Autoria: Anônima
Vida Louca dos Motoboys Leva Polêmica ao Cinema
Divulgação
Cena do filme
Infernais para alguns, salvadores da pátria para outros. As múltiplas facetas dos motoboys e os sentimentos contraditórios que despertam nos paulistanos foram captados em um documentário. Motoboys – Vida Loca, do diretor Caíto Ortiz, faz um retrato honesto dessa classe profissional que reúne 300 mil pessoas só na cidade de São Paulo. Eles assombram os motoristas nas marginais, defendem uns aos outros de olhos fechados e entregam pizzas e documentos na hora marcada.
Mas não são as brigas de trânsito e os movimentos perigosos – captados por câmeras acopladas às motos – que vão provocar polêmica e sim os números absurdos de mortes. Pelo menos dois motoboys morrem por dia no trânsito caótico de São Paulo.
Tais números são inéditos porque oficialmente a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) estima que sejam dois motoboys mortos a cada três dias.
A diferença nas contas é simples: a CET não contabiliza os que morrem depois de hospitalizados, apenas os que morrem na hora do acidente ou durante o transporte do resgate até o hospital.
Os números do filme são resultado da pesquisa do jornalista Giuliano Cedroni, que também é responsável pelo roteiro. Ele cruzou os dados da Secretaria da Saúde do Estado e do Hospital das Clínicas com uma tese de doutorado da Universidade Paulista de Medicina, segundo a qual 60 por cento dos motoboys morrem depois que já estão hospitalizados.
Quase todos os acidentes acontecem nos chamados “corredores” das ruas e avenidas, entre as filas de carros. Boa parte dos motoristas não sabe, mas o artigo de lei que proibia o tráfego nesses espaços foi vetado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso em 1997.
“É o único país do mundo onde isso é legalizado”, disse Cedroni em entrevista à Reuters no ano passado, quando o filme passou na Mostra BR de Cinema. “Na prática, a lei permite, mas o Estado não tem condições de dar segurança ao motoboy.”
Corredor para motos?
Madá, Claudião, Ronaldão, Falcão Negro e Marcelo sentem os números na pele. Os cinco motoboys são os protagonistas do documentário, que fala muito mais sobre suas vidas do que das estatísticas – estas aparecem apenas em legendas toscamente datilografadas, “como as letras dos (antiquados) computadores da CET”, segundo o diretor.
Eles dividem os 52 minutos do média-metragem com personalidades e autoridades de diversas áreas, além de motoristas de carro, táxi e ônibus, todos comentando a relação de amor e ódio com esses office-boys sobre duas rodas.
“Quantos negócios não foram fechados por causa de um motoboy?”, pergunta o publicitário Washington Olivetto numa passagem do filme. “E quantos casais não foram formados por causa das flores que eles entregaram?”
O arquiteto e urbanista Paulo Mendes da Rocha completa: “Eles são uma metáfora contra esse trânsito estúpido de São Paulo.” E, numa passagem final, pergunta: “Mas quem inventou essa coisa de que tem que ser pizza rápido e documento rápido?”
Segundo o filme, existe um projeto, atualmente engavetado, que prevê a criação de uma faixa exclusiva para os motoboys na cidade, nas avenidas Luís Carlos Berrini, Consolação, Rebouças, 23 de Maio e nas marginais.
O custo seria de R$ 12 milhões, valor baixo se comparado ao prejuízo de R$ 200 milhões por ano que o Estado de São Paulo sofre com os acidentes envolvendo motoboys.
O filme não chega a abordar os motoboys pelo mundo, mas o pesquisador Cedroni garante que a cidade é o maior centro de motoboys do mundo.
“Bangcoc deve ter a maior frota de motos do mundo, mas nem todas estão a serviço. Em São Paulo, as estimativas são de que 80 por cento são para trabalho”, disse Cedroni, completando que a frota da cidade é de 456 mil motos, segundo a indústria automobilística.
Os donos do asfalto
Filme retrata o dia-a-dia dos motoboys, uma tribo cada
vez mais heterogênea e numerosa nas ruas de São Paulo
Conheça o perfil dos motoboys
Chico Silva
ADRENALINA: César “Falcão Negro” só anda pelo corredor entre os carros.
