VARIEDADES DO PORTUGUÊS NO BRASIL E NO MUNDO
O Português no Mundo Acompanhando os navegadores, colonizadores e comerciantes portugueses em todas as suas incríveis viagens, a partir do século XV, o português se transformou na língua de um império. Nesse processo, entrou em contato – forçado, o mais das vezes; amigável em alguns casos – com as mais diversas línguas, passando por processos de variação e de mudança lingüística. No limite, deu origem a várias línguas crioulas.
O português, como se sabe, é a língua oficial nos países de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe e – mais recentemente – Timor Leste. Como assinala Mattos e Silva (1988), em tais ex-colônias ainda não se sabe que rumos o português estaria tomando, visto que o processo de independência política se deu há pouco tempo e o português, em muitos casos, se expande via escolarização, já que países como Angola e Moçambique têm uma situação lingüística complexa, sendo o português a língua oficial mas não a língua materna da maioria da população. Sendo assim, não se conhecem em profundidade detalhes sobre o processo de dialetação nesses países, afora o fato de que mantêm com o português europeu uma proximidade muito grande.
LÍNGUAS CRIOULAS Com relação às línguas crioulas, a literatura é um pouco maior, mesmo assim várias delas ainda estão por merecer uma descrição mais acurada e profunda. Mas é impressionante e extensa a lista de línguas crioulas que teriam no português a sua língua de base. Segundo nos informam Tarallo e Alckmin (1987), na Ásia os crioulos portugueses seriam classificados em três grupos:
1-o. grupo: sino-português
2-o. grupo: malaio- português
3-o. grupo: indo-português
Destes, o mais numeroso foi o terceiro grupo – o da Índia – mas a maioria dessas línguas já está extinta.
Já na África, podemos, ainda segundo os mesmos autores, apontar:
1.Crioulos portugueses do golfo da Guiné
2.Crioulo português das ilhas de Cabo Verde
3.Crioulo português da Guiné-Bissau
4.Crioulo português do Senegal
Os que têm apresentado uma vitalidade maior são os do golfo da Guiné, nas Ilhas de São Tomé e Príncipe, e o de Cabo Verde. Nestes dois últimos casos, temos a língua crioula concorrendo com o próprio português, que é a língua oficial.
Do ponto de vista sociolingüístico, a grande questão que tais crioulos vivem diz respeito às condições de sua sobrevivência. Línguas altamente estigmatizadas, só recentemente têm sido recebidas e tomadas como símbolos de nacionalidade, ganhando escrita, literatura, gramáticas, que são instrumentos poderosos de promoção e difusão das línguas.
O PORTUGUÊS DE PORTUGAL Portugal representa, segundo Tessyer (1982), um caso muito interessante, do ponto de vista lingüístico: país monolíngüe, tem a sua língua quase estritamente limitada aos limites geográficos do país. Além disso, as áreas dialetais, há muito tempo estudadas, são as mesmas há praticamente cinco séculos. Há várias propostas para a definição das regiões dialetais de Portugal. A mais recente, que costuma ser citada, é a de Cintra (1971), que propõe três grandes regiões dialetais:
• dialetos galegos
• dialetos setentrionais
• dialetos centro-meridionais
Cada uma dessas áreas é subdivida em outras áreas dialetais. Chama a atenção nessa proposta a inclusão da região do galego como parte das regiões dialetais do português, que incluiria toda a Galícia espanhola como parte da dialetação portuguesa. Aqui temos o embate entre o lingüístico e o político posto de maneira bastante clara: para Cintra (1971), a separação política é apenas um detalhe, já que lingüisticamente haveria razões para incluir a Galícia entre os dialetos portugueses.
No caso de Portugal, propriamente dito, Cintra vai distinguir dois grandes grupos de dialetos: os setentrionais – ao norte, e os centromeridionais – ao sul. Esta divisão, grosso modo, lembra a expansão do território português. Como se sabe, Portugal surge como país na sua porção norte, com capital em Guimarães, usando uma língua hoje reconhecida como galego-português. Paulatinamente o português vai se separando do galego, à medida que o centro cultural se desloca para o sul, em Lisboa.
Não me deterei nos traços que diferenciam os grupos de dialetos, remetendo o leitor para Cintra (1971). Mas é interessante acompanhar Mattos e Silva (1988) chamando a atenção para o fato de os traços que marcam fortemente os dialetos do norte não serem encontrados no português do Brasil, como é o caso da neutralização de /b/ e /v/, ou a oposição entre a africada palatal surda [tt] e a fricativa palatal [t] (o primeiro caso, nas palavras escritas com o dígrafo ch). O importante é frisar que a situação dialetológica em Portugal parece conhecer uma relativa estabilidade, muito provavelmente em função da manutenção das mesmas dinâmicas sociais.
