TROTSKISMO – REFLEXÕES DE TROTSKY O LIDER REVOLUCIONÁRIO COMUNISTA E A REVOLUÇÃO RUSSA
O trotskismo é um termo comumente empregado para designar as teses e reflexões teóricas sobre a práxis e a teoria revolucionária comunista elaborada por Leon Trotsky (em russo: Lev Davidóvitch Trótskii). Intelectual marxista e líder revolucionário bolchevique, Trotsky nasceu em 1879, na Ucrânia, e morreu em 1940, no México.
O conjunto de seus escritos e publicações enfoca quatro temas centrais, que tiveram grande influência no ideário e nos movimentos socialistas:
– a lei do desenvolvimento combinado e desigual;
– a crítica à degeneração do Estado soviético (devido à burocratização);
– a elaboração das características constitutivas da sociedade socialista;
– o internacionalismo.
Todos esses temas integram a teoria da Revolução Permanente que, segundo o próprio Trotsky, não deve ser considerada uma contribuição original porque está baseada no pensamento e teorias formuladas por Karl Marx, Friedrich Engels e também por Vladimir Lênin.
Teoria da Revolução Permanente
De acordo com o próprio Trotsky, a teoria da Revolução Permanente foi inspirada no pensamento de um judeu russo, chamado L. Helfand, que depois emigrou para a Alemanha e adotou o pseudônimo de Parvus. Ao tomar conhecimento das reflexões de Parvus, Trotsky enriqueceu sua teoria agregando novas contribuições à análise.
A teoria da Revolução Permanente veio a público logo após a revolução abortada de 1905, na Rússia czarista, a partir de um breve texto intitulado “Balanços e Perspectivas”. De acordo com a teoria marxista, a revolução socialista será alcançada após um processo histórico e mediante algumas etapas, cuja finalização ocorre quando se liquida com a sociedade de classes.
Entre os adeptos do marxismo, acreditava-se que era imprescindível a etapa relacionada ao desenvolvimento das forças produtivas capitalistas e, por conseguinte, da burguesia e do modelo de democracia parlamentar, para depois chegarmos ao socialismo. Trotsky rejeitou, porém, essa tese e defendeu o princípio segundo o qual era possível “pular” algumas etapas do processo revolucionário.
Rússia czarista
A base empírica que sustentava a tese de Trotsky era um minucioso estudo das características do desenvolvimento social e econômico da Rússia sob o regime czarista. O Estado russo era um aparelho político cuja estrutura e funções serviam aos interesses da aristocracia czarista. Ou seja, o aparelho estatal russo era um Estado absolutista.
O desenvolvimento econômico fomentado pelo Estado russo no final do século 19 acarretou um acelerado processo de industrialização que, embora tardio em comparação com outros países europeus, provocou o aparecimento das fábricas e, por conseguinte, o surgimento do proletariado industrial.
Conforme as teses de Trotsky, o desenvolvimento econômico da Rússia era do tipo “desigual” e “combinado” e foi estimulado por influências externas. A Rússia foi obrigada a avançar por “saltos”, mas a conseqüência desse tipo de modernização foi a coexistência de estruturas produtivas novas e arcaicas. Desse modo, entende-se por que a classe média manteve-se exígua e a burguesia industrial permaneceu estritamente dependente, fraca e temerosa diante do aparelho estatal.
A revolução de 1905 mostrou, porém, que o proletariado tinha força para promover a ruptura da ordem social. Com essa análise, Trotsky defendeu a tese de que o proletariado industrial russo, embora sendo uma minoria da população, poderia vencer. E a concretização da revolução provaria, portanto, que não seria necessário atravessar a fase de domínio da burguesia e do regime democrático de tipo parlamentar.
Trotsky salientou, porém, que a consolidação da revolução socialista na Rússia só seria viável se ocorressem processos revolucionários similares em outros países. Esta última tese se baseava no fato de que sem o apoio de outros Estados, o atraso tecnológico, industrial e cultural da Rússia se revelaria um obstáculo à consolidação de um Estado socialista naquele país.
Expansão internacional
As principais teses contidas na teoria da Revolução Permanente se concretizaram com a Revolução de Outubro de 1917. O Estado absolutista russo foi derrubado por um processo revolucionário socialista liderado pelo proletariado. Porém, a necessidade da expansão internacional da revolução socialista não teve aceitação entre os principais líderes revolucionários russos.
