o México e os seus 330 bilhões. O que há de real é aqui também um poder de arrasto de uma mega-economia, cuja osmose econômica com os dois países vizinhos, que já era realidade há tempos, veio apenas ganhar forma organizada.
A formação da “Zona de Co-prosperidade Asiática” é igualmente tributária do poder de um gigante econômico de 3,7 trilhões de dólares, o Japão: é bastante óbvio o poder de atração exercido sobre satélites do porte da República da Coréia, com um PIB de 296 bilhões de dólares, de Cingapura, com 42 bilhões (1,1% do produto japonês!) ou de Hong Kong com 77 bilhões.
Ainda não se sabe como se configurará a geo-política das novas repúblicas do leste europeu relativamente à Rússia. No entanto, de forma geral é claro que os blocos realmente existentes constituem essencialmente uma aproximação de satélites em torno de três gigantes econômicos, que controlam quase três quartos da produção mundial. Transformar este poder de atração das três grandes potências em tendência geral para formação blocos, constitui uma transposição de situações sem muito sentido.
Assim, os entusiasmos passageiros com a ALALC, o Grupo Andino e tantos outros que já surgiram têm de ser moderados, e no caso do Mercosul, temos de trabalhar com boa dose de realismo. O Uruguai tem 3,1 milhões de habitantes, o Paraguai tem 4,5, e os dois países somam um PIB de 15 milhões de dólares, cerca do dobro do produto da Baixada Santista. O Brasil tem um PIB da ordem de 400 bilhões de dólares. A Argentina, com 33 milhões de habitantes, e um PIB da ordem de 200 bilhões de dólares, constitui sem dúvida um aporte significativo, mas no conjunto o nosso “bloquinho” ficaria mais ou menos na dimensão da economia espanhola, ela mesma um sócio menor da União Européia. Este raciocínio não significa que a aproximação não seja sumamente válida, mas nos traz uma visão mais realista do que representamos e nos orienta melhor para as estratégias a adotar, evitando simplificações abusivas.
No conjunto, a formação de blocos não representa para os países do Terceiro Mundo a mesma dinâmica que a que foi originada com as mega-potências econômicas, e a aproximação entres as economias pobres deverá passar bastante mais pela definição de políticas comuns frente aos países dominantes, buscando uma inserção mais vantajosa na economia internacional, ao mesmo tempo que se deverá trabalhar uma integração efetiva do tecido econômico e institucional através de formas descentralizadas de cooperação.
A erosão do Estado-nação
O dilema ao nível da nação fica bastante claro ao examinarmos as tentativas de se implantar no Brasil uma política de juros capaz de conter o consumo e a inflação: a elevação da taxa de juros, normalmente uma iniciativa soberana tomada pelo Banco Central, levou em 1995 a um afluxo gigantesco de capitais internacionais à procura de altas remunerações. Tratando-se de capital especulativo extremamente volátil, não reforça a capacidade de investimentos no país, e leva pelo contrário a uma drenagem impressionante de recursos nacionais pela alta remuneração conseguida, tornando a posição insustentável. Temos aqui claramente os limites de políticas institucionais que continuam sendo de âmbito nacional quando as dinâmicas financeiras já são mundiais.
Há aqui indiscutivelmente um processo de erosão de soberania. Indo-se um pouco mais além, constatamos que esta erosão transforma também a nossa cidadania. O dito popular “quero votar para Presidente dos Estados Unidos” assume aqui todo o seu sentido: somos excluídos das decisões que ultrapassam o nível nacional. Alain Bihr se refere corretamente à necessidade, neste sentido, de se “dissociar o exercício da cidadania do quadro estreito da nacionalidade no qual este tem sido mantido”.
