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segunda-feira, dezembro 2, 2024

VARIAÇÕES LINGUISTICAS E O PRECONCEITO LINGUISTICO

MINIPESQUISA COM BASE NO LIVRO

“OS NOMES DO AMOR”.

INTRODUÇÃO:
A língua portuguesa no Brasil, ao contrário do que se imagina, não é uniforme em todo o território. Cada região de nosso país fala o português de uma maneira diferente. A língua sofre variações de toda espécie: de pronúncia, de concordância, de léxico. Assim, os itens lingüísticos encontrados podem ser fônicos, morfossintáticos e lexicais. Enfim, há no Brasil muitas variedades lingüísticas. Dessas variedades existentes foi escolhida uma para representar oficialmente a língua portuguesa. Esta variedade tornou-se então a variedade padrão, ou seja, aquela que obedece a norma padrão ou culta da língua.

Ela foi adotada oficialmente para registrar, escrita e oralmente, todas as manifestações da cultura brasileira: a história, documentos, livros, revistas, jornais e etc..

A variedade padrão é considerada “correta”, culta, bonita e desta forma qualquer desvio da norma padrão tende a sofrer discriminação, sendo então, classificado como “errado”, inculto, feio. Por ser adotada pelos grupos sócio-econômicos mais privilegiados, a utilização da variedade padrão é muitas vezes indício de status e prestígio, enquanto que a não utilização da mesma é fortemente estigmatizada.

Trata-se de um preconceito lingüístico que acaba por dificultar o ensino da própria língua nas escolas.

Nesta minipesquisa, estudaremos duas variedades da língua portuguesa a de Maria Júlia e José Romildo, que também podem representar, de certa forma, a variedade “mineira” e “pernambucana” respectivamente. Para isto, utilizaremos cartas escritas por eles retiradas do livro “Os nomes do amor” de Marcos Bagno e Stela Maris Rezende.

Como referência para o estudo lingüístico, que faremos a seguir, e para fins de comparação utilizaremos a variedade padrão, observando e explicando algumas das variantes encontradas nas cartas, bem como as principais características dos falares.

A seguir, apresentaremos conceitos da Lingüística Geral e discutiremos as causas e soluções para os problemas gerados pelo preconceito lingüístico no ensino da língua.

Estudo da variedade de Maria Júlia.

Aspectos Gerais.

Observemos os traços marcantes da variedade lingüística nas cartas de Maria Júlia através das frases, expressões, locuções e palavras abaixo:

Primeira carta (12/05/1990).

Frases:
“Ontem a tarde, a minha mãe chegou do serviço dela com os olhos estúrdio e uma carta na mão.” (curioso, extravagante, esquisito).

“Que embondo havera de ser esse ?” (coisa inútil).

Expressões, locuções e palavras regionais: talzinho, nada vezes nada, haverá de + verbo, prosear, exaurida, beirando, esquecendo Deus e o mundo, lerdeza e danar a perguntar.

Segunda carta (23/05/1990).

Frase:
“Careço de estudar prum mundaréu de prova.”

Expressões, locuções e palavras regionais: carecer e mundaréu.
Terceira carta (30/05/1990).

Expressões, locuções e palavras regionais: enlevo, prosear (conversar, falar), falar que só ele, demais da conta, delicitude, granfa (gíria de granfino), aprumada no requinte, farturança, clamando da vida, de quando, petimba, cobre, valença, da lida, desembesto, que Deus deu e alembrar.
Quarta carta (07/07/1990).

Frases:
“Espia só: Corquinho do Barro.”

“Um beijo no seu rosto inesquecível.”

Expressões, locuções e palavras regionais: cismaram de, uma lindeza, delicitude, primoroso, é bonito que dói, assossegada, esparoladas (atirado, mentiroso), vivença, enfurno, animosa, trejeito, esmiuçar, parecenças (semelhanças), aflitude, desmantelo.

Quinta carta (17/07/1990).

Frases:
“Verdade pura café sem gordura: alembro de você muitas vezes por dia, sinto querença de ter você por perto, pra poder te dar um abraço.”