Trotsky refinou suas teses e análises sobre o tema publicando, em 1924, o texto intitulado “As Lições de Outubro”, cujo conteúdo ratifica a tese de que a construção do Estado e sociedade socialista não poderia ficar permanentemente circunscrita a um território nacional. O risco era de não conseguir se consolidar em sua plenitude devido ao aparecimento de contradições internas e externas. Ou seja, se o Estado soviético continuasse no isolamento correria o perigo de sucumbir.
De acordo com a perspectiva de Trotsky, a Revolução de Outubro de 1917 deveria expandir-se internacionalmente de modo a provocar a chamada revolução mundial. Embora Trotsky tenha acertado ao assinalar o potencial revolucionário do proletariado de um país atrasado, como era o caso da Rússia, sua tese sobre a necessidade da revolução mundial como condição de sobrevivência do Estado socialista russo não se comprovou.
O teor das análises de Trotsky sobre esse último tema fez com que os líderes bolcheviques, Stalin, Zinoviev e Kamenev, rompessem com ele. Com a morte de Lênin, em 1924, Stalin assume o poder e envia Trotsky para o exílio. No último ano de exílio, em 1929, Trotsky consegue terminar de escrever a teoria da Revolução Permanente.
Em 1930, o líder revolucionário é expulso definitivamente da Rússia e dez anos depois é assassinado no México a mando do próprio Stalin.
FIM DO CZARISMO E BREVE GOVERNO SOCIAL DEMOCRATA
Nem econômica, nem militarmente a Rússia estava preparada para entrar na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Sua participação no conflito, portanto, foi uma sucessão de desastres, com números imensos de mortos e feridos. Além disso, a própria posição política do país na guerra era paradoxal: a Rússia aliou-se aos regimes democráticos da França e da Inglaterra, combatendo os Impérios centrais da Alemanha e da Áustria-Hungria (mais a Turquia).
No entanto, a Rússia não era uma democracia, mas uma autocracia: o czar (imperador) governava com poderes absolutos. O Parlamento ou Duma, instituído em 1906, mal e mal se opunha a ele. Para complicar, a czarina (imperatriz) era alemã e boa parte da corte simpatizava com a Alemanha, querendo mudar de lado no conflito. Para isso, não hesitavam em sabotar seus próprios exércitos, facilitando as vitórias adversárias.
Não bastasse tudo isso, o czar Nicolau 2º era um homem medíocre e indeciso, que sofria forte influência da esposa, Alexandra. Esta por sua vez estava praticamente dominada por um homem chamado Grigori Rasputin, um camponês que era ao mesmo tempo um místico e um charlatão e que passou a governar a Rússia, nos bastidores.
Rasputin aconselhava, por exemplo, a czarina a nomear um ministro à noite, alegando que Deus lhe transmitiu essa ordem. No dia seguinte, mandava demiti-lo, afirmando que o homem fora possuído pelo demônio. “A corte parece ora o zôo, ora o pátio dos milagres”, escreveu um deputado russo da época.
Repressão policial
Esse governo caótico era mantido à força de violenta repressão policial a seus opositores, que eram muitos e que se manifestavam desde as últimas décadas do século 19, quando a Rússia começou a se industrializar – embora o país permanecesse essencialmente agrário nas primeiras décadas do século 20: 85% de seus 170 milhões de habitantes viviam no campo.
Tentando sublevar os camponeses contra o regime autocrático, existiam grupos ou organizações como os “narodniks” (populistas), socialistas revolucionários e anarquistas, mas não obtiveram grandes êxitos: eram formados por intelectuais de classe média, cuja visão do povo era basicamente idealizada. Havia ainda uma oposição liberal burguesa ao czarismo, que acreditava na possibilidade de criar uma monarquia constitucional e efetivamente parlamentar no país.
O Partido Social-Democrata
Entre os grupos de esquerda, destacou-se – por seu papel histórico – o Partido Social-Democrata, de orientação marxista. Este, porém, como em geral tem acontecido às agremiações marxistas, já surgiu praticamente dividido em dois grupos:
1) Os mencheviques (termo russo que significa “minoria”), que acreditavam que uma revolução socialista só podia acontecer na Rússia depois que essa se tornasse industrializada e capitalista, de acordo com o pensamento original de Karl Marx;
2) Os bolcheviques (que significa “maioria”), que defendiam a revolução imediata, com a implantação de uma ditadura do proletariado, conduzida por um partido operário-camponês, adaptando o pensamento marxista à realidade local.