Por outro lado, o Governo central vê o seu papel profundamente alterado pela própria aceleração das transformações econômicas e sociais. Frente a mudanças tecnológicas e de relações sociais de produção extremamente rápidas, o Estado tradicional faz figura de dinossauro, amplamente ultrapassado por uma dinâmica que exige respostas rápidas e flexíveis a situações diversificadas e complexas. Isto pode ser visto simplesmente como um problema “estreito”, de eficiência administrativa. Na realidade, quando as decisões são formalmente colocadas em níveis institucionais onde o cidadão não pode influir sobre o seu curso de maneira significativa, é a própria racionalide política que se vê deformada.
Foi-se o tempo das sociedades relativamente homogêneas, com proletariado, campesinato e burguesia, e uma visão de luta de classes relativamente clara. A sociedade moderna é constituída por um tecido complexo e extremamente diferenciado de atores sociais. Assim, políticas globais tornam-se desajustadas, reduzindo-se a competência das decisões centralizadas. Como a intensidade das mudanças exige também ajustes freqüentes das políticas, é o próprio conceito da grande estrutura central de poder que se vê posto em cheque. Situações complexas e diferenciadas, e que se modificam rapidamente, exigem muito mais participação dos atores sociais afetados pelas políticas. Exigem, na realidade, sistemas muito mais democráticos.
A implicação prática deste raciocínio, é que mais importante do que o dilema privatização/estatização, é a hierarquização adequada dos diversos espaços institucionais. Neste sentido, a longo prazo, o nível central de decisão do pais tem de se preocupar com a coerência das grandes infraestruturas econômicas, com os equilíbrios macroeconômicos, com as desigualdades regionais, com a inserção do país na economia mundial, com os eixos tecnológicos de longo prazo. Problemas mais específicos terão de ser transferidos para espaços de decisão mais próximos do cidadão.
Finalmente, conforme veremos em detalhe mais adiante, constituímos hoje dominantemente sociedades urbanizadas. Com isto constituiu-se um tecido social organizado, a cidade, freqüentemente maior inclusive do que muitos dos Estados-nação herdados do passado. Foi-se o tempo em que tudo tinha de ser feito na “capital”, porque aí estavam localizados o governo, os técnicos, os bancos, enquanto o “resto” era população rural dispersa. E a tendência natural é para as cidades assumirem gradualmente boa parte dos encargos antigamente de competência dos governos centrais, completando assim a transformação do papel do Estado-nação na hierarquia dos espaços sociais.
Uma frase de recente relatório das Nações Unidas resume bem o problema: “o Estado-nação tornou-se pequeno demais para as grandes coisas, e grande demais para as pequenas.”
Os regionalismos
Uma sociedade mais global pode ser muito menos “pasteurizadora” das culturas nacionais do que as tradicionais nações. Nos tempos da Espanha fechada, aparecia como uma ameaça à “integridade nacional” uma região ter as suas particularidades, uma escola valorizar línguas locais. Numa Espanha integrada ao espaço europeu, já não há apenas um problema de bascos na Espanha, mas também o dos bretões na França, dos flamengos e walons na Bélgica, de lombardos na Itália e assim por diante. No espaço europeu, a pluralidade cultural, a revalorização de tradições e costumes locais ou regionais, não ameaça nacionalidade de ninguém, e não é surpreendente a Espanha inserida na União Européia adotar o regime de autonomias regionais.
Neste sentido, e na linha das análises de John Naisbitt, a multiplicação de “nações”, de regiões com os seus particularismos, pode ser perfeitamente coerente com a própria globalização e com as novas funções mais atenuadas do Estado-nacional.
É bastante natural, neste contexto de profundo e rápido reordenamento da expressão espacial da reprodução social, que se gere forte confusão. Numa Iugoslávia criada artificialmente por acordos e interesses internacionais, não há nenhuma razão para que não voltem a existir pequenos países que têm tradição milenar, como a Bósnia ou a Servia, de toda forma integrados num espaço econômico mais amplo. O absurdo, é a transformação de uma válida revalorização de culturas e tradições, numa volta tardia aos nacionalismos fascistas característicos das décadas de 1920 e 1930, para os quais já não há sequer espaço econômico.