Expressões, locuções e palavras regionais: caçoou de mim, doidura, intento, perrengue, benza Deus, festoso, aventurança, galhofar de mim, estúrdia, assunto (verbo assuntar).
Sexta e Sétima carta. (18/07/1990 – 12/09/1990).

Expressões, locuções e palavras regionais: par constante, desnorteada, desgovernou, descalabro, moço granfo, galhofando, mister, estorva, dorida e latejosa.
Oitava carta. (22/09/1990).

Expressões, locuções e palavras regionais: esturdice, espaventada.
Nona carta. (12/10/1990).

Frases:
“Já estou na maior,bem-aventurança, em desde agora”.

Décima carta. (20/10/1990).

Expressões, locuções e palavras regionais:esmiuça, entressonha, encompridado.
Após a leitura das cartas que Maria Júlia destinava a José Romildo podemos observar que a variedade lingüística utilizada por ela é uma rica mistura de coloquialismos, arcaísmos e expressões regionais principalmente.

As variantes encontradas são geográficas (ligadas ao regionalismo), sociais (ligadas às diferentes classes sociais, faixa etária, sexo), históricas (arcaísmos) e até mesmo estilísticas (estilo), seguindo a classificação de Roberto G. Camacho.

Vale ressaltar aqui que a mesma palavra pode ser exemplo de mais de um tipo de variação. Vejamos alguns exemplos:

A adolescente de Dores do Indaiá (Minas Gerais) apresenta um falar característico da região onde mora, da classe social a que pertence e do grupo de indivíduos de mesma faixa etária (menos de dezoito anos), faz uso de palavras que estão em desuso na norma padrão da língua portuguesa, ou seja, estão em processo de desaparecimento e além disso também possui características que são individuais, próprias de Maria Júlia em sua maneira de falar (estilo).

Estudo da variedade de José Romildo.

Aspectos Gerais.

Observemos agora os traços marcantes da variedade lingüística nas cartas de José Romildo. Os aspectos mais interessantes, ou seja, os que melhor representam o falar pernambucano podem ser encontrados na frase, expressões, locuções e palavras a seguir:

Primeira carta (07/05/1990).

Frases:
“Oxente,como é que alguém diz que gosta de ler e nunca se interessou por histórias

policiais ?” (palavra que indica espanto).

“Se ler e não gostar tanto quanto eu, não se aperreie.” (nervoso, preocupado, oprimido).

Segunda carta (17/05/1990).

Frase:
“Desculpe a cartinha meio avexada, mas não se aperreie não, visse?…”

Expressões, locuções e palavras regionais: avexada (apressada), aperreio (zagar-se), visse (usada apenas para chamar a atenção do ouvinte ou leitor, ou seja, testa o canal de comunicação).
Terceira carta (19/06/1990).

Frase:
“Um cheiro do Rominho”.

Expressões, locuções e palavras regionais: garrancho, atarrantado, demente, molambo,baboseira, um montão de, abestado, furdunço, nos panos, filho macho, cara de lesa, arrengam, umas derrotas, tascam.
Quarta carta (12/07/1990).

Nesta carta, José Romildo escreve como Maria Júlia e se apodera das expressões e regionalismos dos quais ela faz uso, observe:

Frase:
“Uma querença de você, de tocar na sua pele…

Na verdade, um desassossego estúrdio visita meu coração…”.

Mas ai vem também a aflitude…”

Expressões, locuções e palavras regionais: querença, desassossego, estúrdio, aflitude.
Quinta carta (22/07/1990).

Nesta carta, José Romildo escreve como Maria Júlia e se apodera das expressões e regionalismos dos quais ela faz uso, observe:

Frase:
“Se eu tiver sendo besta, tu me perdoa, mas pelo que pude sentir pela sua carta….”

Expressões, locuções e palavras regionais: eita nome, nem um tiquinho, nem a pau, enxerida, burralda.

Sexta carta (17/09/1990).

Expressões, locuções e palavras regionais: endinheirado, arretada.
Sétima carta (25/09/1990).

Frase:
“Ixe, acabo de reler tudo o que escrevi até agora e achei muita baboseira.”