Antes de prosseguir é importante lembrar que essa nomenclatura não corresponde aos fatos: os mencheviques eram a verdadeira fração majoritária do Partido Social-Democrata. Em sua própria maneira de autodenominar-se, os bolcheviques estavam contando sua primeira mentira. Contariam muitas outras.
A Revolução de março
Convém esclarecer que, quando se fala em indústria e operariado na Rússia de então, fala-se nas grandes cidades: Petrogrado (antiga São Petersburgo, a capital do país), Moscou e Odessa. Era nelas que os problemas econômicos iriam se fazer sentir mais acirradamente e que a miséria crescente iria levar o povo em fúria às ruas, em março de 1917. A revolução russa iniciou-se em Petrogrado, de maneira caótica, sem lideranças definidas. A massa via no fim do czarismo a solução para seus problemas.
As mulheres deram início aos protestos populares, devido ao racionamento de alimentos. Foram seguidas pelos operários, que fizeram greves. A polícia não tinha contingente suficiente para reprimir tantos manifestantes e o governo resolveu apelar ao exército. Os soldados, porém, também insatsifeitos com os rumos da guerra, confraternizaram com o povo. Formou-se o soviete (conselho) de operários e soldados de Petrogrado e criou-se um Comitê Executivo Provisório na Duma (12 de março).
Três dias depois, o czar Nicolau 2º abdicou o trono. Os acontecimentos políticos passaram a se suceder tão rapidamente que se torna impossível não fazer algumas simplificações didáticas. Após a abdicação, formou-se um Governo Provisório presidido, a princípio, pelo príncipe Lvov, e depois por um de seus ministros, Alexander Kerensky, já num um regime republicano. O poder, contudo, era parcialmente dividido com o soviete de operários e soldados de Petrogrado. O caos reinava na nova República russa.
Por trás do caos
Contudo, por trás do caos aparente, aproveitando-se dele, as elites industriais e financeiras procuravam se impor. Dominando o mercado e estabelecendo preços, estavam se lixando para a miséria das massas. Financiavam o Governo provisório, mas não deixavam de ajudar também a seus próprios opositores mais radicais – os bolcheviques – de modo a salvaguardar-se caso estes últimos conseguissem triunfar (muitos capitalistas, por sinal, conseguiram salvo conduto para deixar o país quando isso aconteceu).
O finaciamento dos bolcheviques pelos capitalistas denota a hipocrisia da política e das relações humanas. Cinismo contra cinismo: “Tenho dinheiro suficiente para me dar ao luxo de sustentar até mesmo meus inimigos”, declarava um dos maiores capitalistas do país, em pleno governo Kerensky. “Eu pegaria o dinheiro do Diabo, se preciso, para servir à revolução”, declarava, com a mesma desfaçatez, o líder bolchevique Vladimir Ilitch Ulianov, que passou à história com seu nome de guerra: Lênin.
Lênin
Em março de 1917, Lênin amargava o exílio na Suíça, tendo fugido da polícia do czar. Era um homem envelhecido para os seus 47 anos, sofria possivelmente de sífilis, e não acreditava que veria a revolução, à qual dedicara os últimos 27 anos de sua vida.
Os acontecimentos de março na Rússia, porém, deram-lhe novo ânimo. Através da Alemanha, ele retornou a seu país onde chegou em abril, anistiado pelo Governo Provisório. Foi recebido calorosamente por seus correligionários.
Sem dúvida um grande estrategista político, Lênin compreendeu a situação que seu país vivia e percebeu como tornar a revolução dos mencheviques, dos anarquistas, de outros socialistas e dos liberais burgueses na “sua” revolução. Em primeiro lugar, os camponeses russos queriam terra, coisa que o Governo provisório (também sustentado pelos grandes proprietários rurais) não poderia dar. Em segundo lugar, os operários queriam melhorar seu modo de vida, algo para que o capitalismo selvagem vigente no país não iria absolutamente contribuir.
Finalmente, os soldados queriam paz e o Governo provisório, que contava com o apoio da França e da Inglaterra, não podia de maneira nenhuma retirar-se do campo de batalha. Mas Lênin sabia que aquele não era o momento de se opor radicalmente ao Governo provisório, o que poderia favorecer uma reação czarista.
Todo poder aos sovietes
Era preciso atacar os mencheviques sutilmente, utilizando-se do poder paralelo dos sovietes, que, aos poucos, Lênin vai bolchevizar, isto é, converter à sua visão do marxismo, que mais tarde se chamaria leninismo. A prova de que sua estratégia era correta está na breve duração da República burguesa na Rússia: de março a novembro de 1917. Em novembro (pelo calendário russo, outubro), os bolcheviques dariam um golpe de Estado, tomariam o poder e mudariam os rumos do país e da história universal.