É o próprio conceito de nação que tem de ser revisto. A expressão e vivência do sentimento de identidade é absolutamente vital para o ser humano, e esta identidade é com um grupo, com tradições, com valores, com uma língua ou um dialeto, com roupas, com cultura no sentido amplo: não se materializa necessariamente na existência de um exército, de uma polícia política e de guardas nas fronteiras. E não se vê necessariamente afetada pelo tipo de aparelho de música ou pela marca do carro utilizado.
O papel das metrópoles
É necessário insistir, antes de tudo, no fato das metrópoles constituírem um fenômeno recente. Somos a primeira geração a conhecer cidades de 15 ou 20 milhões de habitantes, megalópoles com um conjunto de novos problemas e novas determinações.
Os grandes espaços metropolitanos constituiram-se em geral na continuidade do processo de urbanização que resultou da industrialização e das transformações do espaço rural. Hoje, no entanto, a indústria entrou no mesmo ciclo de redução de volume de emprego pelo qual passaram as agriculturas, e problemas tanto sociais como ambientais empurram as empresas para centros menores.
O Rio de Janeiro é característico de uma cidade que não teve a visão da sua transição. Foi capital, e com a criação de Brasília perdeu boa parte das suas atividades econômicas ligadas à função administrativa. Foi um grande centro industrial, mas naturalmente a indústria foi migrando para o vale do Paraíba e outras regiões, pois grandes cidades já não constituem uma base adequada para as atividades industriais. Com a perda do papel da capital e a redução da base industrial, o porto também perdeu parte de sua importância. Assim, o “tripé” econômico que sustentava o Rio de Janeiro murchou, deixando suspenso um cogumelo demográfico de mais de 8 milhões de pessoas.
As metrópoles surgiram com funções centralizadoras relativamente aos espaços nacionais que as geraram. Hoje, este papel de “núcleo” de amplas bacias econômicas tende a ser substituído pelo papel de elo numa rede internacional de “cidades mundiais”, na expressão de John Friedmann.
A cidade de Shanghai, por exemplo, organizou em 1993 uma importante reunião internacional sobre o seu próprio futuro, optando claramente pela importância do seu papel de “âncora” de atividades econômicas internacionais, e definindo eixos prioritários de ação nas áreas de criação de um polo tecnológico internacional, de infraestruturas portuárias ultra-modernas, e de uma base sofisticada de telecomunicações. O departamento de relações internacionais da cidade de Shanghai já operava na época com140 técnicos e funcionários. Assim Shanghai prepara a sua transição de centro industrial que drena o interior da província, para o de ponte entre o tecido econômico nacional e a economia global.
O Rio de Janeiro, num modelo menos preocupado em atrair fábricas de automóveis e mais preocupado em articular os espaços do seu desenvolvimento, teria claramente um imenso papel a jogar como centro turístico internacional, em particular de turismo de convenções e turismo de negócios em geral, combinando o turismo cultural com os serviços comerciais internacionais hoje em franca explosão. Trinta anos de atraso nas opções levam hoje a uma situação de difícil reversão, pela própria deterioração gerada. São Paulo é a primeira cidade brasileira a ter incluído na sua Lei Orgânica o papel das relações internacionais, mas a compreensão desta sua dimensão ainda se resume em buscar “recursos externos”.
O fato importante é que a economia global não existe no ar, enraiza-se em “pólos” concretos. Por outro lado, muda a composição técnica da produção, com maior peso para serviços. Outro fator importante, reforça-se o tecido de cidades médias ou grandes, que assumem boa parte do papel de centro de bacia econômica, mudando o contexto nacional de reprodução econômica das metrópoles. Assim as metrópoles passam a desempenhar um novo papel, devendo redefinir os seus espaços.