Pesquisa recente do Instituto Toledo & Associados revela o quanto anda tensa a relação entre motoristas e motoboys em São Paulo. Para 19% dos que dirigem pela cidade, os motoqueiros representam o maior problema do trânsito paulistano. Só perdem para o quesito lentidão/ congestionamento, que vem em primeiro lugar com 59%. O curioso é que quem condena é geralmente quem liga implorando para o motoqueiro “voar” para pagar aquela conta que não pode atrasar. Essa urgência está produzindo tragédias. De acordo com o Sindimmoto, um dos sindicatos da categoria, acontecem em média 70 acidentes por dia na capital paulista. Destes, um foi transmitido em cadeia nacional. Na segunda-feira 20, o motoboy Rubens, integrante da equipe de motolink da Rede Record, perdeu o controle ao ser fechado por um carro e atingiu dois pedestres. Um deles, Josué José dos Santos, morreu. Na mesma noite da fatalidade, IstoÉ havia agendado entrevista com os motoqueiros da emissora. A conversa foi cancelada. Rubens vai poder voltar a pilotar. Ao contrário de muitos colegas dessa tribo, verdadeiro fenômeno paulistano. A cada 24 horas dois motoqueiros perdem a vida no trânsito da cidade. O número não é oficial, mas é o dado mais chocante revelado pelo documentário Motoboys, vida loca, de Caíto Ortiz, destaque da 27ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que terminou na quinta-feira 30.
Levantamento feito pela equipe do Motoboys mostra que hoje há cerca de 300 mil desses profissionais circulando pela cidade. Os números oficiais estão entre 100 mil e 150 mil. Há cinco anos eram pouco mais de 40 mil. Com o aumento veio a mudança de perfil da categoria. O cachorro louco, até então o estereótipo do motoboy, aquele que aterroriza motoristas quebrando retrovisores, não é mais a maioria. Agora é comum ver chefes de família, universitários e mulheres atrás do capacete e guidão. Personagem do documentário e dona de uma história comovente, Maria Madalena Rutschka, 45 anos, é um exemplo dessa mudança. Apesar de três acidentes sofridos, uma moto roubada e de uma tentativa de roubo de outra, ela continua no asfalto. Tudo para curar uma ferida que teima em não cicatrizar. “Meu filho morreu em 1996. Não tinha mais nada a perder. Deixei meu emprego de 15 anos, um casamento e cai na rua”, conta. Paulo Ricardo morreu em 1996, aos 18 anos. Mergulhou e não voltou com vida de um rio quando passava férias em Itapetininga, interior de São Paulo. Mas Madá ainda sonha. Pretende trocar o banco da moto por um de uma agência de publicidade. “Adoro o que faço. É loucura. Mas, apesar da minha idade, ainda quero ser publicitária”, diz.
Madalena tenta esquecer a perda do filho com a velocidade.
O sonho foi a ferramenta que impulsionou a vida do ex-motoboy Ednaldo José da Silva, 36 anos. Uma colisão com um Ômega em 2001 deixou seus membros inferiores paralisados. Em vez de se entregar a inércia de uma cadeira de rodas, ele deu um novo rumo à vida. “Já que não poderia mais fazer o que mais gosto quis arrumar uma atividade próxima das motos”, diz. Ednaldo é sócio de uma empresa de entregas rápidas. Passa o dia inteiro vendo Hondas CGs e Biz e Yamahas Ybrs, modelos preferidos pelos motoboys, chegando e partindo.
Acidentes como o de Ednaldo custam caro aos cofres públicos. Uma saída da viatura de resgate, o anjo da guarda dos motoboys, custa, entre manutenção, combustível, salário e formação do militar e equipamentos, R$ 33 mil. Para diminuir prejuízos e dores, algumas medidas estão sendo tomadas. Em breve, entrará em vigência decreto lei que regulamenta a profissão de motoboy. A partir da publicação da lei, os motoqueiros terão que se cadastrar na prefeitura. Além disso, todas as motos terão que ser equipadas com o baú de transporte. A medida acaba com o uso das mochilas e as consequentes dores nas costas provocadas por elas.