De qualquer forma, é digno de nota o fato de que a sociolingüística não conhece em Portugal uma tradição de pesquisas forte como no Brasil. O foco lá são as pesquisas de cunho dialetológico voltadas para padrões de distribuição regionais. Essa ausência de pesquisas sociolingüísticas em Portugal tem dificultado a interação com os resultados produzidos no Brasil, que alcançam um grau de detalhamento bem maior no que diz respeito à complexidade social do fenômeno de variação. Para pesquisadores como Mattos e Silva (1988), em Portugal o aspecto regional da variação parece ser mais saliente do que o aspecto social, situação que, segundo a autora, seria a oposta do Brasil, onde os aspectos sociais teriam uma força maior do que os regionais.
O PORTUGUÊS DO BRASIL Nas duas últimas décadas tem sido feito um grande esforço descritivo e interpretativo a respeito da constituição do português do Brasil, podendo destacar-se três grandes linhas de trabalho:
1.A estrutura gramatical do português do Brasil
2.Os processos de variação no âmbito das cidades e dos territórios
3.Os processos históricos de constituição do português do Brasil e seus dialetos
ALGUNS PROCESSOS LINGÜÍSTICOS RELEVANTES Longe de querer esgotar a questão num texto tão breve, gostaria de destacar alguns lugares na estrutura da língua, bastante permeáveis à variação. São lugares que não só expressam a diferença entre Portugal e Brasil, como também definem no Brasil diferenças regionais e sociais.
I. Fonologia Segundo Mateus et alii (1983) teríamos seis indicadores fonológicos que diferenciariam o português brasileiro do português de Portugal. Desses, destaco quatro: a realização das vogais pré-tônicas; a realização de /t/, /d/ diante de ; a realização de /s/ em final de sílaba; a realização de /l/ em final de sílaba. O fato interessante é que esses mesmos ambientes diferenciam no Brasil regiões dialetais diferentes, ainda não muito bem demarcadas.
I.1. AS VOGAIS PRÉ-TÔNICAS
Enquanto no português de Portugal há uma tendência muito forte para a redução das vogais pré-tônicas (talvez a grande marca identificadora do sotaque português para um brasileiro), no Brasil, elas são pronunciadas claramente, não se percebendo, até onde se sabe, nenhuma tendência de que caminharemos na mesma direção de Portugal. Ao mesmo tempo, é nas vogais pré-tônicas que se encontra o grande traço apontado por Antenor Nascentes como definidor das duas grandes regiões dialetais do Brasil: o norte e o sul. No norte, elas tenderiam a serem abertas. A linha divisória estaria entre o Espírito Santo e a Bahia, indo, para o oeste até Cuiabá.
Além disso, as vogais pré-tônicas sofrem também um processo conhecido como o de elevação da vogal (grosso modo, /e/ -> ; /o/ -> ) altamente variável em todo o país, com matizes sociais os mais diversos.
I.2. A REALIZAÇÃO DA CONSOANTE /T/ DIANTE DA VOGAL
Esse é outro traço que, ao mesmo tempo que diferencia o português de Portugal do português brasileiro, também definiria áreas dialetais importantes no nosso país. Não temos um mapa dialetal geral do Brasil mas, pelas pesquisas já realizadas, sabe-se que no Sudeste brasileiro, descendo até a região Sul, com exceção do litoral catarinense e outras ilhas, subindo até a capital baiana, entrando pelo Centro-Oeste e tomando o Norte do país, temos a realização africada [tt]; nas demais regiões, assim como em Portugal e demais países de língua portuguesa, esse processo de africação não ocorre.
I.3. A REALIZAÇÃO DA CONSOANTE FRICATIVA /S/ FECHANDO SÍLABA
Esse é outro traço que opõe Brasil e Portugal e, ao mesmo tempo, define também áreas diferentes no território brasileiro. Trata-se da possibilidade de palatalização da consoante /s/ quando fechando sílaba, em palavras como casca, seis. Em falares como o carioca, ou o de Florianópolis, a realização é palatalizada, ou seja, o efeito acústico é algo semelhante à primeira consoante da palava chá.