A cidade como base da organização social e política
A realidade brasileira nos oferece excelente base para analisarmos a evolução do papel do espaço urbano. Em 1950, o país era esmagadoramente rural. Em pouco mais de uma geração, de forma intensa e caótica, tornamo-nos um país de quase 80% de população urbana. Provocada mais pela expulsão do campo do que pela atração das cidades, este êxodo urbano obedeceu à tripla dinâmica da tecnificação, da expansão da monocultura e do uso da terra como reserva de valor. Nunca é demais lembrar que temos 371 milhões de hectares classificados pelo IBGE como terra ótima, boa e regular, enquanto utilizamos cerca de 60 milhões de hectares na lavoura, pouco mais de 15%. Este dramático desperdício do solo agrícola, quando temos dezenas de milhões de esfomeados, tem nome e endereço. Os 61 mega-estabelecimentos agrícolas, de mais de 100.000 hectares, cultivam 0,14% da área disponível, enquanto as pequenas propriedades cultivam 65%. Os grandes estabelecimentos estabelecimentos espalham cabeças de gado nestas áreas, no que tem sido pudicamente chamado de pecuária extensiva, e explicam que não se trata de terra improdutiva, mas de pasto. Imagine-se o que seria da Europa com este tipo de intensidade de uso do solo.
Com o uso generalizado da terra como reserva de valor, a população expulsa pelo processo de modernização da grande propriedade, não teve como se fixar na terra. Foi uma grande oportunidade perdida, de se constituir uma forte base de agricultores pequenos e médios, e dinamizar a produção alimentar. Num processo intenso de urbanização tardia, o Brasil vê explodir as suas cidades, com imensas periferias caóticas e miseráveis, necessitando de tudo. É útil lembrar que uma cidade moderna como São Paulo tem 4 milhões de pessoas que vivem em condições sub-humanas, entre rua, favelas e cortiços.
O caráter explosivo desta situação manifesta-se com mais ou menos intensidade em todo o país, e não é particularmente um fenômeno do Rio de Janeiro como tem sido apresentado. A pequena capacidade de absorção do setor formal, que na realidade hoje está desempregando em conseqüência da revolução informática, levou à constituição inicialmente de um amplo setor informal da economia, e crescentemente de um setor criminal, que vai minando a sociedade por baixo.
Alguns dados muito aproximados sobre este último setor, que chamamos aqui de setor criminal na falta de outro nome, dão uma primeira visão da sua importância. São roubados diariamente cerca de 420 carros por dia só na cidade de São Paulo, o que representa um valor da ordem de 700 milhões de dólares por ano. Se somarmos a prostituição, particularmente à grande indústria da prostituição infantil, o tráfico de drogas e os jogos ilegais como o vídeo-poquer e outros, estamos nos referindo a um setor econômico da ordem de 3 bilhões de dólares por ano, valor equivalente ao orçamento da cidade. Nenhum sistema de atividades deste porte subsiste sem um conjunto de conivências, de certa forma à margem do sistema.
O mesmo processo que gera esta situação explosiva abre oportunidades. A população urbanizada é organizável, e os espaços locais podem abrir uma grande oportunidade para a sociedade retomar as rédeas do seu próprio desenvolvimento. O mundo urbano moderno está literalmente fervilhando com as novas iniciativas de organização social e com as novas tecnologias urbanas. Desde as iniciativas pioneiras de Lajes, passando a experiências consolidadas como as formas descentralizadas de gestão de saúde, a elaboração participativa dos orçamentos municipais, particularmente amadurecidas em Porto Alegre, os terminais de Londrina que permitem a qualquer cidadão controlar as despesas da cidade, a recuperação do centro de Recife em parceria com os diversos atores sociais da cidade, as experiências de educação na cidade de são Paulo, o sistema de garantia de renda mínima em Campinas, os sistemas descentralizados de gestão em Santos, assistimos a um processo onde as cidades aboliram a visão de administrações limitadas à cosmética urbana, e buscam parcerias e novas reengenharias sociais para recuperar o seu espaço econômico, a cidadania local.