Antes disso, porém, Kerensky conseguia se equilibrar no poder. Conseguiu, inclusive, em setembro, frustrar um golpe de direita do general Lavr Kornilóv. Mas, para isso, precisou pedir auxílio aos bolcheviques (o que não deixa de ser uma demonstração de sua fraqueza). Kerensky foi perdendo terreno ao insistir na guerra, ao negar-se a promover uma reforma agrária e a adiar as eleições para uma Assembléia Constituinte que estabelecesse o arcabouço legal do novo país.
Outubro vermelho
Gradualmente, os bolcheviques se infiltravam nos sovietes e aumentavam sua influência junto aos operários e soldados em especial. Lênin foi forçado a deixar o país mais uma vez, mas Trotsky prosseguiu sua obra, dedicando-se especialmente à criação de uma milícia bolchevique: a Guarda Vermelha.
Desse modo, na noite de 6 de novembro (24 de outubro no calendário russo), os bolcheviques tomaram todos os pontos estratégicos de Petrogrado. O Palácio de Inverno do czar, que era a sede do governo, foi bombardeado e Kerensky fugiu, sem contar com tropas para se defender.
O partido dos bolcheviques estava no poder e começou a expedir decretos que, a princípio, pareciam atender aos interesses das massas: suprimiram as grandes propriedades, atribuíram a gestão das terras aos comitês de camponeses, estatizaram fábricas que passaram ao controle dos operários. Isso não significava, porém, que a utopia igualitária do socialismo estava se tornando realidade.
Em primeiro lugar, a oposição ainda era enorme. Em segundo lugar, ao lado dos bolcheviques estavam outros grupos de esquerda, como os socialistas revolucionários e os anarquistas, que não estavam dispostos a concordar com eles em tudo. Em terceiro lugar, a desordem era generalizada no país.
Vodka e sangue
Para se ter uma idéia dessa última afirmação basta apontar dois fatos: o governo bolchevique resolveu abrir o Palácio de Inverno do czar à visitação pública e o resultado foi o saque de tudo o que havia no local, especialmente das adegas do palácio onde homens e mulheres se embriagaram numa orgia que se estendeu por uma semana.
Conforme relata um historiador trotsquista, Isaac Deutscher, foram necessários sete tentativas de conter a festa, uma vez que só a sétima guarnição destacada para a tarefa conseguiu executá-la – as seis anteriores confraternizaram com o inimigo.
A questão do alcoolismo pode parecer cômica, mas teve um fim trágico: como a população invadia todas as adegas disponíveis e se embriagava, os bolcheviques começaram a dinamitá-las, sem se preocupar em retirar os bêbados lá de dentro.
A repressão aos opositores do novo regime se organizou rapidamente: além da Guarda Vermelha, formou-se a Tcheka – uma polícia política secreta com plenos poderes, comparável à Gestapo nazista. Desde sua criação, a Tcheka era um sinal evidente de que a revolução bolchevista não criaria a utopia socialista, mas o regime totalitário que Stálin comandaria, pouco depois da morte de Lênin, em 1924.
SURGE A UNIÃO DAS REPÚBLICAS SOCIALISTAS SOVIÉTICAS
O autoritarismo leninista logo se explicitou nos acontecimentos relacionados à Assembléia Constituinte. Nas eleições de seus deputados, os bolcheviques só conseguiram 25%, dos 36 milhões de votos. Uma vez que eram absoluta minoria, dissolveram a Assembléia que só se reuniu em uma única sessão, em janeiro de 1918.
No mesmo ano, os bolcheviques criaram a agremiação política que se tornaria a única legal do país: o Partido Comunista e instituíram a República Federativa Soviética da Rússia, com capital em Moscou. A suposta ditadura do proletariado pregada por Lênin virou, na prática, a ditadura do Partido Comunista, formado basicamente por intelectuais de classe média. Nas palavras do historiador marxista francês Henri Avron:
“Os sovietes são a partir de então simples órgãos de execução do Partido, o poder central reina de maneira absoluta; ele se resume em três organizações: o Bureau político, isto é, o Partido; o Conselho Revolucionário de Guerra, isto é, o exército, e a Comissão Extraordinária ou Tcheka, isto é, a polícia; dirigidas respectivamente por Lênin, Trostky e Dzerjinsky.”