Expressões, locuções e palavras regionais: aperreado, abusado.
Após a leitura das cartas que José Romildo destinava a Maria Júlia podemos observar que a variedade lingüística utilizada por ele também é uma mistura de coloquialismos, arcaísmos e expressões regionais associados às variantes encontradas na variedade padrão da língua portuguesa.

As variantes encontradas também são geográficas (ligadas ao regionalismo), sociais (ligadas às diferentes classes sociais, faixa etária, sexo), históricas (arcaísmos) e estilísticas (estilo).

Vejamos alguns exemplos:

O adolescente de Poço da Panela (Pernambuco) apresenta um falar característico da região onde mora, da classe social a que pertence e do grupo de indivíduos de mesma faixa etária (menor de idade), e também possui características que são individuais, próprias de José Romildo em sua maneira de falar (estilo).

Comparando as duas variedades estudadas.

Observando as cartas de José Romildo e Maria Júlia, podemos perceber que a medida em que o tempo passa, o sentimento que sentem um pelo outro vai se modificando e a intimidade entre eles vai aumentando, ao ponto do estilo utilizado para a comunicação se modificar inteiramente.

A cada carta as linhas tornam-se mais e mais carinhosas e sentimentais e as formas de tratamento tornando-se cada vezes mais informais. Observe as cartas de José Romildo: Prezada Maria Júlia, Cara Maria Júlia, Maria Júlia, Maju e Maju do meu coração. Vejamos agora as de Maria Júlia: Caro José Romildo, José Romildo, Querido José Romildo, Rominho, Querido Rominho, Meu Rominho, Rominho amor querido.

Verificamos que a variedade utilizada por José Romildo é mais próxima da variedade padrão que a utilizada por Maria Júlia, muito influenciada por arcaísmos e expressões regionais.

Comparando diferentes léxicos e expressões utilizadas por eles em situações idênticas conseguiremos explicitar ainda mais suas diferenças, por exemplo, enquanto José manda “cheiros”, Maria manda “beijos” e enquanto Maria se diz na “petimba”, José confessa sua “pindaíba” e assim por diante.

A Questão do Preconceito.

A língua, como já vimos, é falada de muitas maneiras diferentes, sendo que algumas delas têm prestígio na nossa sociedade enquanto que outras não. Como as pessoas e suas posições na sociedade são diferentes, assim também serão os seus falares. Esta será então a regra para julgar a variedade falada, pois a sociedade transfere a importância e o prestígio de seus falantes para os falares utilizados por eles.

Isto gera o preconceito lingüístico, bastante arraigado em nossa sociedade, que estigmatiza a variedade falada pelas classes sociais menos favorecidas. E a partir dele atribui os valores de “certo” à fala de prestígio e “errado” aos demais falares da nossa língua.

Mas o estudo da língua nos mostra que não existe variedade certa e errada. Todas as variedades seguem regras para sua utilização. Nada existe, em termos estruturais que diga que um dialeto é melhor ou pior que outros (ou que sirva melhor para expressar determinada cultura do que os outros). O que existe por trás desta idéia, é um equívoco a respeito das noções “certo” e “errado”.

Podemos dizer em termos do português, que um enunciado seria errado se fosse agramatical, ou seja, utilizasse estruturas inexistentes em todas as demais variedades da língua portuguesa.

Podemos considerar duas maneiras de se tratar as diferenças dialetais na sala de aula: atribuir a elas valores de “certo” e “errado”, de acordo com uma norma preestabelecida, ou fazer uma gramática das diferenças e observar como a sociedade as manipula. A primeira opção é que vem comumente sendo aplicada na escola, durante o processo de ensino da língua, colocando-se a gramática normativa como “certa” e os falares que delas diferem “errados”. A segunda opção, por outro lado, é mais difícil de ser trabalhada, pois exige que o professor esteja aberto as diversas variedades da língua com a qual trabalha e saiba como a sociedade as manipula, além de ter conhecimento da noção de norma culta. Além disso ele precisará ter habilidade para apresentar e ensinar a variedade padrão sem incorrer no preconceito ou estigmatização da variedade já conhecida e utilizada pelo aluno.