Não que as iniciativas locais sejam suficientes. No entanto, sem sólidas estruturas locais participativas e democratizadas, não há financiamentos externos ou de instituições centrais que produzam resultados. De certa forma, a cidade está recuperando gradualmente um espaço de decisão direta sobre a “polis”, recuperando a dimensão mais expressiva da política e da democracia. É significativo neste sentido que tenhamos pela primeira vez uma Cúpula das Cidades, conferência mundial de Istambul destinada a avaliar as novas dimensões das políticas urbanas.
As cidades, por sua vez, têm de ser recolocadas no espaço rural a que pertencem. Desta maneira, seria mais correto falar em espaço local do que espaço urbano. Empolgado com a sua recente urbanização, o ser humano esquece a que ponto está vinculado ao campo que cerca as cidades, e um elemento essencial do desenvolvimento urbano será a reconstrução da relação cidade campo, já não a partir do campo, na visão clássica da reforma agrária, mas a partir da própria cidade.
A tendência para um reforço generalizado da gestão política nas próprias cidades representa uma importante evolução da democracia representativa, onde se é cidadão uma vez a cada quatro anos, para uma democracia participativa, onde grande parte das opções concretas relacionadas com as condições de vida e a organização do nosso cotidiano passam a ser geridas pelos próprios cidadãos.
Numa série de países com formas mais avançadas de organização política, como os países escandinavos, dois terços ou mais dos recursos públicos são geridos pela própria sociedade, de forma participativa, ao nível dos municípios. Isto implica, uma vaz mais, mudanças institucionais: além do prefeito e de uma câmara de vereadores, as cidades passam a se dotar de formas diretas de articulação dos atores sociais do município, com a criação de um fórum de desenvolvimento, participação de empresários, de sindicatos, de colégios ou universidades e assim por diante.
Ultrapassando a tradicional dicotomia entre o Estado e a empresa, o público e o privado, surge assim com força o espaço público comunitário, e as nossas opções se enriquecem. Na excelente formulação do relatório das Nações Unidas, “Na prática, tanto o Estado como o mercado são freqüentemente dominados pelas mesmas estruturas de poder. Isso sugere uma terceira opção mais pragmática: que o povo deveria controlar tanto o Estado como o mercado, que precisam trabalhar articulados, com as populações recuperando suficiente poder para exercer uma influência mais efetiva sobre ambos.”
Em outros termos, a cidade aparece hoje como foco de uma profunda reformulação política no sentido mais amplo. Não que o nível local de organização política substitua transformações nas formas de gestão política que têm de ser levadas a efeito nos níveis do Estado-nação e mundial: mas comunidades fortemente estruturadas podem constituir um lastro de sociedade organizada capaz de viabilizar as transformações necessárias nos níveis mais amplos. Não há democracia que funcione com a sociedade atomizada.
A recuperação da dimensão comunitária
Com o breve e recente intervalo gerado pelas transformações capitalistas, em que se gerou a sociedade desarticulada ou atomizada, o ser humano sempre viveu em comunidades. Como bem levanta Renato Ortiz, acostumamo-nos a considerar como positivo tudo o que vai do pequeno para o grande: o clã, a tribo, a aldeia são coisas do passado, a modernidade trouxe a nação, o futuro aponta para o espaço global, a sociedade anônima de bilhões de habitantes da espaço-nave terra.
É melhor ser cidadão local ou cidadão do mundo? A pergunta não tem sentido na medida em que a cidadania tem hoje de se exercer em diversos níveis de espaços articulados. Transferir a cidadania para níveis cada vez mais amplos, e cada vez mais distantes do cidadão, é transferir o poder significativo para mega-estruturas multinacionais, enquanto se dilui a cidadania no anonimato.