O brevíssimo período de democracia direta e popular exercido pelos sovietes estava definitivamente encerrado. O Partido comunista imediatamente começou a privilegiar seus membros, em especial os militares e policiais, para garantir sua fidelidade.
A paz de Bret-Litovsky
Para compensar as medidas impopulares (como um racionamento de alimentos quer privilegiava operários e membros do Partido, já em dezembro de 1917), o novo governo russo havia aberto negociações de paz com a Alemanha. As conversações se arrastaram e foram rompidas em 10 de fevereiro de 1918, pois o comitê diplomático comunista, comandado por Trotsky, acreditava (assim como Lênin) que também na Alemanha uma revolução socialista aconteceria.
A revolução alemã, no entanto, não aconteceu e, para firmar a paz, no Tratado de Brest-Litovsky, os russos foram forçados a ceder ao governo imperial alemão 27% de suas terras aráveis, 23% de sua indústria, 73% de seu minério de ferro e 5% do carvão.
Esse foi o primeiro dos grandes problemas que os comunistas tiveram de pagar para continuar no poder. Não parariam de pagar outros antes de 1922. Até lá, foram várias as insurreições populares que tiveram de enfrentar. Também não era para menos, como declarou sarcasticamente um camponês anônimo no 8º Congresso dos Sovietes, em março de 1920:
“Tudo vai muito bem. Mas se a terra é para nós, o trigo é para os comissários; a água é para nós, mas o peixe para os comissários; a floresta é para nós, mas a madeira para os comissários”. Por comissários, entenda-se os comissários do povo – nome com que os comunistas se batizaram, recorrendo a títulos criados durante a Revolução Francesa, que lhes servia de inspiração.
Vermelhos versus brancos
Além disso, a Rússia mergulhou numa guerra civil. Apoiadores do antigo regime, os russos brancos (por oposição aos comunistas, vermelhos) tentaram promover uma contra-revolução. Contaram com a aliança de outros países europeus, que não aceitaram a retirada unilateral da Rússia da guerra e temiam a expansão do comunismo.
Tropas francesas desembaraçaram em Odessa, tomaram a Criméia e o leste da Ucrânia. Ingleses avançaram rumo a Petrogrado. Tropas alemãs, francesas e polonesas ocuparam o oeste da Ucrânia. Japoneses, americanos e tchecoslovacos ocuparam a Sibéria.
Entretanto, o Exército Vermelho (formado a partir da Guarda Vermelha), apesar de sofrer essas derrotas, conseguiu organizar uma contra-ofensiva, principalmente porque os países aliados desconfiavam uns dos outros quanto aos seus interesses na Rússia, em caso de derrota dos comunistas. Assim, gradativamente as tropas estrangeiras foram se retirando do país. Os últimos a saírem foram os japoneses, em 1922.
Nesse período, os comunistas anexaram diversos territórios, estabeleceram relações diplomáticas com os países do ocidente europeu e instituíram a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, ou União Soviética, cuja existência se estendeu até 1991.
Comunismo de guerra
A guerra civil, porém, exigiu um esforço econômico batizado de comunismo de guerra, que constituiu no controle estatal da economia do país. Os camponeses boicotaram o processo, sonegando suas colheitas e a fome sobreveio. A indústria comandada por operários sem noções de administração não deram certo: a produção industrial russa de 1920 equivalia a 18% da produção do país em 1913.
Em 1921, até os marinheiros do porto de Kronstadt – revolucionários de primeira hora, chamados por Trotsky de “honra e glória” da Revolução – se amotinaram contra o governo. Uma de suas manifestações, o documento “Por que nós combatemos”, dá uma idéia de como os princípios da revolução operária tinham sido traídos:
“Ao fazer a Revolução de Outubro, a classe operária esperava obter sua emancipação. Mas o resultado foi uma escravidão ainda maior da individualidade humana. O poder da monarquia policialesca passou à mão dos usurpadores – os comunistas – que, em lugar de dar liberdade ao povo, reservou-lhe o medo dos cárceres da Tcheka, cujos horrores ultrapassam em muito os métodos da gendarmeria czarista. […] Tornou-se cada vez mais claro, e hoje torna-se evidente, que o Partido Comunista não é, como fingiu ser, o defensor dos trabalhadores. Os interesses da classe operária lhes são estranhos. Depois de haver conquistado o poder, há apenas uma preocupação: não perdê-lo.”