Para obter o cadastro, o motoqueiro terá também que apresentar atestado de bons antecedentes criminais. Quem se enquadrar nesses requisitos terá acesso às melhores ofertas de emprego e salários mais justos. “Queremos harmonizar essa relação entre motoboys e motoristas. Sabemos que ainda não é a solução ideal. Mas é um começo”, diz Josias Leche, 36 anos, diretor do Departamento de Transportes Públicos de São Paulo. A elaboração do decreto contou com a participação dos sindicatos da categoria. O presidente do Sindimmoto, Aldemir Martins de Freitas, 31 anos, o Alemão, está satisfeito com o avanço. Mas reclama do tratamento que a sociedade dispensa aos companheiros. “Como toda categoria, temos bons e maus profissionais. Queremos coibir abusos”, diz Alemão, partidário das idéias do revolucionário Ernesto Che Guevara.
Melhorar a imagem da categoria não vai ser fácil. Quem anda de carro em São Paulo e cometeu o pecado de mudar de faixa sem olhar no espelho sabe das consequências desse ato. Retrovisores, portas e capôs são as áreas mais atingidas pela ira de cachorros loucos. Até a doce Madá confessa, arrependida, que já destroçou o espelho de um motorista.
Mas arrependimento não consta no vocabulário de César Falcão Negro Augusto Cavalcante Salgado, 21 anos. Um dos personagens mais emblemáticos do Motoboys, ele assume o papel do motoqueiro tresloucado, disposto a tudo e louco pelo corredor da morte, o exíguo espaço que separa os carros e por onde trafegam as motos nos engarrafamentos. “O corredor é adrenalina pura. Quando entro ali me transformo. Se alguém me fechar eu meto o pé no retroviso mesmo!”, diz. Como quase todo motoboy, Falcão Negro, o apelido vem da cor da moto, uma Agrale preta e vermelha, mora na periferia. Nesse caso no Parque Cecap, em Guarulhos, município vizinho a São Paulo. Fã de heavy metal, Falcão perdeu a conta dos tombos que levou, teve motos roubadas e certa vez socou um motorista que ousou cruzar seu caminho. Mas não há nada nesse mundo que o faça mudar de vida.
“Nasci motoqueiro e vou ficar assim. Morreria se tivesse que ficar trancado num escritório.” Ele e seus 299,9 mil colegas. A vida é “loca”. Mas para eles tem que ser assim.
Vida louca
“Motoboys” sintetiza o universo da profissão que atualiza os antigos boys –rapazes que faziam entregas de documentos em curtas distâncias– em cinco personagens centrais. Entre eles, há o típico “cachorro louco”, a motogirl, o entregador de pizza e o motoboy que já não é mais tão jovem.
“No começo, eu tinha o estereótipo na minha mente. Achava que eles eram todos um bando de moleques loucões”, explica Ortiz. “Era a visão típica do cara que anda de carro com o vidro fechado e vê aquele monte de sujeitos de moto andando em fila. Eles estão sempre com capacetes e jaquetas parecidas. É fácil criticá-los porque eles nem parecem humanos.”
Em comum, Ortiz destaca a busca pela aventura. “A maioria deles começa nessa profissão por pura falta de opção. Mas, com o tempo, eles acabam pegando gosto pela coisa, ficam orgulhosos e sentem a adrenalina. Eles adoram essa liberdade de poder correr nas ruas e não ter patrões.”
Ortiz, no entanto, não faz um documentário chapa-branca. Ele sabe que, nessa história, não há heróis ou bandidos. Chega até a mostrar imagens dignas de programas sensacionalistas, como motoboys agredindo fisicamente outros motoristas.
“Não há dúvidas de que o trânsito de SP é uma guerra. Cada um está olhando para o seu próprio umbigo. Todos –motoristas de ônibus, caminhão, carro, taxistas– se sentem desrespeitados no trânsito e acham que estão com a razão.”
Motoboys – Vida loca
http://www.ig.com.br/paginas/igler/barra_guiadolivro/igler.html?www.ingresso.com.br/index.asp?PARCERIA=IGOMELETE
Por Marcelo Hessel
17/6/2004
http://www.omelete.com.br/indique_amigo/envie_amigo_form.asp?url=http://www.omelete.com.br/cinema/artigos/base_para_news.asp?artigo=2029
Trailer
Motoboys – Vida loca
Brasil, 2004
52 min. – Documentário
Direção: Caíto Ortiz
Como resolver o trânsito de São Paulo? Como impor limites aos motoboys? Como acabar com a selvageria dos entregadores sem prejudicar a rotina da “cidade que nunca pára”?