A norma culta pode ser definida como uma variedade de prestígio da língua, considerada “bonita” e “correta” pelos falantes desta língua, e na qual é escrita e falada a cultura. Neste sentido, a norma culta não deve ser confundida com os preceitos da gramática normativa (a gramática escolar), uma vez que este tipo de postura normativista é bastante criticável, por excluir e discriminar, ao ditar regras de “bom uso”, todos os falantes de dialetos ou variedades da língua que se distingue do previsto nos preceitos da gramática normativa. Além disso, a grande inconsistência entre a teoria e a prática da gramática escolar faz com que esta não sirva nem como modelo descritivo do funcionamento da nossa língua.

Diante da importância de norma culta e por outro lado, também de que nenhum dialeto é melhor ou pior do que os outros, em termos de estruturação lingüística, uma séria questão se coloca para a escola: ela deve ensinar o aluno a norma culta ou deve ensiná-lo a ler e a escrever em seu próprio dialeto? Está é uma questão delicada, cuja resposta obriga a escola a trabalhar com uma contradição, em uma situação de dilema.

Como o dialeto do aluno (seja ele de prestígio ou não) é perfeito em termos lingüísticos, não haveria razão para a escola não adota-lo. Entretanto, ocorre que a opção pelo dialeto da comunidade como língua da escola, principalmente nos casos em que o dialeto dessa comunidade não tem muito prestígio, pode confinar o aluno aos limites do seu próprio mundo, condenando-o à sua pobreza, impedindo-o de, ao ampliar seus horizontes ascender socialmente (não se pode esquecer que a escola é também meio de ascensão social). É neste sentido que a escola se vê obrigada a viver em constante contradição: a de não discriminar o dialeto dos alunos (aprendido com pais e familiares), uma vez que o dialeto é também um modo de posicionamento e de afirmação individual como membro de um grupo, dentro da sociedade, tendo também, por outro lado, que ensinar e incentivar o seu uso em situações adequadas e não quer fazer com que o aluno o deixe completamente de lado, durante a sua permanência na escola. Pois quando se aprende uma língua estrangeira, não é preciso esquecer a língua materna; apenas usa-se a língua estrangeira quando necessário. Do mesmo modo, para se aprender a norma culta não é necessário esquecer e deixar de usar o próprio dialeto.

Assim, o ensino da norma culta, por si só, não assume um caráter discriminador dos outros dialetos, se a norma culta for apresentada e tratada como mais um dos dialetos da língua. Entretanto, o desconhecimento da norma culta pode funcionar como um fator gerador de discriminação, pois este não é apenas mais um dos dialetos da língua, mas é o de maior prestígio. Por este motivo, é de fundamental importância que a norma culta seja apresentada aos falantes de outros dialetos da língua, principalmente de dialetos estigmatizados. Porém, é importante que ela seja mostrada como um dialeto real da língua, que tem estruturas e usos específicos, e não através de regras e exercícios que não ensinam nem descrevem a verdadeira estrutura lingüística dessa variedade da língua, como ocorre na gramática normativa escolar.

A questão do ensino da variedade padrão na escola.

A ideologia da deficiência cultural (oriunda dos EUA, nos anos 70) afirmava que a pobreza era responsável pelas faltas, dificuldades da criança na escola. Ela ainda servia para explicar a inferioridade das crianças desprivilegiadas economicamente dentro da sociedade.

Dentro deste conjunto de idéias, a deficiência lingüística surgia como aspecto crucial da deficiência cultural. Partindo da relação existente entre linguagem e pensamento sugeria-se que o fracasso escolar destas crianças era decorrente da “pobreza” de seu contexto lingüístico.

Estudiosos como Bernstein estudaram a relação causal entre criança, linguagem, rendimento escolar e a classe social a que pertence. Ele ainda referencial para os chamados programas de educação compensatória.

Com esta medida, pretendia-se eliminar as desigualdades presentes na escola com ações principalmente preventivas que tentavam aproximar as crianças desfavorecidas do contexto cultural das mais abastadas.