Sublevados, em 1920, os marinheiros de Kronstadt estavam prontos para pegar em armas contra os comunistas, declarando: “Aqui [em Kronstadt] foi içada a bandeira da revolta contra a tirania dos três últimos anos, contra a opressão da autocracia comunista que fez empalidecer os três séculos de jugo monarquista. […] É aqui em Kronstadt que foi lançada a pedra fundamental da Terceira Revolução, que romperá as últimas amarras do trabalhador e lhe abrirá o novo e grande caminho da edificação socialista”.
Trotsky e a militarização da URSS
Ironicamente, essa terceira Revolução foi massacrada por Trotsky – teórico da revolução permanente. Não foi a única das ironias da história a envolver este líder bolchevique. Anos mais tarde, em 1927, ele também iria se rebelar contra a ditadura do Partido Comunista. Como os marinheiros de Kronstadt, ele também seria massacrado 13 anos depois, em 1940.
Em 1928, porém, Trtosky procurou eximir-se da responsabilidade pelo massacre de Kronstadt, escrevendo artigos em que dizia não ter participado pessoalmente da repressão. De fato, não participou pessoalmente, mas era o comandante supremo das tropas repressoras e assinou a ordem que as pôs em ação. Além disso, não há como negar o militarismo de Trotsky nos primeiros anos do regime comunista: ele impôs, por exemplo, uma militarização do sistema de produção na União Soviética. Sob suas ordens, a disciplina e a hierarquia militar passaram a vigorar nas fábricas russas.
Nova Política Econômica ou NEP
Diante da insatisfação geral com tudo isso e do fato de seu poder estar em risco, Lênin deu início a um plano econômico que chamou de Nova Política Econômica (NEP), com marcados traços capitalistas. Isso representava, em economia, o que o tratado de Brest-Litovsky representou em termos militares: ceder os anéis para não perder os dedos.
A NEP dirigiu os investimentos para os setores fundamentais da economia, organizou comerciantes e agricultores em cooperativas, suprimiu as requisições estatais sobre a produção agrícola. Além disso, privatizou pequenas empresas, acabou como igualitarismo, hierarquizando os salários de acordo com as funções, atraiu técnicos e capitais estrangeiros. A NEP foi um sucesso e muitos grupos sociais se beneficiaram, pacificando os espíritos.
A morte de Lênin
Em 1924, porém, Lênin morreu e seus dois herdeiros políticos passaram a disputar o poder: Trotsky, marxista radical, partidário do internacionalismo socialista, ou seja, da exportação da revolução para outros países, e Stalin, secretário-geral do Partido Comunista, que defendia a teoria do socialismo num só país. Quando o socialismo estivesse consolidado na União Soviética e a nação conquistasse a independência econômica, o Exército Vermelho se tornaria insuperável e socializaria o mundo.
Stalin, o “Grande Irmão”
Politicamente, Stálin era muito mais hábil do que Trotsky. Não demorou a perceber que a máquina estatal russa, desde o século 18, se apoiava na burocracia e cooptou os burocratas, além de outros líderes revolucionários, isolando seu adversário. Trotsky foi obrigado a demitir-se do cargo de Comissário da Guerra e a exilar-se na Turquia (1929). Entre 1924 e o exílio de seu rival, Stálin consolidou seu poder na União Soviética.
A partir daí, passaria a personificar o poder supremo, instituindo o que se chama de “culto à personalidade”. Venerado ou temido como o grande irmão de todos os russos, iria concentrar o poder nas próprias mãos até a morte, em 1953 (inspirou, assim, o personagem Grande Irmão, aquele que tudo vê, do romance “1984”, de George Orwell).
Quanto a Trostky, foi obrigado a procurar refúgio do outro lado do oceano Atlântico, no México. A distância não o protegeu da ira de Stalin. Foi assassinado por Ramón Mercader, um agente stalinista, que nunca assumiu essa condição, afirmando ter agido por conta própria.
Conseqüência direta e inevitável do movimento de outubro de 1917, a história da União Soviética sob o governo de Stalin, porém, é uma outra história, da qual muito não se sabe. Em primeiro lugar, porque a falsificação sistemática da historiografia foi uma prática comum do regime stalinista. Além disso, os arquivos do período stalinista, bem como os de seus sucessores até 1991 ainda não vieram totalmente a público.