Se você procura respostas, não as encontrará no documentário Motoboys – Vida Loca (2003), escolhido como o melhor da sua categoria na Mostra Internacional de São Paulo. O primeiro grande triunfo do média-metragem de estréia de Caíto Ortiz é não tentar abraçar o mundo. Antes disso, é preciso desmanchar preconceitos, expor todos os fatores que contribuem para o caos, revelar a complexidade do problema. E isso os seus 52 minutos fazem com transparência e sobriedade.
Mais urgente, por exemplo, é entender que sem os entregadores sobre rodas – fenômeno urbano que há anos substituiu os pedestres officeboys – a máquina financeira, estatal e social acaba engessada. É entender que a maioria dos quase 300 mil motoboys de São Paulo não têm registro, benefícios ou direitos. É saber que o governo estadual perde 200 milhões de reais por ano com acidentes de trânsito envolvendo as motos. Mais importante que antecipar conclusões é saber que a metrópole mata dois motoqueiros a cada dia.
Liberdade
O filme fornece os dados e busca o lado humano. Ortiz alcança um segundo grande êxito ao arrebanhar, num número pequeno de entrevistados, uma variedade completa de perfis. São quatro motoboys e uma motogirl, mas cada um deles tem as suas motivações, os seus objetivos. Há o pai de família que exerce a profissão há doze anos e preza pela sua segurança. Tem o outro que vara a madrugada nas ruas atrás de uns trocados a mais – mesmo com o perigo de ter a moto roubada pela enésima vez. Há o típico cachorro louco que coleciona cicatrizes e não vislumbra mais do que um acidente mortal num dia de azar. E existe a mulher de meia idade, divorciada, que perdeu um filho, e depende do frenesi constante das entregas para não pensar na própria vida.
Apesar das individualidades, existe uma aura que rege cada um dos personagens. E com o seu ritmo dinâmico, de câmeras postas sobre guidões e garupas, de informações ligeiras jogadas na telona, de trilha sonora antenada feita pelo coletivo Instituto, o filme desenha com desenvoltura essa “vida loca”. Mostra que, dentro dos capacetes, há uma genuína manifestação de anarquia. Ver-se apto a voar nos engarrafamentos é fazer parte de uma tribo urbana onipotente num universo onde ninguém mais é senhor do tempo.
Ter uma moto que funcione custa alguns salários mínimos, mas confere status, poder e, principalmente, liberdade. De quebra, o símbolo fálico motorizado configura domínio sobre a mulherada. “É só chegar com uma moto que as minas colam, nem precisa ser bonito”, diz um dos motoqueiros, recém-saído da adolescência.
Indignação
Evidentemente, há o lado pouco satisfeito dos excluídos e congestionados: não é difícil ver na horda de motoboys que buzinam, que discutem e que quebram retrovisores a personificação de uma irmandade do Mal. Personalidades, pensadores e estrategistas da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) dão o seu parecer diante da câmera. Concordam que a cidade não viveria sem os entregadores, mas se incomodam com os desmandos no trânsito. Esboçam indignação, mas não conseguem visualizar uma solução imediata.
Aos poucos, outro tipo de indignação nos pega. Ortiz informa que o projeto para a construção de uma pista exclusiva de motoqueiros sairia mais barato do que o dinheiro perdido com cada acidente rotineiro. Revela também que havia uma lei no Código de Trânsito que proibia o tráfego nos chamados corredores, as faixas que separam as pistas de rolagem. Mas o governo FHC extinguiu essa cláusula, explicando que ela acabaria com a eficiência dos entregadores. Em outras palavras, praticidade vale mais do que segurança.
Nesse momento, percebemos que a grande culpada é a própria cidade, com o seu crescimento afobado que não segue projetos, com a sua ética deformada que desrespeita habitantes, faz da pressa uma norma e louva a informalidade descartável. Em defesa do bom senso, sem julgamentos, Motoboys – Vida Loca termina, ilumina a questão e dá o seu recado.