Na excelente formulação de Milton Santos, “o que globaliza separa; é o local que permite a união”. Uma dimensão extremamente prática deste processo nos é dada pelo exemplo cotidiano do dilema da solidariedade. Encontrar um amigo, um velho conhecido, mendigando na rua, nos transtorna. E no entanto, nos acostumamos a ver crianças pequenas saltitando entre carros numa avenida movimentada, ou uma pessoa deitada na calçada, e seguimos adiante. Vemos uma desgraça acontecer a alguém e tocamos para a vida, pois o tempo urge, e além de tudo são tantas desgraças.
Não é que o ser humano agora seja menos solidário: ninguém se solidariza com o anonimato. Generais programam tranquilamente bombardeios que possam coincidir com os horários da mídia, e o mundo assiste impassível à destruição ao vivo de seres humanos, mascando chiclete ou comendo pipoca. A humanização do desenvolvimento, ou a sua re-humanização, passa pela reconstituição dos espaços comunitários.
A própria recuperação dos valores e a reconstituição da dimensão ética do desenvolvimento exige que para o ser humano o outro volte a ser um ser humano, um indivíduo, uma pessoa com os seus sorrisos e suas lágrimas. Este processo de reconhecimento do outro, não se dá no anonimato. E o anonimato se ultrapassa no circuito de conhecidos, na comunidade.
Em termos econômicos, o grande argumento é que o espaço pequeno não é “viável”. Na realidade, a mesma dinâmica que nos levou aos espaços globais nos fornece as tecnologias para a reconstituição de uma humanidade organizada em torno a comunidades que se reconhecem internamente, mas também interagem, comunicam com o resto do mundo, participam de forma organizada de espaços mais amplos.
A busca da reconstuição do tecido social é sentida nas mais variadas áreas. É curioso este novo espaço de nome monstruoso, as “ONG’s”, que se definem absurdamente como organizações não-governamentais, como se isto definisse algo. Na realidade, trata-se de um setor não governamental e não empresarial, formas diretas de organização das comunidades em torno dos interesses difusos e transindividuais.
Não há dúvida que par muitos o tema da comunidade “cheira” a passado, a bom selvagem de Rousseau. Na realidade, basta atentar para o fato da pessoa hoje, para ser cidadão, precisar pertencer a uma instituição, ter um emprego, para sentir a dimensão da perda de cidadania ao se desarticular o espaço comunitário. Na linha dos aportes de John Friedmann, o “empowerment”, ou recuperação de cidadania, através do espaço local, do espaço de vida do cidadão, é essencial. Caminhamos para a reconstituição das comunidades, em outro nível, incorporando e capitalizando as próprias tecnologias hoje desagregadoras.
Conclusão: os espaços articulados
O indivíduo econtra-se, neste processo de reordenamento dos espaços, desorientado. Na linha dos estudos do Pierre Lévy, ou até na visão generalizadora do Powershift de Alvin Toffler, as novas tecnologias e a conectividade eletrônica abrem novos canais de articulação social em torno aos espaços do conhecimento compartilhado. Outros têm mais presente à dramática marginalização de dois terços da humanidade, neste processo de modernização desigual.
Mas de toda forma, os rumos que apontamos prendem-se mais à necessidade de manter esperanças do que a certezas científicas. Perdemos as referências sociais, os “espelhos” da formação da nossa identidade, enquanto somos invadidos por um mar de quinquilharias tecnológicas de utilidade cada vez mais duvidosa, que apenas contribuem para a nossa desorientação.
Citando ainda Milton Santos, a base da ação reativa é o espaço compartilhado no cotidiano. Este espaço tem de ser reconstituído, não numa visão poética de um small is beautiful generalizado, e sim através da rearticulação dos espaços locais com os diversos espaços que hoje compõem a nossa sociedade complexa.
Esta rearticulação passa por uma redefinição da cidadania, e em particular por uma redefinição das instituições para que os espaços participativos coincidam com as instâncias de decisões significativas. As hierarquizações tradicionais dos espaços já são insuficientes, ou inadequadas, precisamos de muito mais democracia, de uma visão mais horizontal e inter-conectada da estrutura social.
Publicado em junho de 1995 por Ladislau Dowbor
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