I.4. A REALIZAÇÃO DE /L/ EM FINAL DE SÍLABA
Em Portugal, em palavras como legal, leal, a última consoante é realizada como um [l] velarizado; no Brasil, haveria a forte tendência de realizá-la como uma semivogal [w], de tal maneira que se tenderia a não distinguir mal e mau. Mas o interessante é que no Brasil há ainda dialetos que usam a forma velarizada, no Sul do país. Dos traços que elencamos nesta seção, este é o que menor abrangência tem no país. II. Morfologia e sintaxe São muitos os lugares da estrutura morfossintática que estão em variação no Brasil e que nos diferenciam dos dialetos portugueses. A morfologia verbal, especialmente a flexão de número e pessoa e a morfologia pronominal – aqui se destacando os pronomes pessoais – são palco de grandes processos de variação e mudança (em termos de dialetação brasileira, destaca-se o emprego dos pronomes tu e você como tratamento íntimo que diferencia grandes áreas lingüísticas no Brasil). Associadas a esses lugares, a sintaxe no Brasil experimenta também muitos processos de variação e mudança, com especial destaque para os fenômenos de ordem e a representação pronominal do sujeito e do objeto.
HISTÓRIA Contar a história do português do Brasil é mergulhar na sua história colonial e de país independente, já que as línguas não são organismos desgarrados dos povos que as utilizam. Para tentar explicar as diferenças do português do Brasil, três grandes hipóteses têm sido investigadas:
1.A hipótese conservadora
2.A hipótese do contato
3.A hipótese da deriva lingüística
Comecemos pela última. Segundo ela, o que ocorreu no português do Brasil foi apenas o lento, gradual e inexorável processo de mudança lingüística que afeta qualquer língua. Nesse caso, as características do português do Brasil seriam fruto do jogo interno da estrutura. Bom exemplo disso seria a perda da inversão do sujeito. Na medida em que as flexões verbais se simplificam, perdem-se os pronomes acusativos e a preposição a, marcadora do objeto direto preposicionado, a ordem se torna rígida para fazer as marcações sintáticas necessárias.
Pela hipótese do contato, o grande número de características lingüísticas do português do Brasil no período relativamente curto de sua existência se deveria ao contato do português com línguas indígenas e africanas. Como se viu acima, nas situações de contato pode ocorrer, no limite, o surgimento de uma nova língua – uma língua crioula. Muito já se discutiu quanto à possibilidade de o português ser/ter sido uma língua crioula, já que, além do contexto histórico ser semelhante ao de lugares onde se tem notícia de crioulos, há inúmeras características gramaticais que remetem às línguas crioulas. O problema da hipótese de crioulização é tomarmos no singular o português do Brasil e a língua crioula em questão: ou seja, seria o português do Brasil fruto de uma língua crioula? Hoje em dia, é muito mais interessante pensar que possa ter havido línguas crioulas no Brasil – e há fortes indícios que levam a essa conclusão – mas que elas, isoladamente, não seriam responsáveis pelo processo histórico de formação do português do Brasil atual. Ao mesmo tempo, não se deve descartar a importância que o contato com outras línguas possa ter trazido. Seguramente, profundas alterações foram introduzidas na língua a partir do contato lingüístico, sem que necessariamente tenhamos que pensar na formação de uma única língua crioula base do português do Brasil.
Por fim, a hipótese conservadora. Ela nos leva a inverter o raciocínio: os traços lingüísticos encontrados no português do Brasil seriam devidos mais à conservação do português do primeiro século de colonização do que às inovações aqui introduzidas. Assim, enquanto o português de Portugal sofria processos de mudança que lhe dariam as feições atuais, o português do Brasil, pelo isolamento das populações transplantadas, teria mantido aqui as características de antes da mudança. É claro que tal hipótese não explica o sem número de alterações na morfologia e na sintaxe, de que não se tem notícia em Portugal, mas ela é interessante para pensar alguns fenômenos fonológicos. Por exemplo, a queda das vogais pré-tônicas é uma inovação do português de Portugal que se teria implementado a partir do século XVIII – na verdade uma grande alteração no padrão rítmico da língua – que não teria afetado o português do Brasil. O mesmo se poderia dizer da palatalização de /s/ em final de sílaba, muito comum em cidades litorâneas brasileiras, mas pouco produtiva no interior.
O mais provável é que, nos diversos pontos do território, em momentos diferentes, tenhamos a atuação de cada uma dessas forças – a conservação, a inovação estrutural e o contato lingüístico que redundaram tanto nas diferenças do português do Brasil com relação ao de Portugal, quanto nas diferenças encontradas nos dialetos brasileiros. Mas é interessante observar que, quanto mais distante do português normativo, especialmente se consideramos as flexões pronominais e verbais, mais estigmatizado é o falar, no Brasil. Alterações profundas na produtividade morfológica estão muito associadas ao contato interlingüístico, o que nos leva à enorme população escravizada que é a base do povo brasileiro. Assim, o Brasil colônia teria, com a sua estrutura produtiva de espoliação, lançado as bases para a dialetação social no Brasil.