O conceito de deficiência lingüística é inapropriado, pois, como já foi demonstrado por pesquisadores, não há nem culturas, nem línguas melhores ou piores. Apenas se pode descrevê-las como diferentes.

Quando se estuda uma língua nota-se que a mesma tem particularidades que se adequam às necessidades dos que a usam. O mesmo ocorre com os dialetos pertencentes a uma mesma língua: “… todos eles são sistemas lingüísticos igualmente complexos, lógicos, estruturados” .

Labov, pesquisador contemporâneo de Berstein, certificou-se de fato ao estudar crianças de guetos de Nova Iorque. Para ele, elas tinham capacidade semelhante às crianças mais privilegiadas economicamente para a educação formal.

A teoria da deficiência cultural busca explicações para o fracasso escolar da criança no lugar errado: ao invés de identificar os obstáculos sociais e culturais para a realização da aprendizagem e reconhecer a dificuldade da escola em enfrentar a realidade social, coloca o problema na criança, na sua incapacidade. Este último é o caminho traçado pelos programas de educação compensatória.

Erro de português não existe

Flavio Lobo

Escritor e lingüista denuncia o preconceito lingüístico e considera absurdo dizer que os brasileiros não sabem português

Leia mais:

Manifesto lingüístico

“O brasileiro sabe o seu português, o português do Brasil, enquanto os portugueses sabem o português deles. Nenhum dos dois é mais certo ou mais errado, mais feio ou mais bonito: são apenas diferentes um do outro.”

Nesse trecho de seu livro Preconceito lingüístico – o que é, como se faz, Marcos Bagno ataca a crença segundo a qual “brasileiro não sabe português e só em Portugal se fala bem português”.

Esse “mito” seria um dos pilares do que ele chama de “mitologia do preconceito lingüístico” – um conjunto de crenças equivocadas, responsável pela má qualidade e ineficiência do ensino do português nas escolas e pela dificuldade que muitos brasileiros têm no trato com a língua materna.

Para Bagno, o “erro de português”, que amedronta, intimida e humilha tanta gente, simplesmente não existe. Haveria, na verdade, diferentes gramáticas para diferentes variedades do português. Cada uma delas perfeitamente válida em seu contexto. Todas merecedoras de respeito.

Autor de livros para crianças, jovens e adultos, incluindo ficção e obras sobre língua e literatura, Bagno, que tem 37 anos, também é tradutor. Formado em letras, com mestrado em lingüística, hoje faz doutorado em língua portuguesa na USP.

Desde a graduação, ele se interessou pela sociolingüística – disciplina que estuda as relações entre língua e sociedade – e pela revisão dos conceitos de “norma culta”, “norma padrão”, do que é certo e errado na língua. Estudos e revisões que, segundo ele, não têm sido acompanhados por muitos dos que se apresentam como especialistas no debate sobre o ensino e a situação da língua portuguesa no Brasil.

De acordo com Bagno, existe uma “briga” entre dois grupos no campo das questões lingüísticas e gramaticais. Um é composto por lingüistas, verdadeiros especialistas no assunto. O outro seria o dos “puristas”, defensores de uma tradição gramatical dogmática e anticientífica.

O surpreendente, diz ele, é que, ao mesmo tempo em que o MEC estaria ouvindo os lingüistas, e acompanhando as pesquisas acadêmicas – num processo de modernização evidenciado nos novos Parâmetros Curriculares Nacionais -, os meios de comunicação estariam desempenhando um papel mais conservador.

Quase todos os programas de rádio e TV, colunas de jornais e revistas, manuais de redação, CD-ROMs e até sites na Internet dedicados a questões da língua estariam tentando preservar normas ultrapassadas por meio do que ele denomina “comandos paragramaticais”.

“As pessoas que falam e escrevem sobre a língua na mídia em geral são jornalistas, advogados ou professores de português que não estão ligados à pesquisa, não participam do debate acadêmico, não estão em dia com as novas tendências da lingüística – são os que eu chamo de gramatiqueiros”, critica Bagno.