REVOLUÇÃO DE FEVEREIRO E REVOLUÇÃO DE OUTUBRO
Em 22 de fevereiro de 1917 (ou, no nosso calendário, 8 de março), greves e motins estouraram em Petrogrado (a antiga São Petersburgo, que tinha sido rebatizada logo no início da guerra, porque o nome “Petersburgo” soava alemão demais).
Dois dias depois, os soldados da Guarda Imperial juntaram-se aos revoltosos. A Duma (o Parlamento russo) formou então o primeiro governo provisório, presidido pelo príncipe Lvov, que garantiu a abdicação do czar Nicolau 2º> em 27 de fevereiro (15 de março no nosso calendário). Nicolau abdicou em favor do irmão, o grão-duque Miguel, e este, de sua parte, abdicaria no dia seguinte.
Sovietes
Enquanto isso, os bolcheviques reviviam os sovietes (conselhos populares que haviam surgido em 1905 e eram formados de camponeses e operários). Os soldados foram incitados a participar, o que colocou o Exército sob o controle dos sovietes, e não do governo provisório. Os sovietes passaram a opor-se a cada medida do governo provisório, especialmente depois que Lênin, o líder bolchevique, voltou do exílio e prometeu ao povo “Pão, Paz e Terra”.
A primeira tentativa bolchevique de tomar o poder veio a fracassar (o que obrigou Lênin a esconder-se), mas o governo provisório se enfraqueceu ainda mais, pela insistência em manter a Rússia na guerra e pelos desentendimentos entre o novo primeiro-ministro, Kerenski, e o comandante-chefe do Exército, Larv G. Kornilov.
Outubro vermelho
Lênin liderou outra revolta contra o governo provisório, e os bolcheviques tomaram o Palácio de Inverno, assumindo o poder em 25 de outubro (7 de novembro no nosso calendário). Por isso, pode-se muito bem afirmar que a Revolução de Outubro foi, na verdade, um golpe de Estado. Os bolcheviques transferiram o controle das fábricas para os operários, proibiram o comércio particular e confiscaram as terras da Igreja e de todos que consideravam “contra-revolucionários”.
No dia 5 de dezembro (a partir de agora, usaremos apenas o nosso calendário), estabeleceu-se o cessar-fogo entre o Exércitos russo e o alemão. Em 3 de março de 1918, os bolcheviques assinaram Tratado de Brest-Litovsk, um acordo de paz em separado com a Alemanha (ou seja, a Rússia abandonava seus antigos aliados e saía da guerra antes do final do conflito). Em 10 de março, a capital se transferiu de Petrogrado para Moscou. Em julho, aprovou-se a nova Constituição.
Também em julho, Nicolau 2º, a esposa, os cinco filhos (quatro meninas e um menino), três empregados e o médico da família foram executados pela Tcheka, a polícia secreta bolchevique. O objetivo era afastar qualquer possibilidade de volta da monarquia, o que implicava eliminar também os herdeiros da família real. (Os comunicados oficiais informaram a execução do czar, mas ocultaram a da família, afirmando que a czarina e os filhos “estavam em local seguro”.)
Guerra Civil
No começo, a Revolução de Outubro foi recebida com apatia, mas as forças militares contra-revolucionárias começaram a articular-se em dezembro de 1917. Assim, iniciou-se uma guerra entre o “Exército Branco” (contra-revolucionário) e o “Exército Vermelho” (organizado por Trotsky, um dos principais líderes bolcheviques), assim chamado por causa das bandeiras vermelhas que, desde o século 19, simbolizavam o comunismo (algumas dessas bandeiras também traziam estampada a imagem de uma foice e um martelo, representando a união entre os trabalhadores do campo e das fábricas).
A guerra civil se entendeu por quase três anos. O Exército Branco recebeu apoio de potências estrangeiras (Inglaterra, EUA, Japão…) que temiam que a revolução se espalhasse pelo resto do mundo, mas acabou sendo derrotado pelo Exército Vermelho.
No final de 1921, Lênin foi afastado do poder, após um derrame que o deixou semiparalisado. (Ele morreria em 1924, e Petrogrado passaria a chamar-se Leningrado.) Em 1922, Stalin assumiu o cargo de secretário-geral do Partido Comunista; eram os primórdios do stalinismo, uma ditaduras mais cruéis do século 20.
URSS, ou União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
O final do mesmo ano marcou o surgimento da União Soviética, ou, mais propriamente, da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). De início, ela era formada da Rússia, Ucrânia, Bielo-Rússia e Federação Transcaucasiana. Depois, foi acrescida de muitas outras “repúblicas” (na prática, estavam todas sob severo controle de Moscou e não tinham autonomia nenhuma).