UMA VISÃO DOS DIALETOS BRASILEIROS Do conjunto de dados elencados acima, o que poderíamos dizer dos dialetos brasileiros? O projeto de um mapa dialetológico brasileiro só recentemente teve as suas primeiras iniciativas lançadas. O que temos são mapas regionais que apontam para a confirmação de pelo menos uma hipótese básica de Antenor Nascentes: a de que o Brasil seria dividido em duas grandes regiões dialetais – norte e sul.
Os resultados da sociolingüística, na maior parte dos casos voltados para a fala de grandes centros urbanos, têm apontado para uma forte variabilidade no português brasileiro, com traços sociais os mais diversos se imprimindo nas formas lingüísticas. Essa profusão de pesquisas impede que se chegue a um retrato mais preciso de como o Brasil se comporta em termos de suas regiões dialetais e qualquer tentativa – hoje – de adiantar conclusões não teria bases objetivas.
Outro fato extremamente importante e que desafia o conhecimento sistemático do que estaria ocorrendo no Brasil tem a ver com o grande conjunto de migrações que ocorreram no século XX, como bem assinala Cardoso (1998). Por volta Da década de 50 deixamos de ser um país rural para nos tornarmos um país essencialmente urbano. Hoje, segundo dados do último censo, 70% da população brasileira vive em cidades.
Em termos lingüísticos, isto significa que uma série de variedades que até então se encontravam isoladas umas das outras é posta em contato nas grandes cidades. O resultado desta grande mescla do século XX ainda está por se conhecer, mas seguramente é um dos grandes responsáveis pelo alto grau de variação que as pesquisas têm mostrado. Ao mesmo tempo, a universalização da escola, ainda em vias de alcançar completamente, tem colocado mais e mais falantes em contato com as formas mais eruditas da língua. Isso tem produzido uma grande tensão de cunho normativista cujo resultado ainda não se pode prever. Nesse sentido é sintomático que se tenham multiplicado os programas de rádio, TV e as colunas de jornal voltadas para as questões de português. Vivemos um momento de inflexão normativa, já que mais e mais pessoas de estratos mais populares têm alcançado os cursos superiores, onde a demanda pelas formas normativas é maior. Porém o peso das diferenças é muito grande, o que tensiona o falante, de um lado, e a língua, de outro. É cada vez mais difícil manter como norma aquela recomendada pelos gramáticos; ao mesmo tempo, formas desse dialeto normativo idealizado são incorporadas pelos falantes nos seus textos escritos, em especial. É o que demonstram as pesquisas sobre a língua escrita ao longo da escolaridade.
PALAVRAS FINAIS Neste pequeno balanço sobre os processos de variação no português devem ter ficado claros alguns pontos:
1. Aparentemente, a julgar pelo que nos informam os pesquisadores portugueses, Portugal experimenta, já há algum tempo, uma certa estabilidade no que diz respeito às suas áreas dialetais. No entanto, a ausência de pesquisas nas regiões urbanas, com maior detalhamento tanto no processo lingüístico de variação quanto nas relações sociais envolvidas nesse processo, nos impede de avançar nessa questão. É como se a língua por lá estivesse congelada, num eterno processo de variação estável.
2. Nos outros países de língua portuguesa, a grande questão é como irão se comportar as línguas crioulas, especialmente naqueles em que o português é língua oficial. Ou tais línguas crioulas ampliam seus contextos de uso, aprofundando a situação de bilingüísmo, que é o que parece ocorrer em Cabo Verde, ou são assimiladas pelo português, resultando, nesse caso, em um aprofundamento do processo de dialetação.
3. No caso do Brasil, tem havido um enorme esforço descritivo do português por aqui falado, sobretudo nos grandes centros urbanos. Desse retrato emerge tanto um português que está irremediavelmente separado do português de Portugal, quanto um português com alto grau de variação, em grande parte provocada pelo contato entre dialetos populares fruto de contatos entre o português e outras línguas, durante a formação do Brasil. Como o país está concentrado nos centros urbanos, o mais provável é que essas formas em variação sejam o veículo da expressão dos mais diversos grupos urbanos, ao
mesmo tempo em que se assentam as características regionais, em função de processos de identidade sempre em curso.
Em resumo, o Brasil é palco de uma emocionante epopéia lingüística, da qual não temos uma consciência muito clara, porque é o tempo em que vivemos, e o tempo em que vivemos nunca é o tempo em que nos entendemos.
Autor: Emilio Gozze Pagotto é professor adjunto da UFSC