Para ele, esses “pseudo-especialistas”, ao tentar fazer as pessoas decorarem regras que ninguém mais usa, estariam vendendo “fósseis gramaticais”, fazendo da suposta dificuldade da língua portuguesa um produto de boa saída comercial.

Outro “mito” tratado no livro Preconceito lingüístico – o que é, como se faz, é a idéia, bastante difundida, de que a língua portuguesa é difícil. Bagno afirma que a dificuldade de se lidar com a língua é resultado de um ensino marcado pela obsessão normativa, terminológica, classificatória, excessivamente apegado à nomenclatura.

Um ensino que parece ter como objetivo a formação de professores de português e não a de usuários competentes da língua. E que ainda por cima só poderia formar maus professores, já que estaria baseada numa gramática ultrapassada, que não daria conta da realidade atual da língua portuguesa no Brasil.

Ele acredita que se, em vez disso, os professores se concentrassem no que é realmente importante e interessante na língua, se ajudassem os alunos a desenvolver sua capacidade de expressão e reflexão, não haveria tanta gente – depois de anos e anos de estudo – em pânico diante do desafio de escrever uma pequena redação no vestibular.

As críticas que faz à gramática tradicional não devem ser confundidas com um “vale tudo” lingüístico, explica Bagno. “No campo da língua, na verdade, tudo vale alguma coisa”, assegura o escritor. Mas esse valor dependeria do contexto, de “quem diz o quê, a quem, como, quando, onde, por quê e visando que efeito”.

Quanto ao ensino nas escolas, diz ele, a norma culta deve mesmo ser o principal objeto de estudo. O problema estaria na definição da norma culta a ser ensinada. A “norma culta idealizada”, que só existiria nas gramáticas, deveria ser deixada de lado para dar lugar à norma culta real – identificável na fala e na escrita atual da população culta do país.

As diferenças entre a norma culta das gramáticas tradicionais e a norma culta real, de acordo com Bagno, não são tão grandes. Elas parecem mais freqüentes e profundas, segundo ele, por causa do esforço feito pelos “gramatiqueiros” para preservar seus “dinossauros lingüísticos”.

“Bastaria eles tirarem as teias de aranha da cabeça para verem que a língua portuguesa não se desintegraria caso eles a deixassem livre para seguir seu curso”, ironiza.

Falando das regras que vão contra a evolução natural da língua portuguesa no Brasil, Bagno cita casos como o do verbo assistir: “O professor pode repetir mil vezes que assistir é transitivo indireto, que o aluno sai da aula e diz que vai assistir o filme em vez de assistir ao filme.

Muitos jornalistas, por exemplo, que se esforçam para escrever e falar ‘certo’ dizem que um milhão de pessoas assistiram ao filme, mas logo se traem ao dizer que o filme foi assistido por um milhão de pessoas – sendo que um verbo transitivo indireto não admitiria essa forma passiva.”

Outro exemplo seria o famoso se de vendem-se casas. Para Bagno os brasileiros interpretam esse se não como uma partícula apassivadora, mas como índice de indeterminação do sujeito. Uma interpretação, assegura ele, perfeitamente razoável e legítima. “Eu mesmo, em meus livros, só escrevo vende-se casas, ensina-se matérias e não deixo os revisores ‘corrigirem’.”

Ele também não vê como erro, mesmo para quem pretende se expressar na norma culta, formas como vi ele em vez de o vi e a substituição dos pronomes seu e sua por dele e dela sempre que se referem a ele ou ela. “O brasileiro só usa seu e sua, com naturalidade, para dizer que algo pertence a você.”

Outras formas, há muito em desuso, como o pronome vós, que, na visão de Bagno deveriam entrar em sala de aula apenas como uma curiosidades da história da língua, mencionadas como algo que os estudantes vão encontrar em textos antigos. “Não deveriam mais ser cobrados como parte do conhecimento ativo, prático, dinâmico da língua.”

Para que a língua seja ensinada de forma dinâmica, prazerosa e eficaz, precisaria ser entendida pelos professores como algo vivo em constante processo de evolução – e não de corrupção.

Os professores de português precisariam ter uma postura similar a de um professor de biologia ou física, “que sabe perfeitamente que muito do que ele está ensinando hoje pode ser reformulado ou mesmo negado amanhã”, defende Bagno.