O significado da Revolução Russa
De um lado, estão aqueles que consideram a Revolução Russa o acontecimento político mais importante do século 20, tendo levado ao nascimento da URSS, que veio a tornar-se uma superpotência militar, científica e tecnológica. Do outro lado, estão os críticos do regime instalado pela Revolução Russa, que se dividem em dois grupos: os que defendem o capitalismo e os que, mesmo sendo socialistas, condenam o tipo de socialismo implantado na URSS. Para os primeiros, o socialismo, tanto na teoria quanto na prática, é uma ameaça à democracia e à liberdade. Para os segundos, os soviéticos traíram e distorceram os ideais de um mundo justo e igualitário.
CRONOLOGIA
8 de março de 1917 – Dia internacional da mulher. As mulheres da periferia de Petrogrado realizam uma manifestação contra a fome no país.
9 de março – 200 mil operários entram em greve. O povo quer comida.
10 de março – Soldados vacilam na repressão. A agitação aumenta. a greve é geral em Petrogrado.
11 de março – Os soldados começam a aderir à revolução e formam-se os primeiros sovietes.
12 de março – Formação do soviete de deputados operários e soldados de Petrogrado. Criação do Comitê Executivo Provisório da Duma (Parlamento)
13 de março – Detenção de ex-ministros do czar. Negociações entre o Soviete e o Comitê Executivo da Duma para a criação de um governo provisório.
15 de março – Formação de um governo provisório sob a presidência do príncipe Lvov. o czar abdica em favor de Mikhail Romanov.
16 de março – Mikhail abdica. É o fim da dinastia Romanov.
30 de março – Primeira parada militar republicana. Funeral solene das vítimas da revolução.
8 de abril – Lênin volta à Rússia.
16 a 19 de julho – Manifestações de massa contra os problemas não resolvidos pelo novo governo. Kerensky controla a situação com o auxílio do exército.
20 de julho – Lênin foge para a Finlândia.
7 de setembro – O general Kornilov tenta um golpe de direita e fracassa, mas Kerensky está isolado à direita e à esquerda.
25 de outubro – Reunião clandestina do comitê central bolchevique. Lênin decide por uma insurreição armada. Cria-se a Guarda Vermelha que ocupa o Instuto Smólni.
4 de novembro – Reunião do Soviete de Petrogrado. Kerensky tenta sem sucesso afastar a guarnição e a frota que são a favor da insurreição.
6 de novembro – Lênin chega ao Instituto Smólni. Durante a noite, as gráficas, es edifícios públicos e as pontes são ocupadas pela Guarda Vermelha e pelos soldados partidários dos bolcheviques.
7 de novemvro – O Palácio de Inverno, sede do Governo, de onde Kerensky fugiu é bombardeado e tomado pelos bolcheviques.
8 de novembro – Lênin lê o decreto que dá terra aos camponeses. Entra em ação o 2o Congresso dos Sovietes.
9 de novembro – O Congresso dos Sovietes confirma o Conselho dos Comissários do Povo como novo Governo. Por enquanto, a Revolução só triunfou em Petrogrado.
11 de novembro – Na ausência de Lênin e Trotsky, que organizam as defesas da capital contra as tropas de Kerensky, o comitê central do partido bolchevique abre negociações para um governo de conciliação com os mencheviques e outros partidos, que exigem a demissão de Lênin e Trotsky.
14 de novembro – Lênin retoma o controle da situação.
15 de novembro – A revolução triunfa em Moscou depois de seis dias de batalhas. Promulga-se a “Declaração do Direito Nacional dos Povos” em que o novo governo se compromete a acabar com o domínio Russo sobre a Finlândia, a Geórgia e a Armênia.
2 de dezembro – Abertura das negociações de paz com os alemães em Brest-Litovsk.
11 de dezembro – Manifestações em Petrogrado a favor da Assembléia Constituinte, organizada pelos partidos não bolcheviques.
20 de dezembro – Criação da Tcheka: polícia política secreta com plenos poderes.
18 de janeiro de 1918 – Única sessão da Assembléia Constituinte, fechada pelos bolcheviques.
10 de fevereiro – Negociações suspensas em Brest-Litovsk. Os sovietes esperam em vão a revolução alemã.
15 de março – Rússia assina a paz com a Alemanha, fazendo grandes concessões .
Março de 18 a dezembro de 1920 – Guerra civil e intervenções armadas estrangeiras.