Também é necessário, segundo ele, que o trabalho de identificação e descrição da norma culta brasileira atual, que está sendo feito por meio das pesquisas universitárias, sirva como base para a elaboração de gramáticas dirigidas ao ensino escolar e aos falantes da língua em geral. “É um trabalho que eu mesmo quero começar a fazer quando terminar o doutorado”, planeja.

Bagno considera indispensável o incentivo ao uso da norma culta, especialmente nas manifestações lingüísticas de maior importância e alcance sociocultural e nas que visem a comunicação entre as diferentes regiões do país.

Mas, como escreveu no livro Preconceito lingüístico, “esse incentivo não precisa vir acompanhado do desdém, do menosprezo, da ridicularização das outras inúmeras normas lingüísticas que existem dentro do universo brasileiro da língua portuguesa”.

Manifesto lingüístico

Panfleto prega respeito à diversidade – Dois dos livros mais recentes de Marcos Bagno, Preconceito lingüístico – o que é, como se faz e A língua de Eulália, têm sido adotados em cursos de letras. Nas palestras e debates que tem sido convidado a fazer em universidades, Bagno distribui entre os estudantes um panfleto intitulado “Dez cisões. Por um ensino de língua não (ou menos) preconceituoso”, cujo conteúdo está reproduzido abaixo.

1) Conscientizar-se de que todo falante nativo de uma língua é um usuário competente dessa língua, por isso ele SABE essa língua. Com mais ou menos quatro anos de idade, uma criança já domina integralmente a gramática de sua língua. Sendo assim,

2) Não existe erro de português. Existem diferentes gramáticas para as diferentes variedades de português, gramáticas que dão conta dos usos que diferem da alternativa única proposta pela Gramática Normativa.

3) Não confundir erro de português (que, afinal, não existe) com simples erro de ortografia. A ortografia é artificial, ao contrário da língua, que é natural. A ortografia é uma decisão política, por isso ela pode mudar de uma época para outra. Línguas que não têm sistema escrito nem por isso deixam de ter sua gramática.

4) Tudo o que os gramáticos conservadores chamam de erro é na verdade um fenômeno que tem uma explicação científica perfeitamente demonstrável. Nada é por acaso.

5) Toda língua muda e varia. O que hoje é visto como certo já foi erro no passado. O que hoje é visto como erro pode vir a ser perfeitamente aceito como certo no futuro da língua.

6) A língua portuguesa não vai nem bem, nem mal. Ela simplesmente VAI, isto é, segue seu caminho, transformando-se segundo suas próprias tendências internas.

7) Respeitar a variedade lingüística de uma pessoa é respeitar a integridade física e espiritual dessa pessoa como ser humano digno de todo respeito, porque

8) A língua permeia tudo, ela nos constitui enquanto seres humanos. Nós somos a língua que falamos. Enxergamos o mundo através da língua. Assim,

9) O professor de português é professor de TUDO. Por isso talvez devesse ter um salário igual à soma dos salários de todos os demais professores.

10) Ensinar bem é ensinar para o bem. É valorizar o saber intuitivo do aluno e não querer suprimir autoritariamente sua língua materna, acusando-a de ser “feia” e “corrompida”. O ensino da norma culta tem de ser feito como um acréscimo à bagagem lingüística da pessoa e não como uma substituição de uma língua “errada” por uma “certa”.

Biografia

Livros de Marcos Bagno nas áreas de língua e educação
A língua de Eulália (novela sociolingüística), Editora Contexto, 1997
Pesquisa na escola – o que é, como se faz, Edições Loyola, 1998
Preconceito lingüístico – o que é, como se faz, Edições Loyola, 1999

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAGNO, Marcos. A língua de Eulália. São Paulo: Contexto, 1997.

CAMACHO, Roberto G. A variação lingüística. In VOGT, Carlos ª et alii. Subsídios à proposta curricular de língua portuguesa para o 1º. e 2º. Graus. São Paulo: SE/CENP, 1988. V.1, p. 29-41.

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